Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 10.40-42
Leituras: Jeremias 28.5-9 e Romanos 6.12-23
Autoria: Alan S. Schulz
Data Litúrgica: 5° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/07/2023
Os textos bíblicos para este 5º Domingo após Pentecostes podem ser relacionados a partir da temática da vocação para qual Deus chama sua comunidade, principalmente no que se refere ao testemunho público da fé e seus resultados. Qual o conteúdo desse testemunho comunitário que acontece em palavras e ações? Como os discípulos precisam compreender o acolhimento ou não desse testemunho? Em nosso texto, Jesus está encorajando sua comunidade de discípulos. Já na perícope anterior ao texto da prédica, os discípulos são enviados por Jesus para dar testemunho às ovelhas perdidas da casa de Israel (v. 6) e isso tem consequências concretas dentro do texto em questão, pois ele se ocupa da recepção do testemunho apostólico.
Percebemos a mesma relação em Jeremias ao mencionar o profeta Hananias, que anuncia a paz e a reconstrução para o povo que está com sua identidade destruída no exílio, que dificilmente poderia acolher uma mensagem de esperança e muito menos crer nela. A esses é prometida a reconstrução da identidade como povo do Deus Javé. Na mesma perspectiva, também Paulo encoraja seus ouvintes à obediência e ao zelo com a mensagem do Cristo crucificado e ressurreto. Para Paulo, a vocação é o anúncio da vitória de Cristo sobre todas as formas pelas quais a morte se apresenta no mundo, sendo ela o “salário do pecado” como um mal ontológico. Esse é o embalo de Pentecostes, a vocação da igreja para dentro de um mundo contraditório, marcado pelo pecado ontológico e estrutural, onde somos chamados e chamadas para dar testemunho do amor de Deus em palavras e ações.
O capítulo 10 do Evangelho de Mateus se ocupa com um grande discurso para o envio dos discípulos. Alguns exegetas chamam esse capítulo de “grande discurso missionário” ou “sermão de envio dos discípulos”. Nosso texto está na parte final desse discurso, dentro do segundo bloco, que vai dos v. 16 a 42. Nesse bloco são trazidas palavras de estímulo e encorajamento para a missão apostólica, as responsabilidades, os reveses, as contradições e as dádivas de testemunhar o evangelho, a boa nova do Reino de Deus.
A perícope inicia com o envio dos discípulos e uma conceituação importante: quem recebe o mensageiro recebe também aquele que o enviou. Essa declaração é uma chave hermenêutica para o restante da perícope e também uma das palavras de estímulo mais importantes de todo o capítulo 10. Quem recebe o discípulo recebe o próprio Jesus e, ao mesmo tempo, recebe aquele que o enviou. Quem recebe o discípulo e sua mensagem recebe o próprio Deus. A hospitalidade para com o discípulo é a própria possibilidade de receber Deus como visitante. O discípulo carrega a presença de Deus no mundo, não com um fim em si mesmo, não para proveito individual, mas com o objetivo de atingir seus ouvintes e esses participarem da bênção que é a comunhão com o próprio Deus. A expressão quem vos recebe denota a aceitação do conteúdo da mensagem apostólica. Jesus enfatiza que quem recebe a mensagem, também recebe as dádivas que o mensageiro traz, chamadas no texto de galardão. Essa expressão, por sua vez, não deve ser compreendida como uma recompensa dada pelos esforços pessoais daquele que acolhe o discípulo, mas sim como a oportunidade de estar em comunhão com o próprio Deus. Esse é o grande presente para quem acolhe a mensagem. Pois também havia lugares em que a pregação apostólica não era bem-vinda e os apóstolos sofriam ali as consequências do seu testemunho de fé.
Destacamos ainda duas expressões importantes utilizadas pelo redator: a referência ao copo de água fria e a descrição dos discípulos como sendo esses pequeninos. A primeira denota que não se deve esperar uma recepção cheia de pompas ao mensageiro. Ela pode ser bem simples, sem qualquer tipo de protocolo rebuscado. Ser recebido com todas as honrarias não deve ser o objetivo da pregação apostólica. Dar um copo de água fria simboliza uma acolhida despretensiosa, ou seja, sem segundas ou terceiras intenções. O discurso de Jesus deixa claro que a recepção do discípulo não o enaltece como mensageiro, pelo contrário, sinaliza seu acolhimento e o mantém em seu lugar como o porta-voz, nunca como proprietário da mensagem. Ele não é mais importante do que a mensagem que carrega. Nesse sentido, o mensageiro não pode usar a mensagem em benefício próprio, como alguém que receberia honrarias por tê-la ou por carregá-la. Precisa, isto sim, compreender-se sempre como um pequenino diante da grande missão para a qual foi chamado.
Jesus corrobora essa ideia, como já afirmamos acima, ao chamá-los de pequeninos. Os discípulos mensageiros não são pequeninos por causa de sua condição material miserável, por algum tipo de humildade pessoal, ou ainda por simples autocomiseração. O que faz com que seu mestre os chame de pequeninos é sua posição de fragilidade diante dos poderes instituídos neste mundo. Poderes que, apesar de serem conquistados pela força bruta, por condições materiais ou políticas adversas, são efêmeros e passageiros. Os poderosos deste mundo, os grandões ou famosos, reforça Rienecker, a esses “muita gente quer prestar homenagens e gentilezas”. Os discípulos não pertencem a esse grupo e não fazem parte de uma lista de celebridades que são aguardadas ansiosamente. Por isso quem os acolhe recebe também a bênção da mensagem que carregam, a própria presença de Jesus Cristo, e assim o próprio Deus (Rienecker, 1998, p. 184).
Por ocasião do Pentecostes, a comunidade foi investida com a tarefa missionária de dar testemunho público da sua fé, com e na presença do Espírito Santo, que cria comunhão e fé. Esse testemunho acontece num mundo que não é perfeito, pelo contrário, está marcado pela morte, que se manifesta de diferentes formas: violência, desentendimentos, polarizações, radicalismos religiosos, políticos, assassinatos etc. Aqueles que se advogam possuidores da verdade, em nome de Deus, e que sustentam sua argumentação por meio de uma leitura fundamentalista da Bíblia, se enquadram nesses instrumentos de morte. Seus discursos segregam o corpo de Cristo e contribuem para a vulnerabilidade teológica e confessional da comunidade. Esse mesmo paradoxo do discurso religioso fundamentado no ódio já existia no cristianismo do primeiro século e se tornou um desafio para toda pessoa que levava a mensagem do Cristo crucificado e ressurreto. O discurso de Jesus convida os ouvintes a acolherem a mensagem do amor de Deus, e com ela, um conteúdo precioso.
Cá e lá as realidades se contrastam e se aproximam. Com cuidado, podemos dizer que o testemunho cristão em nosso tempo também enfrenta o desafio do acolhimento ou da rejeição. Estamos preparados, como comunidade cristã, para enfrentar essas reações à nossa mensagem? Qual é o conteúdo da mensagem que transmitimos? Quando emitimos nossa opinião, não demora muito para que tenhamos reações ao conteúdo do nosso discurso, principalmente se for material postado em nossas redes sociais. Elas se tornaram um laboratório social, onde as pessoas perderam os limites éticos da hospitalidade, da gentileza e do acolhimento. Ao se esconder atrás da tela, as pessoas têm a falsa ilusão de que não precisam responder pelo conteúdo que transmitem, de que estão ilesas de qualquer culpabilidade e crime. Não há mais critérios ou preocupação com a qualidade do conteúdo da mensagem, importa que ela seja acolhida, que tenha visualizações e curtidas. O discurso, nesse contexto, é interesseiro, está rendido ao ouvinte, é palco para toda e qualquer produção de fake news, nos mais variados assuntos, temas e notícias. Quem discorda da opinião alheia é vítima do ódio e do escárnio imediato. Não existe espaço para a contradição. Cada pessoa tem a ilusão de que pode opinar sobre tudo, sem que ninguém tenha direito de questioná-la. O ambiente virtual, mesmo com iniciativas de regulamentação, ainda se apresenta como uma “terra sem lei”.
É nesta realidade que a comunidade cristã carrega o seu conteúdo, a saber, o evangelho como boa notícia de Deus que se manifestou em Jesus Cristo crucificado e ressurreto. É neste ponto que o nosso texto se encaixa. Ele traz a promessa de que aquele que acolhe o mensageiro acolhe também quem o enviou. Ao carregar a mensagem da cruz e da ressurreição de Jesus, a pessoa acolhida traz a possibilidade do hospedeiro receber o próprio Cristo em sua casa. E quem acolhe Jesus Cristo acolhe o próprio Deus. A mensagem é mais importante do que o mensageiro. Ela é o centro da ação de Deus no mundo por meio da sua comunidade de discípulos e discípulas. Deus usa nossos dons na sua missão e a pessoa mensageira de Deus está sempre a serviço dele no mundo. Ela não é proprietária da mensagem da cruz e da ressurreição. Ninguém pode apropriar-se de Deus em seu próprio benefício, nem sentir-se o mais importante em sua tarefa. Ao invés disso, ser uma pessoa mensageira do Reino de Deus é assumir os riscos da missão tendo a certeza de que Deus a acompanha, mesmo que ela se compreenda como pequena e fraca.
Numa perspectiva antropológica luterana, esse texto revela a fragilidade do mensageiro e, dialeticamente, a ação misericordiosa de Deus ao enviá-lo. Porém, não é o mensageiro nem mesmo o ouvinte que produzem a presença de Deus. É o próprio Deus, como conteúdo, que se faz presente onde o seu enviado e sua mensagem são acolhidos. Como seres humanos, carregamos as limitações da nossa própria existência temporal, permeada pelas contradições da vida, nossos sonhos, anseios e frustrações. Deus usa a sua comunidade de fé como instrumento para apontar caminhos de paz e justiça no mundo com sua presença salvadora e transformadora.
O conteúdo da nossa fé e da nossa mensagem é a boa notícia do amor de Deus revelado no Cristo crucificado e ressurreto. Deus chama sua comunidade a viver esse testemunho em palavras e ações. Podemos apontar duas perspectivas a partir do nosso texto bíblico. A primeira, mais abrangente sobre todo o capítulo 10, é que o testemunho público da fé enfrenta desafios, pode ser acolhido, produzindo comunhão e partilha na presença de Deus, como também pode ser rejeitado. Dependemos sempre do contexto em que pregamos e o risco que assumimos na dimensão profética da denúncia, do enfrentamento de situações onde nosso conteúdo está em descompasso com a indústria cultural vigente.
Outra possibilidade é apontar a dimensão da hospitalidade e do acolhimento diante da pregação. O resultado do acolhimento aparece como a promessa de que, ao acolher o mensageiro, acolhe-se o próprio Deus. Como podemos nos apropriar dessa mensagem para refletir sobre o nosso jeito de ser comunidade? Podemos ser mais acolhedores? Nossa ação é relevante em nosso contexto? A comunidade cristã lida constantemente com essas perguntas e a partir delas reflete sobre a natureza e o sentido da sua existência. Nosso conteúdo é precioso, quem o acolhe tem a oportunidade de participar da festa da vida, da comunhão do corpo de Cristo. Essa é uma enorme dádiva, é a promessa do Reino que vivemos desde já, mas ainda não de forma plena.
Pode ser utilizada a oração de Francisco de Assis, seja de forma literal ou como inspiração para a formulação da oração geral da igreja. Ela pode ser colocada na primeira pessoa do plural e lida junto com a comunidade. Ela se relaciona com o tema da perícope, uma vez que intercede por um testemunho de fé pessoal ou comunitária que transforma realidades, não por si mesmo, mas pela ação do conteúdo da fé – Jesus Cristo.
Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvida, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve a esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz!
Ó Mestre, faze que eu procure mais:
consolar do que ser consolado;
compreender do que ser compreendido;
amar do que ser amado.
Pois é dando que se recebe;
é perdoando que se é perdoado e
é morrendo que se vive para a vida eterna!
Amém.
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural. In: Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986. p. 92-99.
BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã, 2008.
RIENECKER, Fritz. Evangelho de Mateus. Curitiba: Evangélica Esperança, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).