A MORTE E A GRAÇA EM GEORGES BERNANOS
Diversos motivos podem levar uma pessoa ou grupo de pessoas a deixar sua pátria e vir para o Brasil. Para uns, trata-se de uma aventura turística; basta lembrar Roosevelt que retornou com um novo tapete de onça. Para outros, e uma questão de negócios, e seria bom lembrar um dos primeiros trustes de nossa História, ou seja, o do pau-brasil. Há ainda os que vem catequizar índios; na pior das hipóteses, encontram sepultura pouco digna no estômago dos silvícolas.
Georges Bernanos veio para o Brasil, a fim de cozer a ressaca. Escandalizado com certas medidas políticas, deixou a Europa em 1938, só retornando no final da II Guerra Mundial. Apesar de ter escolhido o pacato interior mineiro, não conseguiu aposentar sua apaixonada indignação pelo que se desenrolava no Velho Continente. E foi do Brasil que expediu alguns de seus escritos polêmicos mais violentos. Deixou aqui grandes admiradores, como Amoroso Lima, Jorge de Lima e Gustavo Corção, nomes que, por certo, dispensam apresentação. Nunca escreveu uma linha sobre as belezas naturais do Rio de Janeiro, mas considerou o Brasil a sua segunda Pátria.
É necessário acrescentar que a vida e a obra de George s Bernanos só podem ser estudadas, consideradas e apreciadas, tendo-se em mente sua nacionalidade e filiação eclesiástica. Bernanos foi francês e católico romano. Essa constatação talvez pareça meramente biográfica. Será, contudo, necessário acentuar que em Bernanos a cidadania e a fé se constituem em vivência apaixonada e sofrida. Seu amor à França e à Igreja Católica Romana é másculo, combativo, entranhado. E ainda aqui é preciso deixar bem claro que essa dedicação não tem por objeto uma grandeza abstrata, pelo menos no que se refere a pátria. Ao pensar na França, Bernanos focaliza imediatamente os franceses, não como expectador, mas como um deles, o que, aliás, está claramente expresso no título de uma de suas obras: Nous autres Français”. Por outro lado, sempre que ele fala acerca da Igreja, recusa-se a aceitar a ideia de uma societas perfecta tão somente. Em. Los Grands Cimetières sous la Lune ele define a Igreja, como sendo uma casa de família, um lar paterno, e nessas casas há sempre desordem, falta seguido um pé nas cadeiras, as mesas estão cheias de manchas de tinta, e as latas de marmelada esvaziam-se como por encanto nos armários. Sua crítica à Igreja não se dirige tanto contra a instituição ou a doutrina, como tais, mas contra o que ele chama de desordem no lar.
Desordem na Igreja ou no Estado – em ambos os casos há seres humano s envolvidos. E pode- se dizer que a preocupação última de Bernanos é o homem, mas nunca o homem-máquina ou o titã ou qual quer ser supranatural, e, sim, o homem que deve ser livre. O homem deve ser livre e por isso Bernanos ataca violentamente tudo o que possa impedir essa liberdade. Ele destrói, é verdade, mas não deixa apenas ruínas empós de si. Existe um critério para o gênero humano e esse é constituído pelo cristão. O cristão é o homem livre. Que significa isso? Encontramos uma boa resposta no citado Nous autres Français Não existe honra em ser cristão. Nós não escolhemos. ‘Eu sou um cristão, honrem-me!’ berram à porfia os sumo-sacerdotes, escribas e fariseus. Seria melhor dizer: ‘Eu sou um cristão, rezem por mim’. Nós não escolhemos. Estamos nesta grande aventura, porque Deus nos colocou nela”. Poderíamos completar tal citação, com uma confissão do próprio Bernanos em La Liberté pour quoi faire?: Não sou um convertido e quase me envergonho de confessá-lo, pois há vinte anos os convertidos estão em moda, talvez porque falem muito, muito mesmo, sobre sua conversão,… e porque os clérigos gostam muito dessa classe de pessoas.
Depois de tudo o que foi dito, pode parecer estranho aos leitores de Bernanos, que seus livros apresentem uma série longa e constante de mortes pavorosas, agonias desesperadoras, assassínios e suicídios. Assim como sua crítica à Igreja deu margem à suspeita de ser ele um cripto-protestante, seus romances podem dar, por vezes, a impressão de niilismo. Tudo isso não procede. Este trabalho e justamente uma tentativa de interpretar o tema da morte na obra de Georges Bernanos. Sendo esse tema uma constante nos diversos livros do escritor, torna-se supérfluo acrescentar que nossa tentativa de interpretação não esgota o assunto.
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Bernanos tem, por assim dizer, sua primeira experiência com a morte, por ocasião de sua primeira comunhão. Relembrando em carta o que sentira aos sete anos de idade, observa que não se deveria ter em mira a realização de uma vida bela e feliz, mas, sim, a morte, o fim de tudo. O fator medo passa a ter influência em sua vida: Tenho medo da morte e infelizmente (talvez o meu anjo da guarda diga: felizmente) penso constantemente nela. A menor indisposição parece ser o prelúdio da enfermidade derradeira, a qual tanto temo. O problema agora passa a ser seguinte: Como livrar-se desse medo. Bernanos julga encontrar uma solução, resolvendo viver e morrer totalmente para Deus: Assim não preciso mais temer essa horrenda morte. Contudo, em uma carta escrita dois meses depois, encontramos estas palavras: Tenho um tal medo da morte e dessa decomposição inevitável, que os cabelos se me eriçam. O aparente paradoxo não nos deve deixar vacilantes. Pode-se realmente constatar uma evolução : o medo da morte passa a ceder o seu lugar frente a uma atitude quase estóica de superioridade ante a morte. A decisão de entregar-se a Deus é motivada apenas pelo desejo de superar o pânico. A vida, por assim dizer, passa a nutrir-se da força da morte. E a consequência é que a morte se torna, uma coisa simples e, ao mesmo tempo, heroica. Existe uma expressão francesa que exerceu considerável influencia sobre o pensamento bernanosiano iI se voit mourir, isto é, ele se vê morrer, mais precisamente – ele morre consciente disso. Exemplifiquemos. A primeira novela de Bernanos, intitulada Madame Dargent , começa com a f rase: Ela não entende; ela não se verá morrer. E o interessante e que toda a narração desmente o início, pois a morte de Madame Dargent será o momento de seu mais completo auto-reconhecimento, conforme se depreende dos seguintes trechos: Tento iludir-me, sonhar que adormeço, que esqueço, que escapo… É inútil! Meu raciocínio nunca esteve tão lúcido, nunca tão aguçada a minha memória, maravilhosamente ativa…” E mais adiante: Aqui, por sinal, … deve ser um lago … espera, preciso debruçar-me… Eu me vi na água… Achaste que eu estivesse morta? Eu. estava refletindo. O original je réflechissais tem o mesmo significado duplo: espelhar ou meditar. A moribunda, portanto, medita acerca de seu passado, ao mesmo tempo que vê espelharem- se as imagens desse passado. Ela se vê no espelho da morte.
Tanto a fase da morte heroica como a da morte espelhado, contudo, são superadas pelo escritor. Uma nova linha passa a ser desenvolvida. A morte humana, dentro dessa nova concepção, só pode ser entendida em função da morte de Cristo. Em última análise, a morte de cada homem é uma morte estranha, porque Cristo morreu nossa própria morte em nosso lugar. Nossa agonia passa a ser participação das trevas da cruz, embora esse fato permaneça desapercebido por nós, quando moribundos. As palavras da priora agonizante, em. Dialogues des Carmélites, exprimem algo disso: Ver- se morrer e uma expressão do povo… Pois bem, Madre, a verdade e que me vejo morrer. E nada me distrai dessa visão.. . Estou sozinha, Madre, inteiramente só e sem consolo… Meu espírito continua a formar ideias reconfortantes, mas são fantasmas de ideias. Não me reconfortam, como não mata a fome a sombra de um pão… Até mesmo Deus se tornou uma sombra… Meditei sobre a morte todas as horas da minha existência e tudo isso não me serve de nada. .. . Como vemos, a morte espelhada transparece nas palavras da priora, mas em primeiro plano está a absoluta impotência da agonia que Bernanos faz participar da agonia de Cristo na cruz.
O primeiro romance de Bernanos, Sous le SoleiI de Satan descreve a agonia do Cristo crucificado como algo quase insuportável: Em certas horas, a simples contemplação é uma provação tão severa a ponto de se desejar que Deus despedace o espelho… É duro ficar parado ao pé da cruz, mais duro ainda, contemplá-la sem desviar o olhar. O desejo do escritor, no sentido de que a cruz seja tornada presente, é tão intenso, que ele inclusive ousa fazer uma identificação. Através de nós, o mesmo ódio procura alcançá-lo, há milênios, na pobre carne humana consuma- se o horripilante assassínio…
O tema da morte em meio de trevas pode ser encontrado em todos romances de Bernanos. Há que examinar agora as diversas variações, nas diferentes obras. No romance citado acima temos a morte amarga de Donissans, depois de uma vida atormentada. Mesmo assim, essa morte é considerada como a mais elevada arte do homem. Contudo, esse pensamento de uma ars moriendi parece não satisfazer totalmente o escritor. Já em sua primeira novela encontram-se as palavras: Não posso morrer… é muito pior ao que eu julgava. Também em L’ Imposture, a morte do abade Chevance é descrita como baixa, covarde, causadora de escândalo, mas simultaneamente humilde. Mesmo os que se reconciliaram com Deus, morrem de uma maneira que se poderia classificar desprezível . A morte está sempre cercada de medo e solidão, vergonha e impotência., escândalo e desespero. Mas é justamente em meio a tudo isso que a agonia se transforma em um ato de amor. É ato de amor, por estar em conformidade com a agonia de Cristo.
Tudo o que foi constatado até aqui no s leva à conclusão de que, em Bernanos, a agonia é critério da vida. Ela é o que dá substância ao ato de viver. Por isso mesmo o medo da morte, o medo na agonia, estão intimamente ligados a uma afirmação da vida; a uma alegria de viver. No seu último romance, intitulado ‘Monsieur Ouine, o escritor traça inclusive um paralelo entre berço e túmulo, assim que a doce infância assoma por primeiro das profundezas de cada agonia. Por isso, os últimos passos obedientes de um condenado à morte são idênticos aos primeiros passos na vida, ou seja, uma unidade de espanto e medo. Eis porque o sentimento de medo da morte o avassala por ocasião da primeira comunhão. Bernanos nunca esqueceu aquela ocasião, a ponto de poder ser constatado um reflexo indiscutível daquele acontecimento na mensagem contida em sua obra. Fé e medo estão incrivelmente próximos, em Bernarnos. Em ‘Chemin de la Croix des Ame”, obra escrita no Brasil, ele exclama pateticamente: Como se a fé fosse uma fonte inesgotável de consolo, que
nos tornasse insensíveis aos baques desta vida… ela é antes uma coroa de espinhos, que nos torna participantes da santíssima agonia — e isso, seguidamente contra a nossa vontade! A fé é, portanto, agonia mesma, luta, fome e sede, vazio que clama pela plenitude de Deus. Como foi dito na introdução, Bernanos não se considerava um convertido. Essa é a única razão, pela qual a fé se torna, para ele, a busca agoniada e desesperada em meio da ausência de Deus. Se Bernanos fosse um convertido, ele procuraria construir algo, usando o que finalmente possui. Seu reconhecimento, porém, é outro e muito mais autêntico. Ele sabe que suas posses não passam de ruínas e que não se trata de construir, mas sim de criar. E a palavra criadora pertence a um outro. Fé, para Bernanos, é nudez perante Deus, o desejo de ser conduzido até o ponto, onde nada mais temos para oferecer.
O tema da participação de nossa agonia na de Cristo encontra um aproveitamento todo especial no romance La Joie. Chantal vive a experiência de ultrapassar a fronteira entre vida e morte. Essa experiência não é outra coisa do que o medo. Mas Chantal sabe que sua passividade tem um sentido, qual seja, o de ser aceita e transferida para uma agonia mais válida porque mais autêntica, a de Deus. O medo da menina ultrapassou a linha limítrofe entre o medo do ser humano pecador e o de Deus na cruz. Chantal vive e contempla o seu próprio medo do ponto de vista do medo divino. E evidente que Bernanos não foi muito feliz em suas considerações, principalmente neste último ponto. Acreditamos que a tendência de não ultrapassar os limites da dor e da agonia terrenas, tendência essa que transparece claramente no Journal d’un Curé de Campagne, apresenta menores perigos de interpretação. Contudo, em ambos os romances existe uma preocupação autêntica de tornar bem claro o sentido e o critério do medo autenticamente cristão. Bernanos julga encontrá-lo no conceito da representação, isto é, o sofrimento vicário e, por extensão, o medo e a agonia vicária. De um padre é dito que ele presenteava a mancheias a paz que não o preenchia. E algo bem semelhante é afirmado acerca de outro: Visivelmente corroído pelo medo, ele permanece o doador de tranquilidade, certeza, paz.
Depois de tudo o que foi dito, resta-nos penetrar na problemática do único drama de Bernanos Dialogues des Carmélites. O medo de Blanche só tem uma possibilidade e um fundamento no medo da morte, experimentado por Cristo . Toda a sequencia de pensamentos é bastante complicada, devendo ser seguida cuidadosamente. O medo , em Blanche, está, por assim dizer, traumatizado no âmago de seu ser. Ela mesma diz: O medo talvez seja uma doença. Blanche não se pode proteger contra o medo. Ela foge em busca de abrigo e proteção, mas descobre, sempre de novo, que está desabrigada e desprotegida. Ela tem a vocação e decide-se pelo Carmelo, mas a maneira, pela qual segue ao chamado, só pode ser fuga. Blanche não despreza o mundo, mas não tem capacidade para viver e ajustar-se nele. E o que ela, em última análise, deseja, é encontrar segurança e paz, no convento. Sua convicção é a de que Iá nada a pode atingir. No entanto, as circunstâncias desencadeiam todo um vendaval em torno de Blanche. Um irmão lhe diz que ela deve ter a ousadia do medo, assim como a da morte, pois a verdadeira coragem reside justamente nessa ousadia. A morte da priora, na qual ela julgara encontrar um arrimo, a fuga do sacerdote, a impossibilidade de ela fazer seu juramento, tudo, enfim, parece voltar-se contra Blanche e sua permanência no Carrnelo. Nunca fora de fato recebi da na comunidade da ordem, permanecera sempre uma estranha. Mas justamente por isso seu lugar é no Carmelo, na sua solidão e participação da paixão do Senhor. O que não impede que por fim, ela fuja. E uma de suas f rases serve para descrever toda a sua situação: Fui concebida no medo, todos desprezam o medo, é justo o que eu também viva na vergonha. O fato de ela vi r a ser a última no cadafalso é um milagre que tem explicação no conceito da representação, do sacrifício vicário. Mas justamente dessa maneira tenciona Bernanos esclarecer o que seja seguir a Cristo. Não por própria f orça ou coragem, qualidades inexistentes em Blanche, mas sim ser tomado contra a própria vontade.
Não é realmente possível interpretar toda essa peça teatral, todo o destino de Blanche, de outra perspectiva que não a da cruz. Seu medo vergonhoso, que a leva a quebrar a estátua do Menino Jesus – distanciando-a, com isso, da cruz — é a arma de Deus. Contra quem? Contra o mal. Bernanos não pensa em termos de dualismo, pelo menos aqui. É justamente expresso que o entusiasmo do mal não deve ser enfrentado por um entusiasmo do bem, pois o poder do mal é só aparente e ilusório. A misère do pecado não pode ser remediada por boas obras ou pelo martírio, mas somente pela humilhação de tudo aquilo que pudesse ter a aparência de força terrena no Reino da Graça. Nosso Senhor quis viver entre os pobres; Ele também quis morrer com eles. Toda a fraqueza lhe pertence. Por isso BIanche entra para o convento, a fim de oferecer a Deus a sua fraqueza. E por isso ela escolhe o nome de Madre Blanche da Agonia de Cristo. As seguintes palavras da priora encerram uma das mais preciosas lições dessa obra de Bernanos, ao mesmo tempo que sintetizam muito do pensamento bernanosiano : Quando se contemplam medo e coragem, no Jardim de Getsêmani, onde todo o medo humano foi divinizado no coração… do Senhor, parece-me quase supérfluo distinguir ambos”. E mais adiante: Também a coragem pode ser uma ilusão do diabo… quer sejamos corajosos ou covardes, o importante é estar onde Deus quer que estejamos, confiando-nos a Ele, quanto ao resto. Não existe outro remédio para o medo a não ser arremessar- se cegamente na vontade de Deus.
Em Dialogues des Carmélites Bernanos deu expressão literária a seu próprio medo e isso, com uma beleza de rara perfeição. E não é só isso. Seu medo se esquece a si mesmo, submergindo em um medo muito mais elevado, aquele medo que redimiu o medo de todos os homens.
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Tínhamos dito na introdução que o cristão é o critério para medir e julgar o gênero humano, na opinião de Bernanos. O cristão, porém, vive da graça. Bernanos poderia ser chamado o escritor da graça. Nenhum outro escritor cristão dos tempos modernos acentuou tanto a graça de Deus, em suas obras. Tudo o que ele escreve de horrendo e assustador não tem outra função a não ser acentuar o momento do triunfo da graça. Supomos que isso tenha ficado bem claro nas considerações finais a respeito de Dialogues des Carmélites. O motivo da graça, diapasão constante no Journal d’un Curé de Campagne, está expresso da maneira mais simples, na frase final. Depois de uma longa enfermidade, desespero, medo da morte e fracasso total, em sua atuação frente à paroquia, o padre encontra-se na iminência de morrer sem o último conforto da Igreja. Suas últimas palavras são Que tem isso? Tudo é graça.
Parece ser essa a própria atitude de Bernanos. Em suas cartas encontramos f rases como estas: Não sou responsável pelo que produzi… Sou responsável pelo que deixei de fazer. Ninguém é tão desavergonhadamente ávido pela graça, como eu, e ninguém a esbanja mais estupidamente. Sob todos pontos de vista, um mendigo ingrato . O mundo, com todo o seu ódio e cegueira só reconhecerá, como diz o escritor, que está perdido na incomensurável misericórdia de Deus como uma pedrinha no mar, quando o abismo de sua perdição lhe ficar consciente, em face da graça resplandecente. No já citado Chemin de la Croix des Ames podemos ler que com poucas exceções, sorte comum dos homens é morrer com a impressão de não ter cumpri do a sua tarefa. Cada um de nós precisa experimentar essa última retaliação na hora de sua agonia, antes de … despertar para a… misericórdia de Deus… . Bernanos foi um homem que aguardou com veemência existencial o alvorecer da graça de Deus, na própria morte e no fim dos tempos. Defendia a opinião de que cinco minutos de paraíso poriam tudo em ordem. Bernanos testemunhou com sua vida e com sua obra, que a graça pode ser uma realidade também na existência de um homem exigente, intransigente e candentemente crítico. Nos seus últimos anos, passou a crer cada vez mais firmemente na impotência dos poderosos, na ignorância dos sábios, na estupidez dos Maquiavéis e na incurável leviandade das pessoas sérias. Em um álbum de recordações, escreveu: Todas as coisas belas na História Universal surgiram, sem que alguém soubesse, da misteriosa harmonia entre a humilde e flamante paciência do homem e a suave misericórdia de Deus. A graça não recua nem mesmo frente ao inferno. O inferno tem um papel bem destacado, na obra de Bernanos. Contudo, ele ousa fazer esta afirmação que, no contexto de sua fé, perde toda a ousadia: Que é que o inferno pode ter de importante além do abandonos de Deus? E quem pode estar mais abandonado pelo Pai, a não ser o único Filho que sabe, como nenhum outro, quem o Pai é?
Chegamos ao final. É claro que as limitações naturais de uma conferência não podem substituir a leitura dos próprios livros de Bernanos. Sua importância e seu lugar na História da Literatura estão bem circunscritos nas palavras de Eckart Peterich, que fazemos nossas:
Bernanos descreve os homens com um senso inexorável de realidade e em toda sua decadência. Mas através de seu amor sacerdotal, seu perdão dos pecados, sua capacidade de ver o olhar subitamente lavado de todas as mentiras de suas criaturas, ele restaura o equilíbrio desconhecido e destruído pelos românticos rosados e negros e dá-nos uma verdadeira imagem do mundo imanente e transcendente e, como nenhum escritor mais tinha feito, desde a Divina Comédia… Se a obra de Bernanos for reconhecida neste sentido, poderá significar a superação de todo enfeamento e arruinamento literário do mundo, sob os quais sofremos, estando assim no início de um novo e autêntico classicismo: o de uma arte que supera todo o falso verismo e realismo através da única realidade e verdade perfeita: a presença do amor divino.
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