Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 25.14-30
Leituras: Juízes 4.1-7 e 1 Tessalonicenses 5.1-11
Autoria: Norberto da Cunha Garin e Edgar Zanini Timm
Data Litúrgica: 24º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 15/11/2020
A sugestão de leitura do Antigo Testamento, Juízes 4.1-7, foca na narrativa da advertência e convocação que a juíza Débora faz a Baraque para que enfrente as tropas de Sísera, comandante do exército de Jabim, rei de Canaã, sob o qual se encontravam os filhos de Israel. Ela promete a Baraque o envio dos inimigos até o ribeiro Quison, onde aconteceria o enfrentamento bélico. Representa o chamado de Débora para que Baraque realize a missão que Deus está lhe confiando. Deve utilizar seu potencial para libertar o povo de Israel.
A leitura da epístola, 1 Tessalonicenses 5.1-11, reporta-se à inexistência de previsão sobre a época da volta do Senhor. Insta para que todos estejam sempre preparados a qualquer tempo. Nunca há previsão sobre quando terminará nosso envolvimento na missão que Deus nos tem dado.
O texto indicado para a prédica está alicerçado sobre a narrativa de Mateus. Ainda que Lucas 19.11-27 apresente um paralelo, esse possui tantos detalhes distintos, que parece se constituir noutra história. A narrativa de Mateus representa ser a mais aproximada das tradições originais.
O final do ministério terreno de Jesus se aproximava. Os textos anteriores ao capítulo 19 retratam discursos realizados já em Jerusalém. Essa parábola se encontra no escopo da proximidade do reino de Deus, ou como prefere Mateus, reino dos Céus.
A parábola está ambientada num contexto urbano, diferente de boa parte das parábolas contadas por Jesus. Mesmo que a ilustração se reporte aos recursos financeiros, não deve ser tomada como exemplo para justificar qualquer expertise de investimentos ou de empreendedorismos. De forma nenhuma ela se presta para sustentar argumentos sobre fundamentação das desigualdades sociais do tipo: “Deus concedeu mais bênçãos para uns e menos para outros”.
V. 14 – Os textos mais antigos se reportam apenas que ele viajou; a expressão “ausentando-se do país” não aparece em alguns originais; o substantivo doulos se reporta a escravos. Tratava-se de escravos de confiança, habitualmente encarregados por seus senhores de tarefas de alta responsabilidade. Suas posses (hyparchonta), por analogia, tratava-se de tudo aquilo que Jesus havia compartilhado com seus discípulos: a fé, a autoridade, o olhar para os humildes etc. Esses se constituíam nos talentos outorgados.
V. 15 – O talento (talanta) consistia numa moeda que originalmente tinha sido uma medida de peso. Essa moeda equivalia a seis mil denários. Um denário representava o salário de um trabalhador por um dia. Portanto um talento representava cerca de 18 anos de serviços de um trabalhador.
V. 16-17 – Colocou-os para trabalhar (ērgasato): os servos que receberam cinco e dois talentos colocaram o capital para trabalhar por meio de empreendimentos diversos. Isso tem o sentido de fazer boas ações. Esse verbo aparece em outras duas partes do NT: 1) em Mateus 26.10, quando Jesus repreendeu os discípulos que criticavam a mulher que o havia ungido, no sentido de que ela havia realizado uma ação meritória; 2) em Marcos 14.6, em texto paralelo, com a mesma conotação.
V. 18 – Cavou um buraco e escondeu (ekrypsen): a prática de enterrar bens duráveis, como moedas, joias, peças de ouro e prata era comum no tempo de Jesus, pois não havia cofres seguros o suficiente e o sistema bancário era incipiente. Isso representava uma atitude que agregava a maior segurança possível ao redor do bem. Há outras parábolas nas quais esse mesmo tema aparece, como, por exemplo, em Mateus 13.44.
V. 19 – Ajustou as contas (synairei) tem o sentido de verificar o que fora produzido e o que caberia a cada um dos escravos. Cada servo necessitava fazer um relatório das atividades realizadas a partir do recebimento daqueles talentos. Não se tratava apenas de receber, mas de verificar o que caberia também aos operadores, que certamente receberiam o seu pagamento.
V. 20 – Confiaste-me (paredōkas) é mais que entregar: o senhor “confiou” os cinco talentos. Como servos, eles inspiravam a confiança, inclusive sobre seus bens, a parte mais sensível de boa parte dos seres humanos. Não era diferente no primeiro século.
V. 21 – Foste fiel (piste, gr.): ser fiel significa desenvolver aquilo que recebeu; não deixar parado; não se acovardar. Entra no gozo (charan): tratava-se de se apropriar da porção da alegria, de participar da intimidade do senhor, do seu palácio. Essa consistia na parte do pagamento do servo. Os escravos tinham acesso aos palácios, mas apenas para trabalhar. Participar da alegria do senhor significava sentar à mesa dos banquetes.
V. 26 – Mau e negligente (oknēre): ninguém está desculpado por ser negligente porque sua porção foi menor ou considerada muito pouco.
V. 29 – Será tirado (arthēsetai) aponta para uma expressão coloquial, um ditado popular adotado por Mateus e por outros evangelistas. Tratava-se de uma expressão proverbial comum (Mt 13.12, 21.43; Mc 4.25; Lc 8.18, 19.26). Para quem aproveitava a oportunidade, os benefícios se ampliavam, mas quem deixava passar a oportunidade acabava perdendo a vez.
V. 30 – Choro e ranger de dentes (klauthmos, brygmos) sinalizava o futuro das pessoas que, mesmo tendo conhecido o Senhor, se tornaram infiéis do ponto de vista da sua contribuição ao reino de Deus. As pessoas seriam julgadas por não realizarem o que lhes era adequado.
Essa parábola, narrada por Mateus, remete ao cenário da parousia. Jesus estava em Jerusalém, da qual não sairia vivo. Sua ausência poderia ser compreendida como a ausência do senhor da parábola. Ficaram os seus discípulos com a incumbência de fazer render a missão que ele tinha lhes atribuído.
Quando se trabalha com analogias, faz-se necessário realizar a migração sociocultural e ambiental para que se entenda a mensagem adequada da parábola. Neste caso, Jesus mencionou escravos de confiança porque em sua época os trabalhadores eram escravos. Evidentemente tinham um perfil distinto dos escravos africanos que havia em nosso país. Mas pensando nessa contextualização, é entendê-ls como missionários que operavam com o evangelho. Os talentos não deveriam ser entendidos como habilidades e dons recebidos, mas como aquilo que o Senhor deixou para todos os seus seguidores: fé, autoridade, humildade, misericórdia entre outros. Esses são os nossos talentos.
Quem foi transformado pela graça de Cristo tem o compromisso de tomar os seus talentos e se colocar a operar. Toda obra da pessoa cristã necessita ser um investimento dos talentos recebidos. Não importa se é ministro ou ministra eclesiástica, professor ou professora, gestor ou gestora, operário ou operária manual – todos necessitam realizar os investimentos adequados utilizando esses talentos. A fé, a esperança, a misericórdia, precisam comparecer como estratégias na operação do cotidiano. É por meio dessas operações vinculadas aos talentos que o testemunho acontece e, consequentemente, a expansão do reino de Deus se realiza. Imagine–se omitir a fé em qualquer atitude da pessoa cristã: qual seria o resultado? De que maneira a pessoa cristã justificaria uma ação sem a misericórdia?
É importante perceber que a quantidade de talentos recebidos pelos servos não tinha relação com a capacidade de qualquer um deles de realizar os negócios. Não há como mensurar os talentos que recebemos do Senhor: quantidade de fé, de misericórdia, de postura de humildade. A analogia deve ser relacionada à recepção dos talentos. Mesmo aquele que recebeu um, estava instrumentalizado para realizar os negócios do seu senhor. Dessa forma, é inconveniente estabelecer relação entre quantidades como se uma pessoa cristã fosse mais “talentosa” que outra.
É notável a atitude do terceiro servo, porque ele fez exatamente o que odireito canônico judaico recomendava: enterrar o bem. Era considerado o meio mais seguro de proteger o dinheiro. Os outros dois servos, assim como ganharam outro tanto, arriscaram perder tudo, mas foram hábeis para realizar o negócio do seu senhor. É bem provável que esse terceiro servo consistia numa analogia aosescribas e fariseus, que, mesmo cumprindo a Lei, não produziam frutos e justiça.Trabalhar para o Senhor para o engrandecimento do reino de Deus quase semprerepresenta riscos. Não apenas em nações cujas culturas discriminam o cristianismo. O servo fiel a Cristo pode ser alvo de discriminação em qualquer local, até porque pauta sua rotina por princípios éticos e valores de sua fé. Não nos cabe “enterrar” o talento edificando normas, regulamentos, instituições para preservar o que recebemos. O Senhor espera que o exercício do talento recebido se multiplique, para que o Reino se expanda.
A parábola fala de ajustar contas como se fosse uma espécie de momento no qual o servo estaria diante do seu senhor para depositar o que lhe pertencia. Nocotidiano, a prestação de contas é contínua, pois nosso operar no reino de Deus nos acompanha diariamente em cada ação, em cada atitude. Nessa senda, recebemos o selo da confiança do Senhor. Assim como aconteceu com os escravos da parábola, temos um depósito de talentos, que não nos pertence, mas pelos quais precisamos, fielmente, dar contas a Jesus Cristo, senhor do Reino. Ser negligente é se omitir diante dos desafios de cada dia sobre esses bens fundamentais que ele colocou à nossa disposição.
Quem tem receberá mais e o que não tem perderá aquilo que tinha: isso se reporta a uma expressão proverbial da cultura popular, que provavelmente foi adotada por Jesus em diferentes momentos. O choro e o ranger de dentes podem ser associados à percepção de que o reino de Deus está triunfando, mas que se não desenvolvemos os talentos recebidos, estamos completamente alijados desse processo, porque escolhemos outro caminho, mais seguro ou mais confortável. Entretanto, a ênfase maior está reservada aos servos que realizaram o trabalho de multiplicar os talentos. Esses foram convidados a entrar na alegria do senhor. Isso equivalia, na ilustração, a participar das entranhas do palácio, com suas festas e banquetes. Por analogia, cumprir nossa missão equivale à recompensa de participarmos, com alegria, da comunhão com Cristo em sua Santa Mesa, a certeza de que fazemos parte desse Reino.
A ênfase da interpretação deveria recair sobre a natureza dos talentos. Há bastante confusão entre as pessoas cristãs sobre isso, como se fossem habilidades concedidas por Deus a cada pessoa cristã individualmente. Por analogia à parábola, o talento se constitui em todo o capital espiritual que Cristo nos deixou enquanto acesso à palavra de Deus, à fé, à misericórdia, à humildade, à consideração do humano, à preocupação com os mais fragilizados etc. Esses são os talentos que recebemos e com os quais precisamos trabalhar incessantemente na missão do reino de Deus. Seria interessante desconstruir a falsa ideia de que os mais habilitados são também os mais queridos pelo Senhor. Todos são amados por ele, mas os preguiçosos, que não colocam o capital que ele nos deu a serviço do Reino, que cercam esses talentos com regulamentos, leis, instituições, não participarão da glória de ver o seu Reino triunfando. Não terão a alegria de ter participado da sua construção.
Montar uma cena simples constituída de três pessoas que se reúnem para montar um enfeite para uma sala de crianças. As três recebem papel e tesoura. Uma delas resolve recortar o papel e transformá-lo numa série de crianças de mãos dadas. A outra faz uma dobradura, transformando-o noutro desenho/objeto, como chapéu ou barco. A terceira sacode os ombros e diz que está sem inspiração, devolve o papel ao pastor ou à pastora e vai sentar-se no seu banco. Terminada a tarefa (que deve ser rápida), o pastor ou a pastora convida as duas para decorarem a sala das crianças com seus artefatos. Nisso consiste a alegria de participar dessa parte do Reino, enquanto a terceira simplesmente ficou de fora da missão.
Oficiante: Senhor, recebemos talentos por tua graça; permite que possamos colocá-los em ação para a grandeza do teu Reino.
Todos: Que a tua Palavra, Senhor, apareça por meio dos nossos testemunhos, em palavras, ações e atitudes.
Oficiante: Que a fé, a esperança e o amor façam parte do nosso agir cotidiano, no nosso meio social, seja de trabalho, sociedade ou na família.
Todos: Senhor Jesus, que a missão que pediste para que realizemos traga frutos de justiça e de misericórdia para as pessoas com as quais convivemos. Amém.
JEREMIAS, Joachim. As parábolas de Jesus. Trad. João Rezende Costa. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1978. 238 p. (Nova Coleção Bíblica, 1).
KLIEWER, Gerd Uwe. Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1977. v. 2. Disponível em: . Acesso em: 27 fev. 2019.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).