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A essência e a coerência da fé

 

Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica:
 Isaías 58.9b-14
Leituras: Lucas 13.10-17 e Hebreus 12.18-29
Autoria: Roger Marcel Wanke
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/08/2022

1. Introdução

Como Igreja de Jesus Cristo, vivemos sempre na tensão entre duas verdades  bíblicas: o justo vive pela fé (Hc 2.4; Rm 1.17) e a fé sem obras é morta (Tg 2.17). Essas duas verdades formam uma unidade com dimensões distintas. Mas elas jamais podem ser entendidas como opostas entre si. Infelizmente, o povo de Deus, desde o Antigo Testamento, teve dificuldades em relacionar a salvação por graça e fé e as obras da fé como consequência da graça salvadora de Deus. A perícope de Isaías 58.9b-14, prevista para este 11º Domingo após Pentecostes, trata dessa tensão, a qual precisa ser abordada constantemente em nossas comunidades. Não é raro ouvirmos pessoas em nosso meio dizendo que o que elas fazem em benefício da comunidade e do próximo irá lhes trazer salvação, demonstrando ter, de forma equivocada, uma visão de que obras salvam. O mesmo vale para outras pessoas que procuram seguir à risca várias formas de espiritualidade e de práticas religiosas, totalmente desvinculadas do serviço e do amor às pessoas. Elas têm o mesmo discurso, afirmando que alcançaram o favor de Deus por causa de suas orações, de sua prática de leitura bíblica, sua participação na vida da comunidade, ou até mesmo por terem sido batizadas e participado de inúmeros ritos religiosos.

A perícope da pregação deste domingo nos ajuda a distinguir essa tensão, que, na verdade, é uma distinção entre a verdadeira e a falsa religião. O texto reforça a importância da distinção clara entre o mandamento do amor a Deus e o mandamento do amor ao próximo, não como duas grandezas distintas, mas como duas ênfases indissolúveis do mesmo “grande mandamento” (Mt 22.34-40; 1Jo). Eis, portanto, um texto excelente e fascinante para ser pregado neste período do ano litúrgico (tempo comum), no qual refletimos, como Igreja de Jesus Cristo, a respeito da nossa tarefa neste mundo, a partir da história da salvação anunciada nos demais domingos do calendário litúrgico. O que Deus fez por nós em Jesus Cristo deve refletir naquilo que a igreja faz em favor das pessoas neste mundo.

Como leituras bíblicas estão previstas duas perícopes do Novo Testamento. A primeira é de Lucas 13.10-17, que trata da cura de uma mulher que há 18 anos estava possessa de um espírito de enfermidade, o qual a fazia andar encurvada. Essa mulher vai à sinagoga na qual Jesus estava ensinando (Mt 9.35). Ao vê-la, Jesus a chama para perto de si e a cura de sua enfermidade e a abençoa, impondo-lhe suas mãos. O problema é que era sábado. Isso causa indignação ao chefe da sinagoga, que exorta as pessoas a virem durante os outros seis dias para receber a cura, mas não no dia de sábado, considerado dia santo e de descanso pelos judeus. Jesus, porém, não poupa palavras. Ele os chama de hipócritas, questionando se eles mesmos não desprendiam seus animais do curral para dar-lhes de comer e beber no sábado. Da mesma forma, Jesus indaga qual seria a razão para não libertar pessoas enfermas do cativeiro, que as escravizava também no sábado, considerando ser um dia de descanso. Jesus, inclusive, insere essa mulher na promessa de Deus ao povo judeu, chamando-a de “filha de Abraão”.

A segunda leitura nos leva para a Carta aos Hebreus. A perícope de Hebreus 12.18-29 apresenta um contraste entre o monte Sinai e o monte Sião. As referências a esses dois montes estão relacionadas à antiga e à nova aliança. No monte Sinai, Deus deu a Lei ao seu povo. Devemos lembrar que na Lei encontramos mandamentos relacionados ao sábado (terceiro mandamento) e mandamentos relacionados ao amor ao próximo. A nova aliança, contudo, não despreza nem rejeita a antiga aliança. Pelo contrário, os mandamentos continuam valendo. Mas eles são cumpridos e ressignificados por Jesus Cristo, que é o mediador da nova aliança, cujo sangue trouxe o perdão dos pecados e a salvação. Devemos lembrar aqui que o terceiro bloco literário de Isaías (Is 56 – 66), no qual a nossa perícope está inserida, anuncia a nova Jerusalém e a felicidade eterna de Sião, uma nova realidade para a qual o Senhor está conduzindo o seu povo após o tempo de cativeiro na Babilônia.

A relação desses dois textos com a perícope da pregação está no fato de eles apontarem para a verdadeira adoração a Deus. Jesus, ao curar a mulher enferma em dia de sábado, cumpre ele mesmo com a exortação de Deus em Isaías 58. Jesus desfez as ataduras da servidão e deixou livre a mulher oprimida. Jesus tirou da mulher o jugo e tudo o que a ameaçava. Ao curar a mulher no sábado, Jesus não estava preocupado com seus próprios interesses, mas teve misericórdia e auxiliou a mulher em suas necessidades, bem como lhe trouxe a dignidade de pertencer à família da fé. Considerando a leitura bíblica de Hebreus, a relação com a perícope prevista para a pregação está no fato de que a nova aliança é marcada pela fé em Jesus Cristo, que é o seu mediador. Isto é, a salvação não acontece por cumprimentos de ritos e práticas religiosas, mas unicamente pelo sangue de Jesus Cristo derramado no Calvário e aceita pela fé.

Em Proclamar Libertação não encontramos outra abordagem específica sobre a perícope delimitada em Isaías 58.9b-14, mas temos outras seis abordagens que tratam do capítulo 58 a partir de diferentes delimitações. Elas podem inspirar seu preparo e sua pregação: a) Isaías 58.1-9a: PL XV (1989), p. 147-151; b) Isaías 58.1-12: PL IX (1983), p. 50-56; PL 33 (2008), p. 125-131; PL 39 (2014), p. 97-101; c) Isaías 58.5-9a: PL 24 (1998), p. 88-94; d) Isaías 58.7-12: PL XII (1986), p. 300-306. Vale a pena conferir.

 

2. Análise exegética

A perícope a ser pregada está inserida no contexto do terceiro bloco literário do livro profético de Isaías, também conhecido como Trito-Isaías (Is 56 – 66). Embora essa parte literária do livro seja difícil de estruturar e, provavelmente, remonte a vários autores, fica claro que seus temas pressupõem o fim do exílio babilônico e o retorno dos exilados para Jerusalém. A mensagem central desse bloco é que Jerusalém será glorificada. Os dispersos retornarão para a Terra Prometida e as nações juntar-se-ão, no futuro, a Israel. Um novo céu e uma nova terra são anunciados à comunidade exilada, que está “de malas prontas” para voltar para casa.

Antes de aprofundarmos a perícope prevista para a pregação, faz-se necessário olhar para o seu papel literário e teológico dentro do terceiro bloco de Isaías. Esse bloco pode ser, provavelmente, estruturado de forma concêntrica, como segue:

A) 56.1-8: Comunidade cultual de Israel: inclusão dos gentios e incircuncisos
B) 56.9 – 58.14: Acusações e exortações: falsa religiosidade e crítica social
C) 59.1-21: Lamento do povo
D) 60.1 – 62.12: Anúncio de salvação para Jerusalém
C1) 63.1 – 64.11: Lamento do povo
B1) 65.1 – 66.9: Promessas e exortações: idolatria
A1) 66.10-24: Comunidade cultual de Israel: a glória do Senhor entre as nações

Alguns aspectos dessa estrutura são dignos de menção: a) É interessante perceber que o anúncio de salvação para Jerusalém, já destacado no segundo bloco do livro (Is 40 – 55), permanece o centro teológico também desse terceiro bloco. b) Outro fator fundamental a ser mencionado é que a moldura desse bloco aponta para a realidade das nações sendo inseridas na comunidade cultual de Israel e participando da glória do Senhor. Esse é o aspecto missionário mais impactante no Antigo Testamento. Ele é o cumprimento claro e evidente das promessas feitas por Deus a Abraão e Sara (Gn 12). c) Antes e depois do anúncio de salvação para Jerusalém, encontramos o que pode ser classificado como um lamento do profeta e uma confissão coletiva de pecado. d) Não por último, chama a atenção, nas exortações, os dois temas fundamentais, retomados do profetismo bíblico. Num primeiro momento, encontramos a crítica social e a crítica religiosa, exatamente na parte onde a nossa perícope se encontra. Por fim, encontramos o tema da idolatria e do culto aos falsos deuses sendo mencionados. Esses dois temas resumem de forma bem concreta o que caracterizou o pecado de Israel, que o levou aos exílios. O mesmo acontece com a exortação para que injustiças contra pessoas desfavorecidas e a prática da idolatria não voltem a existir dentro do povo de Judá ao retornar à Jerusalém e se tornar lá uma comunidade de culto, a fim de anunciar entre as nações a glória do Senhor.

Desta forma, fica claro que o discurso do Senhor sobre o jejum está totalmente vinculado à exortação profética pré-exílica de Amós, por exemplo, a qual questionou a falsa religiosidade e conclamou o povo de Israel a praticar a justiça em favor das pessoas desfavorecidas (Am 5). O assim chamado Trito-Isaías retoma no contexto pós-exílico as exortações proféticas pré-exílicas, tanto da crítica social quanto contra a idolatria, para que os dois maiores problemas do povo de Israel não sejam recorrentes na nova Jerusalém, anunciada com tanta vivacidade nesse bloco.

O capítulo 58, por sua vez, trata do jejum. Ele é a resposta do Senhor à pergunta do povo repetida por ele no v. 3: Por que nós jejuamos, se tu não atentas para isto?. O povo está decepcionado com o Senhor e se lamenta, pois parece ter jejuado em vão, embora tenha buscado o Senhor. Mas o Senhor não dá atenção ao povo nem leva em conta o jejum praticado por ele. O Senhor, então, deixa claro por que não considerou válido o jejum praticado. Isso deve ser anunciado ao som da trombeta (v. 1), em alta voz, para que o povo saiba que o Senhor é que está decepcionado com o seu povo. O Senhor acusa e condena o seu povo, pois esse o buscava todos os dias apenas como atitude externa, mas sem o coração. Era uma fé de fachada, ou seja, só de aparências. Era uma fé desvinculada da prática da justiça. O Senhor apresenta o seu diagnóstico em relação ao jejum praticado. Ele estava sendo feito por causa dos próprios interesses (v. 3) e por contendas e rixas entre as pessoas (v. 4). O que havia para expressar a tristeza, a penitência e a humilhação diante de Deus se tornou em uma prática arrogante e individualista. Por isso o Senhor faz essa séria advertência. O Senhor não é contra o jejum nem aboliu aqui a sua prática. Pelo contrário, o jejum é ressignificado, não como uma prática intimista e individualista, mas como prática da fé, a qual se manifesta na justiça da fé em favor de pessoas desfavorecidas. Aquilo de que se abre mão no jejum deve ser partilhado com os que não têm para saciar sua fome (v. 7). Ao invés de afligir a alma, privando-se de saciar a si mesmo, o povo deveria repartir o seu pão com a alma aflita (v. 10).

Tendo visto esse aspecto importante em relação ao contexto literário, podemos abordar agora a perícope em alguns dos seus principais detalhes. A perícope pode ser estruturada da seguinte forma:

a) Condição [se]: v. 9b-10 – a prática da justiça em favor de pessoas desfavorecidas
b) Promessas do Senhor: v. 11-12 – novo êxodo e reconstrução de Jerusalém
c) Condição [se]: v. 13 – a observância do sábado
d) Promessas do Senhor: v. 14 – o descanso na terra prometida

A fé verdadeira manifesta-se na prática da justiça (v. 9b-10)

Os v. 9b-10 dão sequência à exortação do Senhor contra a prática intimista e descomprometida do jejum. O verso inicia com uma conjunção condicional (se) que está relacionada com a promessa de bênção nos v. 11-12. A prática da justiça em favor de pessoas oprimidas, famintas, desabrigadas e pobres continua aqui, mas agora exortando para que se pare com todo tipo de exploração, de ameaça e difamação. Ao fazer o jejum, que a pessoa aflita e faminta seja saciada e possa ter acesso ao pão. Se essa prática da justiça acontecer, então haverá algo comparado ao primeiro dia da criação (Gn 1.2): a luz nascerá nas trevas. A formulação cria um jogo de palavras: a tua luz nascerá nas trevas e a tua escuridão será como o meio-dia, isto é, haverá claridade. Interessante é também perceber que o Senhor fala aqui da tua luz, ou seja, ele está retomando a tarefa missionária de Israel em ser luz para as nações. Essa luz não é algo próprio do povo de Israel. Mas o povo reflete a glória do Senhor (v. 8). Desta forma, o Senhor caracteriza e ressignifica o verdadeiro jejum como prática da justiça. A verdadeira espiritualidade manifesta-se na prática daquilo que me faz ver o outro. Não é algo intimista ou individualista, mesmo que o relacionamento com Deus seja e deva ser algo pessoal. Aqui fica claro que o amor a Deus, marcado pela busca diária do Senhor, pelo conhecer os seus caminhos e por uma vida que agrada a Deus (v. 2), também se manifesta com a prática da justiça e do direito em favor de pessoas, a quem, por interesses próprios, são negados os direitos e a justiça (v. 2).

O “novo êxodo” e a reconstrução de Jerusalém (v. 11-12)

Os v. 11-12 são promessas do Senhor ao povo. Eles estão em paralelo direto com os v. 8-9a, assim como os v. 9b-10 estão interligados com os v. 6-7. A primeira promessa retoma as tradições salvíficas do êxodo. São quatro aspectos dessa promessa: a) Deus guiará o povo continuamente. Assim como o bom pastor conduz o seu rebanho, da mesma forma o Senhor guiará o seu povo até a terra prometida (Êx 16 – 17). b) O Senhor saciará o povo até nos lugares desérticos. Mais uma vez somos lembrados de que Deus sustentou o povo na caminhada pelo deserto, dando o maná, as codornizes e todo o sustento necessário. Assim como o povo é exortado nos v. 7 e v. 10 a saciar a “alma” faminta, assim o Senhor fartará a “alma” de cada pessoa do povo. c) O Senhor fortificará os ossos, ou seja, os fortalecerá para a caminhada. d) O povo será como um jardim regado e um manancial, ou seja, uma fonte de água, que jamais secará. Também a imagem da água faz parte do sustento de Deus, quando da saída do povo da escravidão do Egito. Essa promessa é renovada agora na saída do povo da Babilônia. Assim, podemos perceber que os atos salvíficos de Deus no êxodo, paradigma da salvação de Deus no Antigo Testamento, são reinterpretados e reafirmados no contexto pós-exílico.

Já o v. 12 aponta para uma nova promessa. O retorno para Jerusalém será marcado por reconstrução. A promessa do Senhor aponta para as novas gerações. Os filhos desses reconstruirão as antigas ruínas da cidade que foi destruída por Nabucodonosor (cf. 2Rs 25). Essa passagem nos lembra do livro de Neemias. A principal razão que fez Neemias sair da cidadela de Susã e retornar a Jerusalém para reedificá-la foi a informação dada por seu irmão, Hanani, de que a cidade de Jerusalém ainda estava em ruínas (Ne 1.3). O próprio Neemias vê a cidade, ao chegar lá, e chega à mesma triste constatação (Ne 2.13,17). Jerusalém voltará a ser um lugar habitável.

A observância do sábado (v. 13)

Ao inserir o tema do sábado, os v. 13-14 parecem destoar do tema geral do capítulo 58, que falava do jejum. Contudo, seguindo a argumentação teológica das promessas feitas pelo Senhor, o sábado é tema consequente. Se Deus está prometendo um novo êxodo para o povo, que ao invés de manifestar uma vida de fé de aparências, de fato praticar a justiça da fé, então a entrada na terra prometida é o prometido descanso, o verdadeiro sábado. Assim como o jejum vai ser reinterpretado e ressignificado nesse capítulo, da mesma forma o sábado. O terceiro mandamento, que exorta a guardar o sábado, tem duas fundamentações teológicas. Na versão de Êxodo 20.8-11, o descanso está fundamentado na teologia da criação, pois Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo (Gn 2.1-3). Assim deve viver a humanidade. Na versão de Deuteronômio 5.12-15, a fundamentação tem a ver com a escravidão no Egito. Um povo que foi libertado da escravidão pode viver livre e no descanso do Senhor. Mas, assim como o jejum estava sendo feito por causa dos próprios interesses e negócios, da mesma forma o sábado estava sendo guardado para satisfazer os próprios interesses e desejos. O dia santo ao Senhor, que era para ser dia de festa e descanso, estava sendo ocupado como dia de trabalho, dia de negócios, dia de conversa jogada fora. O que era um tempo de buscar o Senhor tornou-se rival de Deus, ocupando o lugar do próprio Deus na vida do povo. Assim o sábado desemboca na transgressão do primeiro mandamento.

O descanso na terra prometida (v. 14)

A perícope termina com mais uma promessa do Senhor. São três aspectos prometidos ao povo que guardar o sábado como prevê o terceiro mandamento: a) O povo se deleitará no Senhor, isto é, o Senhor será uma fonte de alegria para o povo. A alegria é sempre fruto da salvação. b) O Senhor fará o povo cavalgar sobre os altos da terra. A ideia por trás dessa imagem é a figura do rei, que cavalga como soberano sobre os reinos da terra. A NTLH traduz: Eu farei com que vençam todas as dificuldades. c) O Senhor sustentará o povo com a herança dada a Jacó. No hebraico, o verbo usado é “comer”. Deus fará o povo comer da herança, isto é, eles serão sustentados a partir do que produzirem na terra para a qual estão indo novamente. Aqui há uma menção clara da posse da terra prometida relatada no final do Pentateuco e nos livros de Josué e Juízes. O v. 14 conclui com a confirmação do Senhor, que confirma todas as promessas: porque a boca do Senhor o disse. Se o Senhor disse, então está falado! Está garantido! É válido! Vai se cumprir! As antigas promessas de Deus continuam valendo. O Senhor as renova para dentro da nova situação do seu povo. Sua palavra não muda, mesmo que a situação do seu povo mudou várias vezes.

Concluindo, o que podemos perceber é que o pecado pode separar o povo de Deus, mas não separa Deus do povo (Is 59.2). Deus busca o seu povo, mesmo quando este o busca apenas por interesses ou até mesmo em vão. Deus evangeliza o seu povo novamente. Deus anuncia um novo êxodo, uma nova entrada na terra prometida! Deus lhes faz valer a sua Lei, mesmo que aqui de forma invertida, falando, primeiramente, do amor ao próximo e da prática da justiça e, depois, falando do amor a Deus e do descanso que o sábado do Senhor traz para toda pessoa que confia nele. O jejum e o sábado são duas formas legítimas de amar e servir a Deus e de amar e servir o próximo como a si mesmo, sem se preocupar com os próprios interesses (v. 3, 13), porque a boca do Senhor o disse.

 

3. Meditação

Penso que esse texto pode nos ajudar a entender o que significa, no mandamento do amor ao próximo (Lv 19.18), a frase “como a ti mesmo”. A libertação da escravidão do Egito e a dádiva da Lei libertaram o povo não só da escravidão, mas de si mesmo. Não foi uma liberdade conquistada, mas recebida como dádiva de Deus, como sua salvação. Por isso ela é liberdade de si mesmo para servir ao próximo. É isso que Lutero vai afirmar em seu escrito reformatório “Da Liberdade Cristã” (1520): “Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é um servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos”.

Por isso abrir mão de si mesmo sem compromisso e comprometimento com a prática da justiça continua sendo apenas um abrir mão de si mesmo, mas não amar o próximo como a si mesmo. E a prática da justiça por si mesma não passa de obra inútil e humana. O amor ao próximo é sempre consequência da experiência de se saber amado incondicionalmente por Deus. Aí toda a minha prática da espiritualidade e da justiça são práticas da fé, que busca e ama o Senhor incondicionalmente e que se volta e ama o próximo da mesma forma, incondicionalmente.

No Novo Testamento, Jesus faz sérias críticas e advertências tanto em relação à prática do jejum (Mt 6.16-18; 9.14-17) como também em relação à observância do sábado (Mc 2.23-28). Em vários outros momentos, Jesus teve que se ocupar com a discrepância entre a vida de fé e a justiça da fé de seus contemporâneos, principalmente da parte daqueles que eram responsáveis espiritualmente pelo povo, os religiosos, escribas, fariseus, intérpretes da lei. A célebre frase do profeta Oseias: misericórdia quero e não sacrifícios é dita por Jesus na casa de um publicano chamado Mateus (Mt 9.9-13). Interessante perceber que, logo após a visita na casa de Mateus, os discípulos perguntam a Jesus sobre o jejum. Em seu sermão profético sobre o final dos tempos (Mt 24.1 – 25.46), Jesus também aborda aquilo que hoje chamamos de obras da misericórdia, caracterizando, dessa forma, a verdadeira adoração e fé.

Atualmente, vivemos um fenômeno sociocultural e religioso por demais hedonista e individualista, o qual tem se inserido sorrateiramente também no contexto da comunidade cristã. A busca por felicidade, prazer e por interesses pessoais transforma a espiritualidade também em algo intimista e individualista. As pessoas consomem religião para si mesmas ao invés de viverem a fé em favor das outras pessoas. Ritos e práticas religiosas são feitos com boas intenções, mas geralmente por medo de não serem abençoadas, o que leva à barganha com Deus, ou então à falsa religiosidade, uma vida de fé aparente, totalmente descomprometida com as pessoas em sua volta. É um “louvorzão” sem o rosto prostrado no chão. É amar o próximo como desencargo de consciência e não como encargo de uma essência diaconal. É um amor a Deus desvinculado do amor ao próximo, um amor ao próximo como a si mesmo, sendo esse mesmo um narcisista.

O pior é que pessoas que assim vivem sua fé, assim como o povo de Israel, fazem inúmeros questionamentos a Deus: Onde está Deus? Por que Deus não  me ouve? Por que Deus não me cura? Por que Deus não satisfaz os desejos do meu coração mimado? O texto previsto para a pregação deste domingo vai contra o que poderíamos chamar de “mimimi espiritual”. Se Jesus nos perdoou os pecados, morrendo na cruz do Calvário e ressuscitando para nos dar uma nova vida, então não precisamos mais nos preocupar com nossos próprios “interesses espirituais”, mas podemos nos ocupar com as “necessidades reais” das pessoas que estão ao nosso redor, cumprindo assim com a missão que Deus nos deu.

 

4. Imagens para a prédica

Por conta do tema do jejum, a perícope tem sido usada como texto para a pregação da Quarta-Feira de Cinzas, marcando o início do período da Quaresma, ou da Paixão de Jesus Cristo. Contudo, como pudemos perceber, o texto nos coloca diante da temática do amor a Deus e do amor ao próximo, das práticas espirituais e da prática da justiça, da verdadeira adoração e da verdadeira ação, do servir a Deus e servir ao próximo. Em suma, o texto nos desafia a viver a essência e a coerência da vida de fé.

Tema da pregação: A essência e a coerência da fé

Introdução: Abordar o cenário no qual vivemos, como descrito acima, destacando a incoerência da vida de fé, quando se busca a Deus e não se pratica a justiça, quando se vive uma vida de fé de fachada. Desde que a ouvi, pela primeira vez, do colega pastor emérito Arno Paganelli, costumo usar a expressão “brincar de igrejinha” para caracterizar esse fenômeno.

1. O Senhor nos lembra do nosso pecado

Enfatizar aqui o aspecto do contexto literário da perícope. As exortações remontam às críticas proféticas pré-exílicas, que destacam os dois maiores problemas do povo de Israel: a) a religiosidade vã e vazia e a injustiça social; b) a idolatria e a adoração a falsos deuses. Esses problemas levaram o povo a perder sua essência, sua identidade, bem como o fez viver uma fé incoerente com a salvação recebida no êxodo.

2. O Senhor dá sentido à nossa vida de fé

Enfatizar aqui o aspecto da ressignificação tanto do jejum como do sábado, os quais não foram abolidos, mas corrigidos, como prática da justiça, exortando o povo a viver a essência e a coerência da fé.

3. O Senhor tem promessas para a sua igreja

Enfatizar aqui as promessas dadas por Deus ao seu povo, não como moeda de troca, como barganha, mas como palavra do Senhor, pois a boca do Senhor disse. As promessas de Deus nos animam a servi-lo e a servir as pessoas com nossos dons. Procure destacar ao final, de forma bem concreta, práticas diaconais da comunidade, bem como práticas espirituais que apontam para a essência e para a coerência da vida de fé da comunidade.

 

5. Subsídios litúrgicos

Liturgia de entrada: No momento da confissão dos pecados, pode-se cantar com a comunidade um hino: Se sofrimento te causei, Senhor (LCI 36). Como parte do texto da oração de confissão, pode-se também ler um trecho da confissão de pecados, que se encontra em Isaías 59.11-15.

Liturgia da palavra: Antes da pregação, sugere-se cantar o cânone Buscai primeiro o Reino de Deus (LCI 150). Após a pregação, sugere-se cantar o hino Transforma, Senhor (LCI 562), ou outro hino que está relacionado com o tema da diaconia: LCI 564 ou 566.

Liturgia de despedida: Ao final do culto, sugere-se cantar o hino de bênção Bênção da Irlanda (LCI 289) ou o hino Guia-nos, Jesus (LCI 604).

 

Bibliografia

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CROATTO, J. Severino. Isaías. A palavra profética e sua releitura hermenêutica. v. III: 56-66, A utopia da nova criação. Petrópolis: Vozes, 2002.
SCHMITT, Hans-Christoph. Arbeitsbuch zum Alten Testament. 2. Auflage. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2007.
SCHNEIDER, Dieter. Der Prophet Jesaja. 2. Teil: Kapitel 40-66. Wuppertal: Brockhaus, 1990.
SCHÖKEL, L. Alonso; DIAZ, J. L. Sicre. Profetas I: Isaías, Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988.

 

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Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).