A REFORMA E AS REFORMAS
Martin N. Dreher
1. Caracterização de um período
1.1. Nossa perspectiva
A exposição da história da crise e da renovação da Igreja no período da Reforma sempre estará ligada a aspectos muito particulares da própria história do historiador. Esta exposição também trará características próprias do historiador eclesiástico ou do historiador da história profana. Nos âmbitos da história profana e da eclesiástica, além disso, ainda se abrirão as mais diferentes possibilidades e tendências. Alguém poderá projetar uma exposição das profundas alterações ocorridas nos Estados europeus, apontar para a transferência do poder imperial aos poderes particulares. Outro apresentará as grandes batalhas da Casa de Habsburgo contra a França nas guerras italianas, o cerco turco a Viena. Se preferir falar da luta desesperada pela sobrevivência do feudalismo, ocupar-se-á dos ataques suicidas de cavaleiros contra cidades e lembrará a luta de Don Quixote. Há também a possibilidade de tomar como ponto de partida as grandes viagens transoceânicas e colocar no centro das atenções inicialmente Sevilha e depois Amsterdam e falar das grandes mudanças ocorridas com a ampliação dos horizontes, expondo a mundialização também da História da Igreja.
Não me parece, porém, que nosso interesse maior se concentre na história de batalhas ou de personalidades. Antes a preocupação está em apresentar os segmentos populares, os processos econômicos, as mudanças sociais e mentais. Mesmo aqueles historiadores que ainda buscam apresentar a História da Reforma como história de Lutero não conseguem fugir à necessidade de se ocupar com as Guerras Camponesas e, com isso, estão se ocupando com História Social. Na Guerra Camponesa, houve uma tentativa consciente de profundas mudanças na ordem social.
A História da Reforma também pode ser apresentada como uma narrativa de profundas mudanças culturais na humanidade, pois em boa parte ela coincide com o Renascimento e o Humanismo. Até é bom lembrar que o Renascimento iniciou antes da Reforma e que muitos dos que atuaram na Reforma eram humanistas. Aliás, uma História da Reforma que privilegiasse Renascimento e Humanismo deveria dar destaque a Erasmo e Melanchthon.
Quando o historiador eclesiástico apresenta a Reforma, quase que ao natural ele vai apresentar uma perspectiva própria. Vai privilegiar determinadas personalidades, reformadores. Mas não vai poder se fixar em Lutero e em Calvino, pois ao lado deles o mundo da Reforma fervilha de outras forças: entusiastas, anabatistas, antitrinitários. As influências que saíram desses grupos foram maiores, por vezes, do que as influências dos assim chamados grandes teólogos.
É evidente que precisamos conciliar os diferentes aspectos acima apresentados. É impossível deixar de lado os grandes acontecimentos políticos e sociais, nem é possível deixar de apontar para as relações entre a Reforma e o Humanismo. Mas, mesmo assim, é importante que desde o início fique clara a perspectiva a partir da qual se pretende fazer a exposição. Se quisermos falar do cisma cristão que se estabeleceu no século XVI como uma tragédia para o Ocidente e como uma desgraça para os alemães, que em conseqüência dele levaram mais quatro séculos para atingir sua unidade (se é que isso é verdade), ou se quisermos apresentar a História da Reforma como a história do verdadeiro retorno às origens do cristianismo, teremos duas narrativas muito distintas. Com toda a sinceridade, o autor deste texto não buscou apresentar a crise e a renovação da Igreja no período da Reforma apenas a partir de uma perspectiva teológica, mas quis trazer tantos enfoques quantos lhe foram possíveis. Deve, porém, confessar que sua perspectiva foi a do Evangelho de Jesus Cristo, por cuja redescoberta se lutou no século XVI. O autor está convicto de que essa redescoberta não foi alcançada em sentido pleno e que a ecclesia reformata segue sendo ecclesia reformanda.
1.2. Constelação política
Para entender o período da Reforma, é importante saber que, no início do século XVI, havia se formado na Europa ocidental uma série de grandes Estados nacionais. Na França, a coroa real soube se impor aos vassalos. Nas Ilhas Britânicas, a Inglaterra e a Escócia uniram-se em um reino. Diversos domínios ibéricos uniram-se para formar a Espanha dos tempos modernos. Dos antigos reinos apenas Portugal manteve sua autonomia. Francisco I, da França, e Carlos I, da Espanha, eram governantes de potências a ponto de poder se candidatar, assim como Henrique VIII, da Inglaterra, ao trono imperial alemão, quando em 1519 faleceu Maximiliano I.
Na Espanha criou-se uma situação peculiar. Em 1469 aconteceu o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, pressuposto fundamental para a união dos dois reinos. De seu casamento não houve descendentes masculinos. Sua filha Joana, casada com Felipe da Áustria, filho de Maximiliano I, e que cedo enviuvou, legou-lhes seis netos, entre eles Carlos de Gent (mais tarde Carlos I, da Espanha, e Carlos V, do Sacro Império Romano Germânico) e Fernando da Áustria, mais tarde igualmente imperador alemão. Os netos de Isabel e Fernando também eram netos de Maximiliano I e de Maria da Borgonha e, por isso, pretendentes ao importante Reino da Borgonha, localizado entre a França e a Alemanha e cuja importância econômica estava especialmente nas regiões de Flandres. Carlos tornou-se herdeiro da Espanha e da Borgonha e, em 1519, imperador alemão. Fernando recebeu a coroa austríaca e, pouco depois, tornou-se rei da Boêmia e da Hungria. Dizia-se que, enquanto outros faziam guerras, a Áustria casava, fazendo suas conquistas pacíficas. O poderio da Casa de Habsburgo pode ser avaliado pelas conquistas ultramarinas da coroa espanhola. O único adversário possível da Casa de Habsburgo ficou sendo a França. A Inglaterra tinha que se aliar ou à Espanha ou à França. No norte da Europa não havia grande poderio.
Ninguém duvidava da fidelidade da Espanha ou da França ao catolicismo. A Espanha provara ser uma salvadora da cristandade ao expulsar os árabes da Península Ibérica de forma definitiva em 1492. Ali não havia espaço para a penetração de outro pensamento, ainda mais que Isabel e Cisneros já tinham feito sua reforma. Na França, o conciliarismo medieval havia garantido tantos direitos, que não se fazia mais necessária uma reforma.
Distinta era a situação na Europa Central. Nem a Alemanha tampouco a Itália haviam conquistado uma unidade política. Ali existia uma infinidade de centros regionais de poder, todos subordinados ao poder imperial. Enquanto os poderes regionais buscavam assegurar sua participação no poder imperial, o imperador lutava para aumentar seu poder, levando os estamentos a reclamarem constantemente da servidão a que estariam sendo submetidos. Foi nessa região, especialmente na Alemanha, que explodiu o movimento reformatório. As tentativas imperiais de pôr um fim às discussões religiosas nessa parte da Europa não surtiram efeito. Elas aconteceram em 1530, em 1547 e em 1555, em Augsburgo. A segunda tentativa foi precedida de uma vitória militar do imperador sobre os protestantes, mas também não surtiu efeito. Na última, decidiu-se que a questão religiosa seria resolvida de território em território.
Na Itália, a divisão territorial era ainda mais complicada. Ali nem dinastias existiam e as formas de governo alternavam-se constantemente. Havia democracias que logo eram eliminadas por tiranos, estes por sua vez derrubados para dar lugar a novas democracias. Nela encontrava-se também o papado. De um lado, esse representava o poder hegemônico sobre a cristandade ocidental; de outro, era governante do Estado Pontifício, que abrangia o centro da Itália. O papado era, assim, um dos centros de poder na Itália e, como tal, estava profundamente envolvido nas questões da política local. Essa dupla função do papado teve conseqüências catastróficas para a igreja universal.
A parte sul do Leste europeu encontrava-se sob o domínio turco. Desde os tempos das cruzadas, os turcos haviam se expandido, conquistando território após território nos Bálcãs. Em 1529, Suleimão II chegou às portas da cidade de Viena. O perigo turco foi o principal problema político da Europa do século XVI. Ele não se apresentou apenas no Leste, mas também no Mediterrâneo. Em 1535, Carlos V venceu os turcos em uma batalha naval, mas em 1541 foi por eles derrotado em Argel, oportunidade em que quase acabou sendo seu prisioneiro. Carlos V e seu irmão Fernando assumiram a luta contra os turcos, mas necessitaram do suporte financeiro dos estamentos alemães. Para estes estava claro que se os turcos colocassem em xeque o poderio da Casa de Habsburgo, eles seriam os próximos a sentir as conseqüências. Por isso, assumiram o ônus da guerra. A cada auxílio, porém, negociaram vantagens.
A Reforma da Igreja e os acontecimentos políticos estão intimamente relacionados. O trágico é que, nas guerras entre Carlos V e Francisco I, estiveram envolvidos dois governantes decididamente católicos. Suas tropas, tanto os soldados quanto os oficiais, eram, em grande parte, mercenários, lansquenetes alemães adeptos do pensamento de Lutero, ou suíços, igualmente evangélicos. Em 1527, lansquenetes invadiram Roma e perpetraram o Sacco di Roma, cantando hinos de Lutero e causando terrível destruição.
A situação de guerra fez com que Carlos V necessitasse constantemente de aliados. Ora, esses aliados eram, em boa parte, protestantes. Nas diversas Dietas, os estamentos alemães sempre exigiram que a questão religiosa fosse discutida antes de se tratar de empréstimos para a guerra contra os turcos. Dependendo das concessões religiosas, faziam-se concessões financeiras. Quando, por outro lado, os protestantes se uniram, formando a Liga de Esmalcalda, todos os adversários da Casa de Habsburgo quiseram ser seus aliados. Assim, Francisco I ofereceu seu apoio, ao mesmo tempo em que perseguia abertamente os protestantes na França. Diferente não foi a posição de Henrique VIII. A Reforma deve sua expansão em grande parte às guerras que foram travadas na Europa. Hereges podem ser aliados preciosos.
A situação política na Itália era ainda mais complicada. O reino das duas Sicílias pertencia à Espanha, governada pela Casa de Habsburgo. O Norte da Itália era disputado pelo rei francês e pelo imperador alemão. Também aqui, portanto, a Casa de Habsburgo se fazia presente. Nos dois extremos havia o perigo de os Habsburgos envolverem a Itália e, particularmente, o Estado Pontifício. Para preservar sua independência política, o papado tinha que decidir entre Carlos V e Francisco I, dois bons católicos. Sob o aspecto militar, o poderio papal era insignificante; seu apoio poderia ser dispensado pelos dois governantes. No entanto, sua decisão podia ter fins propagandísticos importantes: caso o papa se colocasse contra o imperador, seria exatamente contra aquele que poderia vencer os hereges.
A constelação política favoreceu o protestantismo – disso não há dúvida.
1.3. Cultura
A Reforma também deve ser vista como uma parte da História da Cultura. Parcialmente ela coincide com o Renascimento, iniciado na Itália já no século XIV. O século XVI é também período de Humanismo. Grande parcela dos reformadores era humanista ou influenciada por essa corrente de pensamento. Melanchthon, Zwínglio e Calvino foram humanistas. Por outro lado, foram também representantes do Renascimento. Muitas vezes, é difícil separar Humanismo e Renascimento. Aliás, Renascimento e Humanismo são usados muitas vezes como sinônimos, ainda que nos apresentem o mesmo fenômeno sob perspectivas diferentes. É necessário cuidado quando se busca distinguir Renascimento, Humanismo e Reforma, para não cair no erro tantas vezes feito, quando se aponta para a discussão entre Lutero e Erasmo em torno do livre e do servo arbítrio. As pessoas que afirmam que Lutero rompeu definitivamente com o Humanismo, em 1525, com seu escrito De servo arbitrio, com o qual respondeu ao escrito de Erasmo, de 1524, De libero arbitrio diatribe, esquecem que Lutero recorreu em sua tese principal a ninguém mais do que humanistas italianos como Lourenço Valla. A Teologia apresentada por Erasmo não era católica e também não pôde ser aceita por teólogos protestantes.
O nome Renascimento quer expressar que naqueles dias a Antigüidade nascia de novo, renascia. Formalmente são redescobertos escritos da literatura latina, vindos de Bizâncio para a Itália, após a queda de Constantinopla. Na Itália, o Renascimento auxiliou na formação de um espírito nacional e levou à busca da latinidade clássica. Na Alemanha foi além. Ali não só se estudaram os autores clássicos dos gregos e romanos, mas também a língua hebraica. Ao lado do latim e grego, o hebraico encontrou o caminho da Universidade. Também aqui o Humanismo auxiliou na formação de um espírito nacional. Os brados de Lutero em seu escrito À nobreza cristã de nação alemã, de 1520, foram vivamente aplaudidos por humanistas alemães, que viram nele um companheiro de lutas.
Mas o Renascimento não é apenas um retorno à Antigüidade, enquanto estudo das línguas antigas e da literatura clássica. O Renascimento provocou um novo sentimento de vida. É simplista querer afirmar que o ser medieval tenha estado completamente orientado no transcendente, enquanto que o ser humano do Renascimento tenha estado orientado no imanente. Certo é, porém, que a pessoa do Renascimento tinha uma posição distinta em relação às realidades do imanente. Acentuou a individualidade. História e técnica cresceram em importância. A sensibilidade para o belo, para o sensual fizeram parte do Renascimento.
Sob o ponto de vista religioso, o Humanismo é multifacetado. Podemos notar isso no lema humanista ad fontes. O lema pode referir-se tanto à Antigüidade anterior ao cristianismo quanto à Antigüidade cristã. Paulo pode ser tão importante quanto Platão, e um pode ser usado para interpretar o outro. O estudo dos Pais da Igreja, a Patrística, estava tão presente quanto o estudo de Platão. Quando nos dias da Reforma se fala da Palavra de Deus como norma, a expressão pode significar tanto a Bíblia quanto o ensinamento dos Pais da Igreja. Humanista era Erasmo, humanista era Melanchthon, humanistas eram os adversários da Reforma protestante, mas também os anabatistas receberam em boa medida influências do Humanismo. Praticamente todas as tendências da Reforma têm traços humanistas. Não há nenhuma orientação que tenha rompido com o Humanismo, nem mesmo Lutero. H á isso sim, delimitações frente a determinadas tendências.
1.4. Objetivo da Reforma
Enquanto renovação da Igreja e da mensagem desta Igreja, a Reforma não pode ser explicada simplesmente a partir dos acontecimentos políticos, sociais e culturais dos séculos XV e XVI. A mensagem evangélica, à qual Lutero e outros deram expressão em seus dias, não foi sua criação. Ela recebeu forma na cela monástica, na cátedra universitária, nas discussões e nos debates, mas não é ideologia produzida nas discussões com a Igreja medieval, com as massas populares e com a burguesia. A mensagem da Reforma não pode ser deduzida do processo histórico. Com isso não estou negando que o processo histórico tenha sido importante no auxílio à redescoberta da mensagem evangélica. Como disse antes, a Reforma beneficiou-se do processo histórico. Por outro lado, sofreu as conseqüências do processo histórico.
Não é assim que a Reforma só teve vantagens do momento histórico em que ocorreu. De fato, ela só pôde acontecer no momento histórico em que ocorreu. Não pretendo minimizar a coragem de Lutero e seu destemor ao enfrentar a Igreja constituída hierarquicamente. No entanto, é bom ver que o movimento por ele desencadeado só pôde realmente vingar nos anos que antecederam e sucederam à morte de Maximiliano I. A Reforma beneficiou-se em muito das guerras de Carlos V e de Francisco I, das conquistas políticas dos senhores territoriais, do fato de o papado preferir aliar-se a Francisco I e os turcos estarem fazendo constantes avanços. O Humanismo auxiliou em muito a Reforma. Seus avanços exigiam uma reforma do sistema universitário. A Reforma só se beneficiou do fato porque na Alemanha essa reforma universitária foi feita, atendendo os reclamos dos adeptos da nova fé. Mas o Humanismo também se beneficiou da Reforma: o estudo das línguas antigas recebeu total apoio e passou a ser fundamental para a formação da nova geração de clérigos.
Na 62ª de suas 95 teses de 31 de outubro de 1517, Lutero afirma que o verdadeiro tesouro da Igreja é o santíssimo Evangelho da glória e da graça de Deus. Quem quiser argumentar com essa tese e dizer que a Reforma colocou o Evangelho novamente em seu devido lugar só o poder fazer, caso entender a Reforma não como um acontecimento encerrado a ser festejado, mas como algo que tem que acontecer sempre. Em razão dos acontecimentos políticos e de seus aspectos culturais é possível fazer a afirmação de que a Reforma conseguiu seu espaço e seus objetivos. Mas é fato que o Evangelho e a Igreja que pretendia ser reformada sofreram grande desgaste. A Igreja fragmentou-se em Igrejas Territoriais, que em seu interior muitas vezes souberam manifestar pouco da liberdade evangélica. Não merecem o título de ecclesia reformata. Se, porém, entendermos o propósito da Reforma do século XVI no sentido da ecclesia semper reformanda, então podemos chegar à conclusão de que ela é um acontecimento importante na História.
2. Antecedentes da reforma religiosa no século XVI
A Reforma não pode ser explicada a partir de um único acontecimento ou a partir da ação de uma única pessoa. Quero afirmar categoricamente que a Reforma não iniciou com a divulgação das 95 teses de Lutero, em 31 de outubro de 1517. Muito antes de Lutero haviam se criado situações, haviam sido difundidas idéias, despertados sentimentos que provocaram e possibilitaram o conflito com a Igreja de então. Podemos até dizer que tais sentimentos estavam a exigir o que acabou acontecendo no século XVI.
2.1. Antecedentes da Reforma
As origens da Reforma em um sentido bastante amplo devem ser procuradas no processo emancipatório do final da Idade Média, que levou à Idade Moderna. Nesse sentido, a Reforma deve ser vista como um período entre a Idade Média e a Idade Moderna.
2.1.1. Em boa medida, a tensão existente entre Sacerdócio e Império caracteriza a unidade da Igreja no sistema de cristandade medieval. A sentença tem que permanecer nessa contradição, pois a Idade Média é um período de sutil equilíbrio entre Sacerdócio e Império. No final, o próprio papado contribuiu para pôr fim a ele. Para assegurar a independência da Igreja, o papado buscou enfraquecer o poder do Império. Em conseqüência, os papas chegaram até a assumir o comando político do mundo ocidental de então. Quanto mais, porém, o papado ampliava seu poder no âmbito temporal, tanto mais oposição encontrava em um mundo no qual sobressaíam as diferenças nacionais e que lutava por autonomia. A conseqüência foi que se inverteu a ponta e, usando os mesmos argumentos dos papas, passou-se a exigir a autonomia do Estado em relação ao poder religioso.
Após o cisma (1378-1417; 1449) e depois do Concílio de Basiléia, os papas tiveram que buscar reconhecimento junto aos príncipes, imperadores e reis, concedendo ao Estado grandes poderes sobre a Igreja. O resultado foi o surgimento das Igrejas Territoriais, isto é de Igrejas dependentes do poder secular, que tanto podia ser representado pelo rei, príncipe como pelos conselhos municipais. Sem esse desenvolvimento não podemos entender a geografia religiosa criada em toda a Europa desde fins do século XV e ao longo do século XVI.
Na Idade Média, não raro a hierarquia eclesiástica e a nobreza souberam agir em conjunto, melhorando as condições de piedade e de vivência da fé. Naqueles territórios, porém, nos quais o senhor territorial era ao mesmo tempo bispo, o secular e o espiritual estavam de tal maneira interligados, que era impossível determinar onde começava um e onde terminava o outro. Além disso, faltava uma boa teologia para distinguir e para enfrentar os problemas. Havia muitos bispos que não tinham qualquer interesse em questões espirituais e buscavam solidificar suas posições por meios políticos. Por seu turno, muitos príncipes seculares buscavam fortalecer seu poder, assumindo o controle da Igreja. Ao conceder os direitos do padroado aos reis de Portugal e de Espanha e, mais tarde, aos demais reis europeus, para assim estes fugirem das idéias do conciliarismo, os papas acabaram por estabelecer que os reis determinassem a vida religiosa e o preenchimento de cargos eclesiásticos.
Assim, o príncipe passou a controlar as ofertas do povo. Os decretos episcopais só tinham validade após a autorização real. A pregação de indulgências só era permitida caso o príncipe tivesse parte nos lucros auferidos. As intervenções de príncipes e cidades, que vão possibilitar a introdução da reforma luterana e da calvinista, a criação da Igreja Anglicana ou a introdução das decisões de Trento não são novidades surgidas no século XVI. São anteriores. Nas cidades, uma burguesia muito consciente de seu poder lutou contra os direitos do clero, especialmente contra suas imunidades fiscais e isenções jurídicas. Por outro lado, à medida que buscava diminuir o poder do clero e introduzir um governo civil, a cidade não desistia de controlar a atividade eclesial. As cidades criaram paróquias, mas se reservaram o direito de nomeação dos pregadores. Também os conventos e suas propriedades passaram a ser administrados pela cidade. Por isso não foi nada difícil fechar mais tarde os conventos e assumir seus bens.
2.1.2. Já apontamos para o fato de que na Idade Média a Igreja assumiu a função de cristianizar os povos germânicos, mas também de transmitir-lhes e preservar-lhes a cultura do mundo antigo. Assim, a Igreja foi responsável pela formação literária, pelo direito, pela tradição política e pela técnica. Com todas essas funções é lógico que o clero tinha que ser o detentor do saber, indo muito além de suas prerrogativas teológicas. Criara-se um clericalismo, que tinha que ser substituído. Era necessário que o cristão alcançasse a maioridade e pudesse viver a liberdade cristã. Era necessário que como pessoa adulta se ocupasse com as questões de fé e com as heranças culturais. Caso a Igreja não abdicasse do controle do saber por iniciativa própria, cedo ou tarde viria o dia em que novas forças haveriam de lutar por seu espaço. A partir daí devemos entender por que o humanismo, de raízes cristãs, assumiu caráter laico, preparando a Reforma com sua crítica à Igreja.
O conceito que mais caracteriza a Modernidade é Liberdade. Tudo o que concebemos sob o termo Reforma é atraente para o ser humano dos séculos XV e XVI por causa do conceito Liberdade. Não é por acaso que a senha Liberdade cristã foi lema da Reforma, mas também a causa que levou muitas pessoas a se afastarem dela.
Por isso, devemos ver a Reforma de século XVI como resposta verdadeiramente revolucionária ao fracasso das reformas dos séculos XIV e XV. Houve nela tentativas de fazer voltar a roda da história, buscando fazer a Igreja retornar às situações primitivas da Igreja Antiga, como podemos constatar em Thomas Müntzer e nos Anabatistas. Por outro lado, houve nela a busca sincera por acomodação a novas situações e abertura para as necessidades do momento.
A partir disso tudo podemos ver que a Reforma engloba tudo o que carecia de reforma, mas também situações e erros que impediam a mesma. Os erros e as deformações na Igreja no final do século XV eram bastante similares aos de meados do século XIV. Os seres humanos, no entanto, não os suportavam com a mesma paciência. Estavam mais atentos, eram mais críticos e mais exigentes, verificavam com maior facilidade o descompasso entre o ideal e a realidade, entre ensinamentos e vida da Igreja. Ao não observar as maiores necessidades religiosas das pessoas, ao não verificar a emancipação dos crentes em questões de fé e ao não substituir as estruturas entrementes arcaicas da Idade Média, a Igreja criou as condições e os pressupostos para o clamor por uma Reforma.
2.2. Raízes restritas
As origens da Reforma e suas raízes mais restritas devem ser procuradas no papado renascentista, nos descalabros existentes no clero e nos abusos em relação ao povo, nas incertezas dogmáticas e na vida religiosa.
2.2.1. Sem dúvida, os papas do Renascimento deram importante contribuição para o advento da Reforma. Nesse sentido sobressai a figura de Alexandre VI (1492-1503). Seu pontificado é, sem sombra de dúvida, uma das mais ignominiosas páginas da história da Igreja. Ainda em sua juventude, Rodrigo Borgia foi feito cardeal por seu tio Calixto III (1455-1458), recebendo ainda uma série de prebendas. Pio II teve que advertir o jovem cardeal por causa de sua vida desregrada. Seu adultério com Vanozza de Cataenis era conhecido, bem como os quatro filhos que teve com ela. Além destes, teve outros filhos com outras mulheres. Eleito papa, continuou com sua vida desregrada. Pergunta-se: Como foi possível que o colégio de cardeais o elegesse papa? A resposta é: Por meio de suborno. Enquanto que de outros papas da Idade Média se pode dizer que foram eleitos por pressões ou imposições de reis e imperadores, a eleição de Alexandre VI se deu por simples suborno.
Mesmo como papa, Alexandre VI não alterou seu comportamento. Pelo contrário, tratou de cumular seus filhos com benefícios. Poucas semanas após sua instalação, nomeou seu filho Césare, na época com 16 anos, arcebispo de Valência; um ano mais tarde fê-lo cardeal. Seis anos mais tarde, Césare desistiu do cardinalato para casar-se com uma princesa francesa e para receber parte do território dos Estados Pontifícios. São incontáveis os assassinatos por envenenamento ordenados por ele. Comprovada está sua responsabilidade no assassinato do segundo marido de sua irmã Lucrécia, bem como no assassinato do cardeal Giovanni Michiel, morto para que Césare pudesse apropriar-se de seus bens. É possível que Césare também seja responsável pelo assassinato de seu irmão João.
Em duas oportunidades, Alexandre VI fez-se substituir na direção da Igreja por sua filha Lucrécia. Finalmente, Alexandre VI faleceu em 18 de agosto de 1503, muito possivelmente em conseqüência da ingestão de veneno que seu filho e ele haviam destinado a outro cardeal.
Após um intermezzo de 26 dias, o breve pontificado de Pio II, o cardeal Giuliano della Rovere foi eleito papa, assumindo o nome de Júlio III (1503-1513). Enquanto cardeal, Giuliano della Rovere fora ferrenho adversário de Alexandre VI; no entanto, sua eleição foi comprada a peso de ouro. Ordenou a demolição da basílica de São Pedro e iniciou a construção da atual. Seus contemporâneos designaram-no de Il Terribile, o terrível, pois era mais rei e comandante de tropas do que líder espiritual da Igreja. Para ele, a salvação da Igreja estava na política e na guerra, uma eclesiologia altamente questionável.
Aos 38 anos, o cardeal Giovanni de Medicis tornou-se papa, assumindo o nome de Leão X (1513-1521). Era inteligente, letrado e defensor do humanismo. No dia de sua intronização foi feita uma procissão semelhante a de Corpus Christi para apresentar o papa e sua corte. Sobre uma grande faixa podia ser lida a frase: Outrora governou Vênus, depois Marte; agora Palas Atenas detém o cetro. Com Vênus fazia-se referência a Alexandre VI, com Marte a Júlio III, com Palas Atenas saudava-se Leão X como mecenas e benfeitor de humanistas e artistas. A frase também descreve o caráter mundano e a frivolidade do pontificado de Leão X, durante o qual Lutero iniciou seu movimento.
Leão X não pode ser acusado de desmandos e de aberrações como Alexandre VI, mas de leviandade e de esbanjamento de recursos em busca de hedonismo. Não há senso de responsabilidade em relação à condução da Igreja. Ao suceder a Leão X, Adriano VI disse: O vício tornou-se tão natural, que os que por ele foram manchados não sentem mais o fedor do pecado. Leão X não teve estatura teológica. Logo após sua eleição escreveu a seu irmão Giuliano de Médicis: Curtamos o papado, já que Deus no-lo concedeu!
2.2.2. A situação do clero não era melhor do que a do papado. Não penso no concubinato dos sacerdotes. Havia regiões em que o vício era tão comum, que os fiéis não mais se chocavam com ele. O problema residia em outro lugar: para a maior parte do clero, a Igreja era vista como sendo de sua propriedade. Era propriedade da qual se auferiam dividendos e prazeres. Quando se criava uma paróquia ou um bispado, o determinante não era a preocupação com o culto e com a cura d’almas, mas o desejo de realizar uma boa obra e obter, com isso, para si e para sua família parte nos tesouros da graça. Os candidatos não passavam por grande processo de seleção. Bispos e sacerdotes não se compreendiam como responsáveis por um ministério, para cujo desempenho recebiam o sustento necessário. Pelo contrário, sentiam-se proprietários de uma prebenda no sentido do direito feudal germânico. A prebenda era um direito do qual se podia usufruir e em relação à qual se tinham alguns compromissos. Tais compromissos, porém, poderiam ser transferidos a um representante, um vigário. Para tanto, buscou-se justificação teológica em João 10.12: as ovelhas não pertenciam ao vigário, mas ele era alugado para a função.
A partir dessa visão foi possível que algumas pessoas reunissem em suas mãos diversos bispados ou paróquias. Em 1556, por exemplo, o cardeal Alexandre Farnese, um neto de Paulo III, detinha o controle de 10 bispados, 26 conventos e 133 outros benefícios: canonicatos, paróquias e capelanias. Na Alemanha, as sés episcopais foram reservadas para filhos da nobreza, que na maioria das vezes não se interessavam pela vida sacerdotal ou pela cura d’almas.
Se não havia preocupação com o espírito religioso ou com a cura d’almas, havia grande preocupação em relação ao dinheiro. A Cúria buscava por todos os meios cobrir os seus gastos. Criou para tanto um sistema de taxas, impostos, doações e penitências. A falta de dinheiro era constante em razão dos gastos com a corte, com construções ou com despesas militares, resultantes das constantes guerras. Tal fiscalismo levou à explosão da Reforma, com a qual nos deparamos na discussão em torno das indulgências.
Todas as descrições acima feitas provocaram ódio em relação à Roma. Durante cem anos apresentaram-se queixas contra a situação criada. Elas foram assumidas por Lutero e outros reformadores. Em troca, mesmo pessoas que não concordavam com sua doutrina estavam dispostas a apoiá-los.
2.3. Incertezas teológicas
Não bastasse o até agora descrito, necessário se faz mencionar, ainda, as incertezas dogmáticas no final da Idade Média e dos primórdios da época da Reforma. Pois mais importante do que apontar para os erros do papado, do clero e de leigos é perguntar pelo ensino da Igreja no início da Reforma. Havia uma imagem muito colorida da piedade popular, havia muita imitação da vida dos santos, havia procissões, peregrinações, missas votivas, etc. Qual era, porém, a seriedade que havia por trás desses atos? Qual era a teologia que havia por trás da ação?
2.3.1. O período anterior à Reforma foi de grande incerteza teológica. As principais controvérsias teológicas pendentes são geralmente resumidas às temáticas da justificação por graça e fé. A rigor, porém, esta temática é decorrente de indefinições em outras áreas da Teologia. Lembro aqui a questão relativa à visão de Deus, da imagem que se tem de Deus. Essa visão, por seu turno, está intimamente relacionada com a questão da cristologia, pois dizer quem é Deus está intimamente ligado com a pergunta: Quem é Jesus Cristo? A isso novamente está relacionada a doutrina da penitência, da qual falamos no volume anterior e que culminou no final da Idade Média na discussão em torno da venda de indulgências, estopim para a eclosão do movimento reformatório luterano.
As indefinições na questão da penitência mostram que, apesar das formulações de Agostinho relativas à graça, era justamente na temática da graça que continuavam a existir indefinições. Ora, esses aspectos levaram, por seu turno, a visões distorcidas em relação aos meios da graça e prepararam discussões em torno dos sacramentos, mormente em relação à Eucaristia e ao Batismo.
Contudo, as diferenças e questões indefinidas concentraram-se na temática da eclesiologia. Por isso ouso afirmar que até hoje a principal diferença entre a Igreja Católica Apostólica Romana e as Igrejas herdeiras da Reforma do século XVI está na eclesiologia.
Desde o final do século XIII havia fortes discussões eclesiológicas no seio da Igreja ocidental. Por um lado, havia os que defendiam uma eclesiologia papalista. Aqui partia-se do dado histórico da monarquia papal, desenvolvida desde as lutas em torno das investiduras: o papa, investido da plenitude do poder, significa e é a Igreja. Neste sentido, Álvaro Pelágio (+ 1353) definiu a Igreja como a congregação dos fiéis, mas ousou a formulação: Pedro significa a Igreja e Onde estiver o Papa, ali está a Igreja Romana e a Sé Apostólica e a Cabeça da Igreja.
Essa teoria papal, desenvolvida nos dias dos papas Bonifácio VIII (1294-1303) e João XXII (1316-1334) foi revigorada após a derrota do conciliarismo no Concílio de Basiléia (1431ss), principalmente na Summa de ecclesia do cardeal Juan de Torquemada O.P., escrita em 1453. No centro da eclesiologia de Torquemada está a concepção de que o único detentor do poder eclesiástico é o Papa, na sua condição de sucessor de Pedro. É ele quem concede autoridade aos bispos e ao concílio. A autoridade do concílio depende do Papa, pois é este quem o convoca, quem o dirige e confirma seus decretos. Torquemada era tão papalista que via nos concílios um perigo para a unidade da Igreja. Sua idéia foi tão dominante, que quase impossibilitou a realização do Concílio de Trento no século XVI.
Aparentemente, Lutero se desenvolveu numa Igreja em que dominou a teoria papal. Isso fica ainda mais claro, se observarmos que no escrito À nobreza cristã de nação alemã (1520) Lutero afirmou que, ao que tudo indica, ao invés do artigo creio na santa Igreja cristã se tenha que confessar creio no Papa em Roma. De fato, a teoria papal era o cavalo de Tróia, responsável por todos os abusos cometidos na Igreja dos séculos XV e XVI.
2.3.2 O segundo tipo de eclesiologia do final da Idade Média é o conciliarismo. Os papalistas haviam desenvolvido sua eclesiologia a partir da cúpula da Igreja, chegando a identificar a mesma com essa cúpula. Os conciliaristas, que se baseavam em Marsílio de Pádua (1290-1342) e em Guilherme de Ockham (1285-1349), partiam da base, da congregação dos fiéis, apostando na tese aristotélica de que o poder pertence ao povo. Para eles, também o poder existente na Igreja emana do povo; não há hierarquia de direito divino. O poder eclesiástico é meramente espiritual, limitando-se à pregação da palavra de Deus e à administração dos sacramentos. Como o poder eclesiástico emana da congregação dos fiéis, o concílio geral, enquanto representante da congregação dos fiéis, é a instância máxima que decide em questões de fé.
Através do estudo de Ockham, essas idéias continuaram presentes. Mas interessante é que não foram assumidas justamente por aqueles teólogos que, após o grande cisma, viam no concílio geral o único meio para restabelecer a unidade da Igreja. O que permaneceu foi a concepção de que o concílio geral é a representação da Igreja universal e instância máxima em questões de fé e da unidade da Igreja e exige obediência de todos os membros da Igreja, inclusive do papa. Havia vozes que exigiam a convocação periódica de concílios, por exemplo de 10 em 10 anos, como proteção contra eventuais excessos do centralismo da cúria romana. O concílio seria um parlamento eclesiástico, um órgão controlador.
No início do século XVI, o conciliarismo estava muito presente nas universidades de Paris, Pávia, Pádua e Bolonha. Mesmo tendo sido condenado pelo Concílio de Basiléia ele deveu a continuação de sua existência à discussão em torno da necessidade de reforma da Igreja. Mas as principais autoridades eclesiásticas nada fizeram em prol dessa reforma. Leigos então começaram a trabalhar por ela. Fernando, rei de Aragão, apresentou ao 5º Concílio de Latrão uma relação de reformas a serem introduzidas na Igreja. Era comum a opinião de que somente um concílio geral possibilitaria a reforma da Igreja. Essa idéia estava ligada ao conceito que o ser humano medieval tinha de Igreja. A Igreja estava para ele contida no conceito da Cristandade. A Cristandade é um todo político e social, um corpo dividido em estamentos, dirigido por um braço espiritual e outro secular, com duas cabeças: o papa e o imperador. Por isso, os grandes concílios da Idade Média não foram apenas reuniões da Igreja, mas da Cristandade, nas quais estavam presentes os estamentos, clero e laicato. Eles não se ocuparam apenas com questões eclesiais, mas com assuntos que diziam respeito à Cristandade, cruzadas e questões de paz civil. Em todo o século XV, sempre quando se falou em reforma da Igreja, falou-se também em reforma do Império. A grande aspiração era reformar a Cristandade. O primeiro concílio a transformar as questões tratadas em temáticas realmente eclesiásticas, dando início ao desmonte do regime de Cristandade, foi o Concílio de Trento. Mas este aconteceu no contexto da Reforma.
Para nós é importante, porém, não ver apenas o conceito eclesiológico, mas também a imagem que se tinha da Igreja. No todo, pode-se dizer que a descrição que se fazia da Igreja insere-se em uma teoria de decadência e degeneração. Visto de um modo simplista, afirmava-se, em geral, que ao longo de sua história a Igreja afastou-se sempre mais da situação ideal da Igreja Primitiva. Somente o retorno à Igreja Primitiva poderia eliminar o mal que tomou conta da Igreja em virtude do abuso feito com o poder papal. Essa leitura encontramos em Erasmo e em muitos reformadores católicos. Ela pode ser encontrada em Lutero, em Zwínglio, em Müntzer e em muitos outros.
2.3.3. Finalmente, havia uma eclesiologia espiritualista. Joaquim de Fiore (1130-1202) predissera que, após a era do Filho, viria a era do Espírito. Os franciscanos espirituais assumiram sua doutrina, no século XIII, e a desenvolveram. Essa eclesiologia vai explodir novamente no pensamento de Thomas Müntzer.
Os três tipos eclesiológicos aqui apresentados não reproduzem todo o universo dessas concepções. Eles não abarcam, por exemplo, a eclesiologia de Wiclif ou de Hus.
Resumindo: no início do século XVI predominou o tipo papalista de eclesiologia. Deve-se, porém, constatar que os pensamentos da eclesiologia conciliarista ainda não haviam desaparecido de todo. Caso contrário, a bula papal Exsurge domine, dirigida contra Lutero, teria trazido consigo conseqüências bastante diversas daquelas que ofereceu a Lutero e ao movimento reformatório. Isso nos prova, pois, que não havia uma eclesiologia uniforme na época de Lutero. A primeira tentativa da parte da Igreja Católica Apostólica Romana de formular uma eclesiologia uniforme surgiu apenas por ocasião do Conc¡lio Vaticano I (1869-1870). Este, porém, apenas conseguiu definir o primado e a infalibilidade papal. Uma eclesiologia uniforme para a Igreja Romana só foi conseguida por ocasião do Concílio Vaticano II, na Constituição Dogmática sobre a Igreja.
Minhas explanações, assim espero, contribuem para que se entenda que Reforma é um movimento muito mais amplo do que Lutero ou Calvino. Reforma é todo um movimento que tentou dar respostas a questões que eram formuladas ao cristianismo já antes do século XVI. Assim, quando falamos de Reforma, deveríamos iniciar com Isabel de Castela e Cisneros, dizer de Lutero, de Zwínglio, dos Anabatistas, dos Espiritualistas, de Thomas Müntzer, de Calvino e de seu colega de estudos na Sorbonne, Inácio de Loyola, de Trento, de Cromwell e dos Puritanos.