Amado irmão, amada irmã,
você quer ver a glória de Deus? Repito a pergunta: você-quer-ver-a-glória-de-Deus? Mas, será que a glória de Deus se revela também na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil? Ou a glória de Deus só é manifestada nas igrejas pentecostais e neopentecostais? Onde está a glória de Deus? E pergunto mais uma vez: você quer ver hoje a glória de Deus? Se você quer, então se prepare, pois você a verá!
Pedro foi uma importante testemunha do Evangelho. Inclusive, posso arriscar dizer que ele foi um dos discípulos mais transformados pela mensagem da cruz e ressurreição de Jesus. Se antes Pedro era impulsivo e tinha sido capaz até de cortar a orelha de um soldado romano, agora escreve cartas como um sereno e manso pastor de ovelhas. Por isso, sua segunda carta “destaca a importância da Palavra de Deus, profética e apostólica, o poder transformador de Cristo na vida das pessoas e a necessidade de um crescimento contínuo na fé e na experiência cristãs”1.
O Evangelho é, de fato, transformador. Quer transformar vidas e sociedades inteiras. Transforma não pela imposição, mas pela reflexão; transforma não pelo ódio, mas com o amor; transforma não pela boca, mas pela ação; transforma não por determinação, mas pelo diálogo. Enfim, o Evangelho transformou Pedro de um homem grosseiro e bruto em um pastor manso e, ao mesmo tempo, em alguém muito corajoso em sua pregação.
A segunda carta de Pedro não possui um destinatário explícito. Por isso, na teologia, ela está entre as chamadas “epístolas universais”, ou seja, que se destinam a todas as comunidades – e épocas. Fato é que os que criam em Cristo eram uma minoria em um ambiente profundamente hostil à mensagem do Evangelho. Diante disso, tanto a primeira quanto a segunda carta de Pedro são fontes de consolo, resiliência, paciência e resistência, mesmo que estivessem sendo caçados e mortos pelo atroz e implacável Império Romano.
1 A SEGUNDA CARTA DE PEDRO
Contudo, aparentemente nem todos estavam dando ouvidos a mensagem de Pedro. Havia cristãos que desacreditavam do ensino2 de Pedro. A autenticidade da mensagem de Pedro é questionada e agora ele precisa provar aquilo que prega.
Por isso, Pedro retoma a magnífica cena da Transfiguração de Jesus no alto de um monte. Aquela cena maravilhosa e gloriosa foi vista por Pedro. Ninguém lhe contou o que aconteceu. Não! Ele mesmo viu com seus próprios olhos (como já ouvimos anteriormente na leitura do Evangelho). A lembrança deste dia se tornou o argumento de Pedro a favor da mensagem da qual ele apenas é testemunha. Pedro diz: “Porque não lhe demos a conhecer o poder e a vinda do nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade”. (2 Pedro 1.16).
A mensagem proclamada por Pedro não provém de fantasias inventadas ou da sabedoria humana. Pedro presenciou a epifania da transfiguração do Senhor. Ele viveu aquele momento – concretamente, e não em sonho ou visão. Pedro caminhou com Jesus por três anos. A sua mensagem não é fruto de um conhecimento teórico ou ideológico sobre Jesus, mas de um conhecimento prático estabelecido na relação com o Messias. Pedro não experimentou da epifania teoricamente ou ideologicamente, mas concretamente na relação com Jesus em seus três anos de ministério. E isso transformou Pedro!
Era isso que os destinatários da segunda carta de Pedro precisavam compreender. Pedro diz: “Assim, temos ainda mais segura a palavra profética, e vocês fazem bem em dar atenção a ela, como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça no coração de vocês”. (2 Pedro 1.18). A memória de Pedro estava viva e lúcida. Os ensinamentos que Pedro transmitia não eram seus, mas do próprio Senhor. E Pedro aprendeu na prática enquanto caminhava com Jesus.
Por isso, não se vive com Jesus no “mundo das ideias”. O conhecimento de Cristo é adquirido com Cristo no caminhar e na relação com ele. Sim! O testemunho acerca de Jesus pressupõe relacionamento com o Mestre. Por isso a Igreja – corpo de Cristo – é fundamental: é na Igreja que vivemos e testemunhamos de Cristo e com Cristo na relação com outras pessoas. O testemunho da vida com Jesus se dá na relação com o próximo.
2 MOISÉS E JESUS
A transfiguração de Jesus foi um evento maravilhoso. Pedro teve a alegria de vê-la com seus próprios olhos: “Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro e os irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte. E Jesus foi transfigurado diante deles. O seu rosto resplandecia como o sol, e as roupas se tornaram brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com Jesus”. (Mateus 17.1-13). Uau! Talvez nem mesmo um grande filme de Hollywood poderia retratar tão bem a surpreendente cena da transfiguração, mesmo que usasse os melhores efeitos especiais disponíveis. Aquele foi um fenômeno arrebatador.
No Antigo Testamento já havia acontecido algo parecido quando Moisés foi transfigurado diante dos filhos de Israel. Sim, também o rosto de Moisés resplandeceu. Mas há diferenças entre a transfiguração de Moisés e a transfiguração de Jesus:
a) Enquanto a transfiguração de Moisés está no contexto literário da Lei (cf. Êxodo 34-35), a transfiguração de Jesus está no contexto literário de sua morte e ressurreição (cf. Mt 16.21-28): ou seja, da sua paixão e do seu amor;
b) Por isso, enquanto a transfiguração de Moisés está no contexto da Antiga Aliança (sacrifício de animais), a transfiguração de Jesus está no contexto da Nova Aliança (o sacrifício do Cordeiro de Deus – Jesus Cristo);
c) Os dois eventos causam medo (cf. Êxodo 34.30; Mateus 17.6), mas só Jesus diz “não tenham medo” (Mateus 17.6);
d) Para os filhos de Israel, o rosto de Deus estava velado; para os discípulos de Jesus, o rosto de Deus foi revelado;
e) A transfiguração de Moisés está no contexto da conquista da Terra Prometida; a transfiguração de Jesus está no contexto da novidade do Reino de Deus aos gentios.
Portanto, há muita novidade na transfiguração de Jesus!
Aquele evento foi tão glorioso que os discípulos não queriam mais sair dali. É característico do ser humano querer permanecer na zona de conforto. Pedro disse: “Senhor, bom é estarmos aqui. Se o senhor quiser, farei aqui três tendas: uma para o senhor, outra para Moisés e outra para Elias”. (Mateus 17.4). Quanta ousadia, hein? A epifania da transfiguração agora já havia se tornado em atroz tentação! Ao ser elevado, o ego humano não quer mais descer de posição; ao ser transportado para o monte, não quer mais ter os pés-no-chão na realidade concreta; ao experimentar a glória, não quer mais enxergar os sofrimentos. Queriam armar tendas para permanecerem ali para sempre. Aquele, porém, não era o fim, mas apenas o começo! Eles não viveram ali “felizes para sempre”.
3 A GLÓRIA DE DEUS
A transfiguração de Jesus não foi o ponto final da sua missão. Talvez os três discípulos tivessem chegado a acreditar que aquele clímax era, de fato, a consolidação de tudo. Transformaram a transfiguração em ilusão! Pensaram que a glória de Deus estaria apenas e restritamente naquele momento majestoso. Jesus, porém, precisaria passar pela cruz!
A glória de Deus não é uma glória alienante, fugitiva, idealista, opressora e esmagadora. Ao contrário, é glória que se revelou na cruz onde o Filho de Deus foi esmagado por nossos pecados (cf. Isaías 53). O testemunho do Cristo glorioso não vive de “oba oba”, “shows da fé” e “eventos extraordinários”; ao contrário, o testemunho do Cristo glorioso passa pelos sofrimentos da cruz. A sua glória se revelou na cruz – e hoje se revela naqueles que são crucificados, isto é, aqueles que em todos os lugares do mundo sofrem mesmo que não os vejamos. Jesus não foi glorioso apenas na transfiguração. Esse foi um evento pontual. Sua glória esteve manifestada desde seu nascimento (cf. João 1.14) até sua morte (cf. Gálatas 4.14) e ressurreição (cf. 1 Coríntios 15.43).
Amado irmão, amadas irmã,
você quer ver hoje a glória de Deus? Então olhe para a cruz! No Cristo crucificado nós encontramos o rosto glorioso de Deus. Na cruz, o rosto do transfigurado foi desfigurado pela dor e pelo sofrimento. A glória de Deus não está onde queremos que ela esteja; a glória de Deus não está nos enganosos sentimentos que temos ao louvá-lo; a glória de Deus não está em eventos extraordinários; ao contrário, a glória de Deus se revelou na ordinária cruz! Se você quer ver a glória de Deus, você não deve olhar para outro rosto senão para a fronte ensanguentada do crucificado. Por mais que seja difícil aos nossos olhos e à nossa mente crer nisso, é ali que está a glória de Deus.
Por isso, o Evangelho não fala apenas de glória a Deus nas maiores alturas, mas também de paz na terra entre as pessoas a quem ele quer bem (cf. Lucas 2.14). A vida cristã não é feita apenas de momentos maravilhosos, gloriosos e exuberantes. Por isso, não há como dizer “glória a Deus nas maiores alturas” sem que sejamos transformados pelo Evangelho tal qual Pedro para a promoção da “paz na terra entre as pessoas a quem ele quer bem” (com perdão pela redundância de textos).
Assim como a glória de Deus se manifestou no Cristo crucificado, da mesma forma a glória de Deus continua se manifestado em lugares em que nos negamos a vê-la. Onde está o rosto glorioso de Deus? No rosto de quem passa fome; Onde está o rosto glorioso de Deus? No rosto de quem mora na rua; Onde está o rosto glorioso de Deus? No rosto de quem cata lixo para sobreviver; Onde está o rosto glorioso de Deus? No rosto de quem sofre a violência, por qualquer motivo que seja (raça, cor, gênero, etnia, religião etc.); O rosto de Deus está naquilo para que fechamos os nossos olhos e corações! Por isso, passamos uma vida inteira procurando por Deus sem encontrá-lo quando, na verdade, ele vem ao nosso encontro gloriosamente todos os dias em diversas situações de dor e sofrimento.
Lembro palavras muito sábias de Martinho Lutero que nos dizem assim:
Deus, por sua vez, quis ser reconhecido a partir dos sofrimentos e quis reprovar aquela sabedoria das coisas invisíveis através da sabedoria das coisas visíveis, para que, desta forma, aqueles que não adoram ao Deus manifesto em suas obras adorassem ao Deus oculto nos sofrimentos, como diz 1 Co 1.21: “Como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela tolice da pregação.” Assim, não basta nem adianta a ninguém conhecer a Deus em glória e majestade se não o conhece também na humildade e na ignomínia da cruz. Desta maneira ele destrói a sabedoria dos sábios, etc., conforme diz Isaías: “Verdadeiramente tu és Deus abscôndito”.3
Lutero “arremata”, dizendo:
Portanto, no Cristo crucificado é que estão a verdadeira teologia e o verdadeiro conhecimento de Deus.4
Se queremos ver a glória de Deus, precisamos aprender a olhar para os pequeninos que estão famintos, sem roupa, doentes, sentindo-se estrangeiros/estranhos, sedentos, presos e mortos! (cf. Mateus 25.31-46). É neles que vemos a glória de Deus! Em sua cura! Na luta pela dignidade humana! Na construção de uma sociedade mais justa e digna para todas as pessoas! E quando a utopia deixar de ser sonho e se tornar realidade, aquele certamente será um dia glorioso!
No ano de 2014, juntamente com colegas da Faculdade Luterana de Teologia, tive a oportunidade de conhecer pessoalmente as comunidades da IECLB no Nordeste, desde Petrolina/PE até Teresina/PI. Uma das cidades visitadas foi Crato/CE. A comunidade de Crato tinha um projeto que levava uma sopa quentinha para uma favela da cidade, juntamente com a pregação da Palavra. Naquela noite, os colegas e o pastor local decidiram que seria a minha vez de pregar. Então, nós ali fomos e ali conversamos um pouco com as pessoas daquela favela.
Depois, debaixo de um poste de luz, preguei o texto bíblico de Lucas 5.1-15 (a pesca maravilhosa). Lembro que enfatizei a decepção dos discípulos por terem pescado à noite inteira sem terem pescado nada. Falei que Deus não nos abandona em nossos fracassos e enfatizei Jesus como mendigo que “não tinha onde pousar a cabeça”. (cf. Mateus 8.18). Enquanto eu pregava, havia um silêncio absoluto – até mesmo por parte das crianças.
Então, vi ao longe uma mulher que retirava carnes do lixo para se alimentar. Aquela cena foi chocante. É uma cena que me marcou para sempre. E foi ali que entendi que a glória de Deus não pode ser separada da ajuda aos que sofrem. Ali, naquela noite, naquela favela, embaixo de um poste de luz eu percebi que a glória de Deus realmente é encontrada em lugares que não queremos enxergar. Naquela mulher procurando carnes no lixo para comer estava a glória de Deus – não da maneira humana de entender, mas da maneira como o Evangelho entende e ensina.
Amados irmãos, amadas irmãs,
nós já descobrimos a glória de Deus. Mas, para terminar, quero fazer uma última pergunta: onde estão as mãos de Deus? Vou pedir um favor a todos nós: levantemos todos bem alto os nossos braços e as nossas mãos. Aí estão as mãos de Deus! E quantas mãos Deus tem – se as colocarmos a serviço do Evangelho!
Para viver a glória do Reino de Deus, é preciso colocar mãos à obra! Mãos que levam alimento, mãos que levam água, mãos que levam remédios, mãos que levam roupas. Mas não apenas isso. Há gente carente de outras necessidades: de mãos que levem carinho, de mãos e de braços que levem um abraço; de mãos que levem alento; de mãos que levem consolo.
Assim como Pedro, sejamos transformados pelo Evangelho de tal forma que a glória de Deus se manifeste diariamente em nossas vidas nos lugares em que menos imaginamos. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes em Cristo Jesus, amém.
7º DOMINGO APÓS EPIFANIA – TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR | BRANCO | TEMPO COMUM | ANO A
19 de Fevereiro de 2023
P. William Felipe Zacarias
1 ESCOBAR, Samuel. “Segunda carta de Pedro”. in: PADILLA, René (ed.). Comentário Bíblico Latino-Americano – Volume Único. São Paulo: Mundo Cristão, 2022. p. 5207. Edição do Kindle.
2 A palavra “ensino” provém do grego Διδαχń (didaché) que também significa “doutrina”.
3 LUTERO, Martinho. O Debate de Heidelberg – 1518. in: LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Os primórdios – Escritos de 1517 a 1519. 3. ed. v. 1. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2016. p. 49-50.
4 LUTERO, 2016. p. 50.