A Ceia do Senhor – O sacramento do altar
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 14.22-26
Leituras: 1 Coríntios 10.16-17 e 1 Coríntios 11.17–34
Autor: Marcos Henrique Fries
1. Introdução
Até a Reforma no século XVI, a igreja considerava sete sacramentos: Batismo, Ceia do Senhor, Confirmação/Crisma, Penitência, Unção dos Enfermos, Ordenação e Matrimônio, assim como a Igreja Católica Romana ainda o faz. Todavia Martim Lutero, mesmo que durante algum tempo se tenha questionado sobre o caráter sacramental da penitência, logo chegaria à conclusão de que são apenas dois os sacramentos, considerando sua clara e inequívoca fundamentação nas palavras de Jesus: Batismo e Ceia do Senhor. Este auxílio homilético tratará do tema “Ceia do Senhor”. Mas não é possível compreender a Ceia do Senhor na ótica luterana, sem antes entender o conceito de sacramento, qual seja: sacramento é ação de Deus em favor de seu povo. É o evangelho, a declaração do amor de Deus pela humanidade pecadora, dada a nós através de elementos visíveis, como a água, o pão e o fruto da videira. Essa declaração de amor (evangelho) chega às pessoas mediante a pregação, levando-as a refletir intelectualmente sobre esse amor, mas chega às pessoas também mediante o sacramento, levando-as a sentir/experimentar concretamente, através dos sentidos (olfato, audição, tato, paladar, visão), o amor de Deus por elas. Lutero apreciava muito a definição agostiniana de sacramento: “Quando a palavra se acrescenta ao objeto exterior, ele passa a ser um sacramento”. Logo água, pão e fruto da videira, desde que unidos à ordem de Jesus, são elementos que oferecem o evangelho da salvação, embora não verbalmente.
No Catecismo Maior, ao refletir sobre o “Sacramento do Altar”, como o reformador chama a Ceia do Senhor, Lutero apresenta três pontos que considerava importantes para a compreensão e correta administração da Ceia. São eles: o que é, para que serve e quem deve/pode receber a Ceia. Essas páginas do catecismo deverão ser lidas por quem pregará sobre o tema, e logo saltará aos olhos do/da pregador/pregadora a importância que Lutero dá à palavra (ordem e promessa de Cristo ao instituir os sacramentos), sem a qual pão e fruto da videira não passam disso, e à fé de quem toma parte na celebração. Sem a fé, que receberá os benefícios ofertados por Cristo, ainda que o sacramento não perca sua validade, ele deixará de ter eficácia na vida do comungante.
Aqui, neste auxílio, gostaria de olhar para uma das muitas dimensões do Sacramento do Altar abordadas pelo reformador em seu estudo: a utilidade (para que serve) da Ceia do Senhor. Destaco um trecho de seu texto: “Por isso [este sacramento] com razão se chama alimento da alma, que nutre e fortalece a nova pes- soa. Pelo Batismo, em primeiro lugar, nascemos de novo, mas, além disso (como dissemos), a velha pele continua em forma de carne e sangue da pessoa; há tanto impedimento e provação por parte do diabo e do mundo que, muitas vezes, ficamos cansados e debilitados, às vezes também cambaleamos. Por isso [o sacramento da Ceia] foi dado como repasto e alimento diário, para que a fé se recupere e fortaleça e não tenha uma recaída nessa luta, mas fique cada vez mais forte” (Catecismo Maior – Sinodal/Concórdia, 2012, p. 121).
Lutero faz uma importante ligação entre o Batismo e a Ceia do Senhor. No Batismo, nascemos como filhos/filhas de Deus, que têm um compromisso de viver com ele e em conformidade com os seus preceitos. Mas o velho ser humano, que ainda não pertencia a Deus, vez ou outra reaparece, desviando-nos do caminho que nos propomos trilhar pela fé. Assim, a Ceia do Senhor quer ser alimento que nos revigora e fortalece o compromisso assumido por ocasião do Batismo.
2. Reflexão bíblica
São três os textos bíblicos sugeridos para este subsídio. Eu os abordo mais a partir dos comentários tecidos por Lutero acerca deles do que o entendimento clássico dos mesmos, que certamente já são conhecidos do/da pregador/pregadora.
2.1 – Marcos 14.22-26
Trata-se do relato da instituição da Ceia realizada por Jesus na Quinta-feira da Paixão, no contexto das comemorações da Páscoa judaica, quando as famílias reuniam-se para lembrar e comemorar a libertação da escravidão no Egito. Cordeiro assado, ervas amargas, pães e vinhos compunham o cardápio típico dessas ceias cerimoniais, tendo cada alimento um caráter simbólico, apontando para o evento comemorado. Jesus, entretanto, ressignificou o papel do pão e do vinho ao oferecê-los aos onze discípulos (Judas já se havia retirado) como sendo seu corpo e seu sangue. Tratava-se de uma representação dramática daquilo que, no dia seguinte, Jesus viria a fazer literalmente: dar o seu corpo e derramar o seu sangue em favor da humanidade.
Marcos, como igualmente Mateus e Lucas, afirma ter Jesus chamado o cálice de vinho de “sangue da nova aliança”, numa alusão à primeira (ou antiga) aliança, que estabelecia o sacrifício de animais e o derramamento de seu sangue para obtenção do perdão de Deus. Agora, na nova aliança, é o sangue de Cristo que cobre os pecados (cf. Mt 26.28). Esse ponto chamou a atenção de Lutero quando refletiu sobre esse texto. Em seu comentário, a Santa Ceia é a nova aliança (testamento) de Deus com seu povo: “O testamento é indubitavelmente a promessa de alguém que está prestes a morrer, através da qual declara sua herança e institui herdeiros. (…) Ele nos deixa a sua morte como testamento, quando diz: ‘Este é o meu corpo que será entregue; este é meu sangue que será derramado’. Declara e designa a herança quando diz: ‘para remissão dos pecados’ (Mt 26.28). Institui, porém, herdeiros quando diz: ‘por vós e por muitos’, isto é, aqueles que aceitam e creem na promessa do testador, pois aqui a fé determina os herdeiros” (Obras Selecionadas v. 2, 362. In: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. SBB, 2012. Comentário sobre Marcos 14.24).
2.2 – 1 Coríntios 10.16-17
Estes versículos fazem parte de um apelo do apóstolo Paulo para que os cristãos de Corinto abandonem a idolatria. A adoração de vários deuses estava totalmente arraigada na cultura grega. Nas cidades, também em Corinto, havia ídolos nas esquinas das ruas e nas casas. Sociedades cívicas prestavam homenagens a seus deuses favoritos, e cidades adotavam alguns como seus protetores especiais. Os templos pagãos eram quase sempre frequentados, especialmente em Corinto, por causa de seus atos de prostituição cultual. Além disso, grande parte do alimento vendido no mercado havia sido oferecida em adorações a diferentes ídolos. Paulo chama a atenção para o fato de que muitos membros da comunidade cristã participavam desses eventos e comiam alimentos sacrificados aos ídolos. Ainda que nem o ídolo tampouco o alimento oferecido a ele tenham algum valor, o apóstolo exorta a comunidade a não participar desses rituais, e no centro de sua argumentação fala da Ceia do Senhor: “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1Co 10.21). Participar dos cultos pagãos era ter comunhão com os ídolos ali adorados (ou os demônios que estavam por trás dos ídolos); participar da Ceia do Senhor era ter comunhão com Cristo e com os/as irmãos/irmãs da comunidade.
Na refeição pascal judaica, quatro cálices eram servidos. O terceiro era o “cálice da bênção”. É provável que Jesus tenha instituído a Ceia com esse cálice. Dele bebendo e do pão comendo, a comunidade torna-se um só corpo com o Senhor e com o próximo. É o que chama a atenção de Lutero nesse texto. Segundo ele, na Santa Ceia, “Cristo forma um corpo espiritual com todos os santos, assim como o povo de uma cidade constitui uma comunidade e um corpo, sendo cada cidadão membro do outro e da cidade inteira. (…) Receber esse sacramento em pão e vinho não é outra coisa senão receber um sinal certo dessa comunhão e incorporação em Cristo e todos os santos”. (Obras Selecionadas v. 1, 429. In: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. SBB, 2012. Comentário sobre 1 Coríntios 10.17).
2.3 – 1 Coríntios 11.17-34
Paulo censura a comunidade de Corinto em virtude da profanação da Ceia do Senhor. A igreja era formada, em sua maioria, pela classe mais pobre, incluindo escravos; e aparentemente os membros mais ricos, que não queriam dividir sua comida, tomavam antecipadamente sua própria ceia, de tal maneira que, quando os mais pobres chegavam para a refeição, muitos que se haviam antecipado já se encontravam até mesmo embriagados. Na visão do apóstolo, essa falha da igreja era responsável pelo fato de muitos membros estarem sofrendo aflições ou terem até mesmo morrido (v. 30).
Após diagnosticar o problema, Paulo cita as palavras de instituição proferidas por Jesus. Aliás, essa é a narrativa mais antiga da instituição, escrita antes mesmo dos evangelhos. A lembrança do gesto de Jesus culmina com o versículo 26: Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes o cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha. Daí a importância de celebrar dignamente a Santa Ceia, pois ela é testemunho do que Jesus fizera em favor das pessoas através de seu sacrifício.
O reformador Martim Lutero em sua reflexão sobre essa perícope observa que a celebração digna da Ceia depende da situação dos comungantes: “A melhor preparação para a Santa Ceia é uma alma atribulada por pecados, morte e tentações, faminta e sedenta de ajuda e força” (Obras Selecionadas v. 7, 168. In: Bíblia Sagrada com reflexões de Lutero. SBB, 2012. Comentário sobre 1 Co 11.25). E assevera para os que não sentem fome e sede por esse sacramento: “Para os que estão neste estado mental de não o sentirem, não sei conselho melhor que o de botar a mão no seu peito para sentir se você ainda tem carne e sangue” (Catecismo Maior, p. 127).
3. Meditação
“Se você conseguisse enxergar quantas facas, lanças e flechas estão apontadas para você em todos os momentos, ficaria contente por poder ir ao sacramento quantas vezes pudesse” (Catecismo Maior, p. 128). Assim, Lutero insistia para que as pessoas não deixassem de ir ao Sacramento do Altar. Sua preocupação é com o fato de que muitos não estão mais atendendo ao chamado para a Santa Ceia. Ao que tudo indica, a liberdade experimentada pelo conhecimento do evangelho fez com que o povo abandonasse a mesa do Senhor: “Muitos ouvem o evangelho e, já que acabou a palhaçada do papa e agora estamos libertos da sua coação e do seu mando, ficam um, dois ou três anos, ou até mais, sem o sacramento, como se fossem cristãos tão robustos que dele não precisassem” (Catecismo Maior, p. 123). “Cristãos robustos” seriam as pessoas que, de tão firmes em sua fé, não necessitam de alimento para ela, desprezando por isso a celebração da Santa Ceia. E, como já vimos no início deste auxílio, “nascidos de novo” pelo Batismo, muitos precisam desse alimento para não esmorecer em sua fé e obediência a Deus.
Se essa era a situação no século XVI, que diremos a respeito do nosso tempo? Creio que, mais do que os contemporâneos do reformador, nosso povo necessita ser despertado para a importância da vida celebrativa e, consequentemente, da Ceia do Senhor. Há um crescente esfriamento do desejo de estar em comunidade para celebrar. Talvez a IECLB ainda não tenha alcançado os assustadores índices da Europa secularizada, mas caminha nessa direção. Essa preocupação reflete-se no tema escolhido para 2013: “Ser – Participar – Testemunhar – Eu vivo comunidade”. Está sobrando cada vez mais espaço debaixo do guarda-chuva. É possível que nossos membros não vejam mais sentido no culto. É também possível que se considerem “cristãos tão robustos” que não sintam necessidade de viver em comunidade e celebrar o sacramento.
Muitas famílias que integram a comunidade vivem conflitos de toda ordem, experimentam derrotas e frustrações constantes, amargam enfermidades físicas e emocionais. Provavelmente nunca nos sentimos tão estressados e psicologicamente cansados do que agora. Além disso, é provável que nunca antes tenhamos sido tão tentados a fazer o que não confere com a vontade de Deus. Está difícil obedecer aos preceitos de Deus com tantos convites ao pecado. Eis por que a categoria de “cristãos robustos” simplesmente não existe. “Aquele, pois, que pensa estar em pé veja que não caia” (1Co 10.12). Logo nosso povo luterano necessita urgentemente de “repasto e alimento diário, para que a fé se recupere e fortaleça e não tenha uma recaída nessa luta, mas fique cada vez mais forte” (Catecismo Maior, p. 121). Esse alimento encontra-se no culto comunitário e de maneira especial na Ceia do Senhor, um dos eixos do culto cristão ao lado da palavra pregada. Saliente-se que uma maior frequência na celebração do sacramento tem sido advogada nos últimos anos através das pesquisas litúrgicas.
Apesar da necessidade de alimento que nos fortaleça para as lutas e nos ajude a permanecer fiéis no caminho da justiça de Deus, nem sempre é no culto e na celebração da Ceia que o povo tem encontrado esse tônico. Se em Corinto os cristãos participavam de outras mesas e de outras comunhões para saciar sua fome e sede, parece que é nos bailes, nos clubes, nos campeonatos esportivos, na casa de praia ou no sítio que o nosso povo tem encontrado refrigério. Para os coríntios, o apóstolo solicita que não mais participem dessas comunhões por se tratar de cultos idólatras. Nós, porém, não proibiremos nosso povo de ter sua vida social, mas alguma coisa precisamos fazer para que novamente encontre no culto e na Ceia o “remédio benéfico, confortador, que vai ajudá-lo, vai dar vida à alma e ao corpo” (Catecismo Maior, p. 126-127).
Eu temo, porém, que a frieza em relação ao culto e ao sacramento sejam uma consequência da frieza em relação a Deus. Parece que estamos insistindo que as pessoas se comprometam com a vida cultual sem antes comprometer-se com Deus. E essa é uma luta sem sentido. Há quem diga que o problema da baixa participação dos membros nas celebrações possa ser resolvido com cultos avivados, novos hinos e mais espontaneidade. Pode ser. Mas eu creio que esse problema estará resolvido quando as pessoas firmarem sincero compromisso com Cristo. Então a igreja não mais será clube para realização de bênçãos matrimoniais ou sepultamentos, mas espaço de encontro com Deus e com os/as irmãos/irmãs, tendo o culto/Ceia como alimento indispensável. Se, conforme Lutero em sua análise de Marcos 14.22-26, a Ceia é o testamento de Cristo, que antes de morrer deixou–nos como herança o seu perdão, então só mesmo quem não ama o testador deixará de recebê-la.
4. Pistas para a prédica
Há muitas maneiras de abordar o assunto Ceia do Senhor. Neste estudo, destacamos a questão da importância em atender o chamado de Cristo para dela participar, considerando que nela se encontra “remédio benéfico, confortador, que vai ajudá-lo, vai dar vida à alma e ao corpo”. Entre outras coisas, conforme Martim Lutero, a Santa Ceia é o alimento que nutre a fé, auxiliando-nos a viver como batizados/batizadas.
Assim, proponho que o/a pregador/pregadora inicie a mensagem falando dos conflitos, adversidades e tribulações a que estamos expostos em nossos dias, procurando abordar situações vividas por famílias da comunidade local. Em seguida, faça a seguinte pergunta: Onde ou em que você tem buscado socorro para tais situações? Então convém apontar para as muitas opções que as pessoas têm feito na busca por alívio e força e o quão passageiras e enganosas muitas dessas alternativas são. Aí se apresenta o culto/Ceia do Senhor como espaço de cura real e perene, em que o testador Jesus Cristo distribui sua herança para os que o buscam.
5. Subsídios litúrgicos
Não é preciso dizer que, no culto em que esse assunto for abordado, deveria ser realizada a celebração da Ceia do Senhor. Na anamnese da Oração Eucarística, agradecer por Cristo ter instituído o Sacramento do Altar como remédio para as almas atribuladas; na epiclese, rogar que o Espírito de Deus, através da comunhão eucarística, nos conceda o descanso e socorro de que precisamos.
Um vídeo muito interessante poderia ser compartilhado durante o culto no momento em que a equipe litúrgica achar mais conveniente. Ele se chama “Um homem caiu no buraco”. Mostra a inutilidade das muitas opções feitas por um jovem que tenta libertar-se do buraco em que caiu e da solução definitiva encontrada em Jesus. (http://www.youtube.com/watch?v=2jFMWraxk4Y)
Um belo hino poderia ser cantado ou ao menos lido pela comunidade reunida: HPD I, 142 – “Ó vinde, convidados”.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).