A Comissão Nacional Católico- Luterana. Retrospectiva e desafios
Ervino Schmidt
É extremamente gratificante podermos olhar para uma já considerável caminhada ecumênica, para uma história comum. Dela faz parte um longo processo de diálogo teológico-pastoral entre nossas Igrejas, diálogo simultaneamente respeitoso e crítico, marcado, acima de tudo, pelo amor. Referio-me ao diálogo oficial como ele acontece na Comissão Nacional Católico-Luterana. Aliás, a Comissão no ano em curso completa 35 anos de existência. É justo, portanto, que no início desse encontro de Bispos e Pastores Sinodais recordemos alguns momentos da história da mesma. Queremos antes, porém, fazer referência, se bem que muito breve, a alguns fatos que, de certo modo contribuíram para abrir caminho ao movimento ecumênico.
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1. Horizontes se ampliam
Um fato que merece ser mencionado como de grande alcance para a instauração de diálogos entre as Igrejas em nosso meio, sem dúvida, foi a declaração de liberdade religiosa no início do Império brasileiro.
Durante todo o período colonial a Igreja Católica Romana detinha o monopólio religioso. Ela era, como sabemos, a única Igreja reconhecida. São contingências históricas! Assim, ser cristão no Brasil não era apenas uma questão de fé, mas também legal. Era difícil a vida para os poucos protestantes que havia na época.
A título de curiosidade: Em São Vicente, hoje Santos, já em 1554 havia um pequeno grupo de luteranos reunido em torno de Heliodor Eoban Hess, filho de um amigo de Lutero (M. Begrich).
O grande movimento imigratório de luteranos, vindos da Alemanha, aconteceu no período do Império brasileiro. No mesmo ano da vinda da primeira leva de imigrantes, ou seja, em 1824, a constituição imperial já garantia a liberdade religiosa dos acatólicos, assegurando que ninguém podia ser perseguido por motivos religiosos enquanto respeitasse a religião do Estado. Junto com a liberdade, portanto, impunha-se claras restrições. Diz o texto oficial: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do Império, todas as outras religiões serão permitidas com o seu culto doméstico ou particular, em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior de templo” ( constituição imperial de 25 de março de 1824, art 5, apud M. Dreher. In: Igreja e Germanidade, p 23a ). De qualquer maneira, foi um primeiro importante passo. A separação de Igreja e Estado, no entanto, viria mais tarde com o estabelecimento da República.
Vieram para o Brasil, também, movimentos missionários protestantes. Estes buscavam a unidade na estratégia da evangelização. Não deixava isso de ser um esforço de comunhão, porém intra-protestante! A dimensão ecumênica passava necessariamente por um ideal missionário que destacava a evangelização e o engajamento nas ações pela liberdade de culto. Essa era uma constante.
Um testemunho protestante mais unido foi também uma preocupação geral entre as sociedades missionárias norte-americanas e européias. A mensagem a ser levada para as nações não podia ser dividida! Acima de tudo, não podia haver concorrência nos campos missionários. Precisava haver entendimento.
Essas foram algumas das preocupações da Primeira Conferência Missionária Mundial, realizada em Edimburgo, capital da Escócia, em 1910. No próximo ano festejaremos o centenário dessa Conferência. Quanto aos campos de missão, a proposta principal era evangelizar os povos considerados pagãos. Pensou-se, principalmente, nos povos da Africa e da Ásia. A América Latina, vista como continente católico, portanto já cristianizado, não era considerada uma região missionária. Mas líderes de algumas juntas missionárias, especialmente das que atuavam no continente latino-americano mostraram sua insatisfação. Para eles a decisão de Edimburgo era um equívoco.
Conseqüência direta disso foi o surgimento da Comissão de Cooperação para a América Latina (CCLA) que, em 1916, organizou o célebre Congresso do Panamá.Neste são traçadas as coordenadas para a evangelização em nosso continente. Firma-se um determinado ideal de unidade e de cooperação.
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Esse ideal é assumido pelo Protestantismo brasileiro de missão. Ideal que, ao menos em sua expressão inicial, é marcado por uma cultura anti-católica. Percebe-se “entre as Igrejas oriundas do processo missionário, a existência de uma certa unanimidade, não planejada, evidentemente, em termos de um discurso teológico visceralmente anti-católico, de corte fundamentalista e profundamente marcado por uma ética puritana e individualista” (FE-BRASIL: Ecumenismo, direitos humanos e PAZ”, p.12).
Só bem mais tarde começaram a surgir sinais de superação de tal postura. “Era necessário ampliar as fronteiras de convívio ecumênico” (Darli Alves de Souza).
Os luteranos, num contexto de protestantismo de imigração, nunca assumiram uma postura marcadamente anti-católica.
Já nas primeiras levas de imigrantes alemãs, a partir de1924, havia luteranos e católicos, lado a lado. Passaram pelas mesmas dificuldades e tiveram, no sul do Brasil, a mesma acolhida e eram movidos pelos mesmos sonhos. Houve caminhada conjunta. Em alguns casos houve também tensão. Mais tarde, com comunidades já formadas, muitas vezes chegou-se mesmo a profícua cooperação entre as duas confissões. Não se pode, porém, ainda falar de uma consciente iniciativa ecumênica, muito menos de um diálogo oficial. Esse viria mais tarde.
2. Rumo à Comissão Nacional Católico-Luterana
Em 1948, o Presidente do Sínodo Riograndense (ainda não havia uma Igreja luterana nacional Essa começa a surgir um ano mais tarde) Pastor Hermann Gottlieb Dohms, participou, como convidado, da Assembléia de Fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em Amsterdã. A importância dessa participação é documentada no fato de um número todo de “Estudos Teológicos”, órgão oficial do Sínodo Riograndense, ter-se ocupado com questões ecumênicas. Viu-se a necessidade de colaborar de maneira mais estreita com o Protestantismo brasileiro e ao mesmo tempo incentivar o diálogo com a Igreja Católica Romana. Em 1950 a recém criada Federação Sinodal foi aceita como membro no Conselho Mundial de Igrejas e também na Federação Luterana Mundial.
Isso tudo, sem dúvida representou um grande avanço em termos de abertura ecumênica.
Não podem ser esquecidas as iniciativas do próprio CMI junto às igrejas no Brasil, Já em 1953, por exemplo, através de sua Comissão Igreja e Sociedade, realizou em São Paulo uma Conferência sobre a mesma temática.
As décadas de 50 e 60, de maneira especial, foram marcantes para o avanço do trabalho ecumênico entre nós. Os inícios, por razões históricas, se deram principalmente no sul do país. Nesse contexto devem ser mencionadas, sobretudo, duas pessoas que chegaram a ser chamadas de “ícones do ecumenismo brasileiro” (Jornal Solidário, ano X, n. 429, Porto Alegre, 29de out – 11 de nov. 2004). Trata-se do Pe. Frederico Laufer, S.J. e do P. Bertholdo Weber. Há vários outros nomes que poderiam ser citados. Mas deixemos que esses dois, por assim dizer, os representem. Para ambos o ecumenismo era uma questão de profunda espiritualidade. Em seu ministério a busca de unidade era uma constante. Viram que era necessário dar passos concretos, que era necessário avançar no diálogo. Pe Laufer era professor no Colégio Cristo Rei e P. Weber, na Faculdade de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana. Logo no início do primeiro semestre de 1957, sob iniciativa de ambos, foi realizada uma reunião preliminar para definir os objetivos dos encontros entre as instituições de formação teológica. Nascia, assim, o Grupo Ecumênico de Reflexão Teológica (GERT). Os temas abordados, no decorrer dos anos, foram os mais diversos. O GERT encerrou sua atividade em 1998 Ele foi muito importante porque:
1) …abriu caminhos para as futuras relações formais entre as igrejas(…); 2) pela preocupação em realizar um diálogo teológico, com a explícita intenção de favorecer a aproximação doutrinal entre os cristãos. As atas mostram o caráter teológico dos temas em discussão, como: Igreja, sacramentos, ministérios, e outros. Isso acena para um compromisso com a perspectiva ecumênica na compreensão da fé cristã…; 3) pela preocupação em fazer com que a busca da unidade tivesse também uma dimensão pastoral, fator esse que se intensificou sobretudo a partir de 1971, quando a publicação da Exortação Apostólica Octogesima Adveniens, da Igreja Católica, impulsionou a atenção para as implicações sociais do Evangelho e para a nova teologia latino-americana. Os trabalhos da Sociedade para o Desenvolvimento e a Paz – SODEPAX e a nova teologia emergente, na perspectiva da “libertação”, impulsionam os temas focalizados nesse sentido.( W. 2002, p 102).
As conversações ecumênicas não podiam permanecer no nível teórico, pois é a natureza das mesmas impulsionar para a ação. Assim, em 1969 foi fundado, em Porto Alegre, o Serviço Interconfessional de Aconselhamento (SICA). Mais tarde outros organismos surgiram, como o Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria – CECA (1973) e Centro de Estudos Bíblicos – Cebi (1979).
Outro passo concreto e importante foi a realização, em 1975, do primeiro Encontro de Dirigentes de Igrejas, com a participação da Igreja Católico Romana, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil e da Igreja Metodista. Esses encontros foram decisivos para a posterior criação do Conselho Nacional de Igrejas.
Para os Dirigentes de Igrejas tornava-se cada vez mais forte a consciência que a divisão entre os cristãos é contrária à vontade de Deus, um escândalo para o mundo e um obstáculo para o testemunho comum. Sentiram a dor da separação e passaram a empenhar-se, cada vez mais pelo cumprimento do desejo de Cristo “que todos sejam um”.
Propuseram, então, oficialmente a criação de um Conselho Nacional de Igrejas, “aberto ao diálogo e à colaboração com quaisquer outras organizações eclesiais, sem intenção de substituí-las ou de competir com seus programas” (doc. do CONIC 5, p.53). Entre as atribuições do Conselho está o incentivo aos diálogos bilaterais e multilaterais entre as Igrejas
De grande contribuição para o surgimento do diálogo católico-luterano, tanto em nível internacional, quanto local, foram as conquistas do Vaticano II. Novas possibilidades a partir dele se abriram. O teólogo católico, estudioso de ecumenismo, E. Wolff cita , neste particular, os seguintes elementos advindos do Concilio:
“a liturgia no vernáculo, o uso da Bíblia, a nova eclesiologia, a nova relação com o mundo moderno, a nova relação com as igrejas e com as outras religiões, a elasticidade da reflexão teológica. No Brasil, a presença da Igreja no meio social e o seu compromisso com as questões que o afligem, o surgimento de um modo próprio de fazer teologia, que mostra o vigor e o dinamismo da fé num engajamento concreto no meio social, as comunidades populares que assumem a consciência eclesial, são fatores, entre outros, que influenciam de tal modo na visão protestante do catolicismo que alguns chegam até mesmo a reconhecerem nele ‘o rosto da infância do protestantismo’. A Igreja Católica passa a ser vista como uma Igreja-irmã[…] nesse contexto situa-se o nascimento e crescimento do movimento ecumênico no Brasil .
(Wolff,2002, p.38)
Em 1967 foi criada a Comissão Mista Internacional Católico-Luterana. Ela foi nomeada pela Federação Luterana Mundial (FLM) e pelo Secretariado para a Unidade dos Cristãos, da Igreja Católica Romana para iniciar o diálogo, buscando a unidade na verdade, a eliminação das diferenças causadoras de divisão rumo à comunhão eclesial (koinonia).
Em 1973, o P. Bertholdo Weber passou a fazer parte dessa Comissão. Nesse período foi aprovado o “Relatório de Malta”, documento que recolhe os primeiros frutos do diálogo ecumênico internacional. Em carta de 23 de janeiro de 1974, dirigida ao, Pe. Paulo Homero Gozzi, o então assessor para ecumenismo da CNBB, P. Weber escreve:
“A Comissão Mista Católico-Luterana, em sua 2ª sessão realizada de 8 a 12 de janeiro pp., em Roma, deu especial importância ao processo de recepção dos resultados do diálogo entre católico-romanos e evangélico-luteranos, apresentados no documento ‘O Evangelho e a Igreja’[…] Como primeiro passo, torna-se, a meu ver, necessária a formação de uma comissão mista entre as nossas Igrejas, para uma avaliação do Relatório de Malta e o estudo das implicações conseqüentes para a comunhão eclesial praticada e vivida” (E.Wolff, 2002, p.119)
A CNBB aceitou a proposta e nomeou, no mesmo ano, os padres Jesus Hortal e Sinésio Bohn como seus membros. Já os luteranos seriam representados pelos pastores Bertholdo Weber e Walter Altmann.
Estava constituída a primeira Comissão Mista Católico-Luterana Naciona!. Agora, porém, não se tratava mais de encontros de docentes e sim, de Igrejas através de seus delegados oficialmente nomeados.
3. Alguns frutos do trabalho da Comissão
A Comissão Nacional Mista Católico–Luterana desenvolveu, com fidelidade, suas atividades até os dias de hoje. Por vezes, porém, experimentou momentos de estagnação. Mas reconstituía-se e continuava sua tarefa de estimular diálogo específico entre as duas Igrejas, estudar pontos comuns de doutrina de ambas, refletir os resultados alcançados em diálogos ecumênicos internacionais, organizar seminários de estudo, traçar projetos de ação comum. (cf. Guia Ecumênico da CNBB p. 66-67).
Vejamos alguns exemplos de sua atuação: Logo na primeira fase ela traduziu um importante texto do diálogo católico-luterano internacional, o Relatório de Malta e realizou, no Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto de Pesquisa Ecumênica de Estrasburgo, França, um seminário que resultou na publicação do livro “Desafio às Igrejas”.
No ano de 1978, a Comissão Mista Nacional traduziu o documento “A Ceia do Senhor”.
Em 1980 traduziu a declaração: “Todos juntos sob o mesmo Cristo” (devido aos 450 anos da Confissão de Augsburgo), e em 1983, a declaração intitulada “Martinho Lutero, Testemunha de Cristo” (motivada pelo quinto centenário do nascimento do Reformador.
Em 1998 a Comissão voltou a realizar seminários. O primeiro foi: “Hospitalidade Eucarística”. Os estudos foram posteriormente publicados.
No mesmo ano foi lançado o livro “Doutrina da Justificação por Graça e Fé”, numa co-edição EDIPUCRS / CEBI.
Em 1999 a Comissão redigiu uma carta às Igrejas conclamando-as a ficarem atentas à assinatura do documento de extraordinária importância que viria a ser assinado, em nível mundial, pelas Igrejas Católica Romana e Evangélica Luterana, em Augsburgo, ainda no mesmo ano.
Nos dias 7 e 8 de setembro de 2000, a Comissão realizou, na Casa Matriz de Diaconisas, em São Leopoldo, o seminário sobre Ministérios. Os resultados deste seminário encontram-se na publicação :”Os Ministérios”.
Em 2002, aconteceu o encontro de estudos sobre “Comunhão, Ministério e Sacramentos”.. Não localizei publicação.
Em novembro de 2004 foi levado a efeito um seminário intitulado “A Tradição Apostólica” No momento estuda-se a possibilidade de publicação das palestras também deste seminário.
Em 2006, 15 – 17 de agosto, seminário: “Ministério Episcopal – Ministério Petrino”
Em 2009 – Encontro, em Curitiba, de Bispos e Pastores Sinodais – 10 Anos da Declaração Conjunta sobre a Justificação”.
Em 2010, 21-23 de agosto, Seminário sobre “Por uma Eclesiologia Ecumênica”
Quanto à realização dos encontros de Bispos e Pastores Sinodais, eles são entendidos como um espaço privilegiado de reflexão e vivência ecumênicas.
Bem, o que eu fiz foi tecer memória! Não mais do que isso. Não tive a pretensão de apresentar algo completo e acabado. Mas essa breve memória deixa transparecer que unicamente a graça de Deus leva Igrejas a trilharem o caminho da unidade.
4. Bibliografia
DREHER, Martin.N. Igreja e Germanidade. São Leopoldo: Sinodal, 1984.
FÉ BRASIL. Ecumenismo, direitos humanos e paz. Rio de Janeiro, 2006.
HORTAL, Jesus. 25 Anos de Diálogo Católico-Luterano no Brasil. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 264-270, 1982.
SEMINÁRIO Bilateral Misto Católico Romano – Evangélico Luterano. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002 (Introdução)..
SINNER, Rudolf von; WOLFF, Elias; BOCK, Carlos Gilberto (Orgs.). Vidas Ecumênicas: Testemunhas do ecumenismo no Brasil. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Padre Reus, 2006.
WEBER, Bertholdo. O Diálogo Católico-Luterano Internacional. Estudos Teológicos. São Leopoldo, ano 22, n. 1, p 271-282, 1982.
WOLFF, Elias. Caminhos do Ecumenismo no Brasil: história, teologia, pastoral. São Paulo: Paulus, 2002.