Preliminares
“Quo vadis, ecclesia?” Para onde vais, Igreja? A pergunta é feita em muitas partes do mundo e na maioria das instituições eclesiásticas. As incertezas que oneram o futuro da humanidade têm reflexos também na Igreja de Jesus Cristo. Relativismo de um lado e fundamentalismo de outro, ambos acompanhando a multiculturalidade da sociedade global, a perplexidade ética frente às conquistas tecnológicas, o absoluto regime de mercado, corroendo as perspectivas de um mundo mais humano, a simultaneidade paradoxal de entusiasmo religioso e agnosticismo, são esses apenas alguns dos fatores que respondem pelas incertezas a que nos referimos e que produzem angústia. O futuro parece estar bloqueado. Para onde vai o planeta, o país, a sociedade? Falta sustentabilidade. Seja economia, meio ambiente, política demográfica, distribuição de poder e recursos, não há proposta realmente promissora. As receitas para curar as enfermidades, se existem, são contraditórias. Em vez de produzir consensos, por demais vezes polarizam grupos e partidos e conduzem a novos conflitos. Nada mais urgente, pois, do que buscar rumos alternativos para contornar as catástrofes que se anunciam e que em parte já hoje são vividas, a exemplo da violência..
O objeto deste estudo é a IECLB (Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil). Ela participa da sociedade, compartilha seu bem estar e suas dores e tem uma dívida evangélica para com ela.Terá condições de subsistir? A promessa de as portas do inferno não prevalecerem contra a Igreja de Jesus Cristo (Mt 16.18), não desincumbem da responsabilidade humana. Igreja deve aperceber-se dos processos sociais em andamento, planejar seu futuro, eliminar o que lhe obstaculiza a missão. Tratar de garantir a sobrevivência às instituições eclesiásticas é pecado nenhum, desde que o preço não seja a traição ao evangelho. Pelo contrário, a missão cristã exige a edificação de comunidade. Pois esta é a portadora daquela. Sem Igreja não há missão. O zelo pela fidelidade ao evangelho e a preocupação com o bem da Igreja, pois, devem andar de mãos dadas. A auto-manutenção da instituição eclesiástica certamente não é um fim em si. Está a serviço do mandato recebido de Jesus Cristo. E no entanto, o cumprimento do mesmo necessita, além de pessoas, de estruturas que o possibilitam. Em meio aos desafios do mundo circundante, a Igreja é chamada a definir seu caminho, colocando marcos orientadores não somente para si mesma e seus fiéis, como também para a sociedade em termos amplos.
Portanto, perguntamos pela “via” da IECLB e com isto pela sua “viabilidade”. Há quem fale no “esgotamento do projeto protestante para a sociedade brasileira”. Porventura, aplica-se o veredito também à IECLB? Qual seria a proposta eclesiológica alternativa que a um só tempo seria contextual, contemporânea e condizente com o evangelho? A resposta vai depender de fatores tanto externos quanto internos, do mercado religioso, das condições sociais, da capacidade de adaptação, da força espiritual. De nenhuma maneira a IECLB pode furtar-se ao diagnóstico crítico, da avaliação conscienciosa de seu discurso e de sua práxis frente às demandas do momento histórico. É para tanto que as reflexões a seguir pretendem contribuir. Nasceram da preocupação com o futuro da IECLB. Baseiam-se em sintomas em evidência no corpo da IECLB que merecem atenção no horizonte das mudanças sociais em andamento no Brasil e no mundo. Procuremos detectar trilhas que prometam a esta Igreja viabilidade.
Tal tentativa faz sentido somente sob a hipótese de à IECLB ser confiada um “talento” que está proibida de enterrar (Mt 25.14s). A metáfora do talento acusa a um só tempo modéstia e orgulho. Na parábola de Jesus, nenhum dos servos recebeu tudo. Deus distribui, em quantidades assimétricas, dons e deveres, julgando enfim pelo critério da proporcionalidade. Também a IECLB recebeu o seu quinhão, com o qual está comprometida a cooperar no plantio do reino de Deus. Somente cegueira poderia negar e usá-lo como pretexto para a resignação. Decorre daí o imperativo de penetrar no mercado religioso, testando as ofertas em voga e fazendo valer o vigor da confissão luterana. A IECLB vai ser responsabilizada pela mordomia dos dons, com os quais foi agraciada. Por isto mesmo deverá desenvolver competividade. Nós partimos da convicção de que a IECLB faria falta na ecumene brasileira, caso fechasse suas portas. Vale a pena, pois, investir em sua manutenção.
Os objetivos do exame que faremos, permanecem modestos, não obstante. São vários os motivos. O primeiro reside no fato de a IECLB ser um mosaico de realidades que não permitem ser niveladas. Por isto mesmo os juízos aqui emitidos costumam referir-se não à IECLB em seu todo, e, sim, a fenômenos ou tendências nela existentes. Cabe aos leitores e às leitoras verificar até que ponto são procedentes em sua respectiva área de atuação. Além disto, faltam estudos que ajudem a entender a “conjuntura” da IECLB com maior precisão numa série de detalhes. Quais as razões do afastamento de muitos membros de sua Igreja, por exemplo? Em que medida foram vencidas as barreiras étnicas? Abre-se um imenso campo de pesquisa ainda pouco explorado. Em terceiro lugar, é óbvio não haver receitas prontas para as mudanças que são exigidas da Igreja de Jesus Cristo hoje. A viabilidade da IECLB é interrogante que se coloca à totalidade dos membros e, naturalmente, com particular pertinência às instâncias dirigentes. Vai exigir muita reflexão conjunta. Os “apontamentos críticos” que tomamos a liberdade de apresentar não pretendem diminuir a responsabilidade coletiva nem interferir em competência alheia. Querem, isto sim, estimular um debate necessário, manifestar preocupações, provocar reações, sugerir algumas pistas. Somente isto. Se formos injustos nos nossos juízos, pedimos perdão e estamos dispostos a nos corrigir mediante provas cabais e convincentes.
Igreja estagnada não tem futuro. De certa forma repete-se hoje a situação do século XVI, quando o clamor por reformas sacudia a Europa. O exemplo histórico ensina que a mera re-afirmação da tradição e do status quo é perigosa. O imobilismo pode detonar em fatais conflitos. É o que vale para a sociedade global que anseia por “vias alternativas” para ser viável. Em escala menor isto se aplica também às Igrejas. Comecemos, pois, “em casa”, com a IECLB. Como Igreja da Reforma ela sabe da necessidade da permanente auto-correção. Para dizê-lo em outros termos: Ela precisa converter-se. É da conversão da IECLB de que tratam os capítulos que seguem.
I. Realidade estatística
Em minucioso levantamento, o ex-secretário geral Gerd U. Kliewer, compilou e avaliou os dados estatísticos fornecidos pelas paráoquias nos anos 1998 a 2002. Trata-se de um estudo da mais alta relevância, entitulado “Crescimento da IECLB”, pioneiro de seu gênero. Isto apesar de importantes antecedentes, entre os quais cabe mencionar o censo realizado nos anos de 1987 a 1990, cujos resultados foram parcialmente publicados no Relatório da Presidência ao Concílio Geral da IECLB, realizado em Três de Maio, em 1990. Naturalmente encontram-se dados estatísticos também em outros Relatórios ou Boletins, anteriores ou posteriores. O que é novo no estudo de Kliewer é a maneira sistemática da apuração e interpretação das informações estatísticas. Embora permaneça certa faixa de insegurança em razão de critérios ainda não completamente uniformes nas paróquias, a IECLB dispõe de elementos que lhe permitem visualizar um auto-retrato bastante objetivo.
O levantamento confirma suspeitas há tempo alimentadas. Isto vale em primeiro lugar para o número total de membros da IECLB que se situa por volta de 715 mil pessoas, perfazendo nem meio percento da população brasileira. Pelo que tudo indica, jamais o número tem sido substancialmente maior. A uma fase de créscimento na primeira metade do século passado em razão de reprodução natural, a membresia da IECLB se estabilizou. De 1997 a 2002 ela cresceu apenas 0,34%. Os evangélicos de confissão luterana têm menos filhos do que antigamente. Seu número absoluto só não decresceu porque nas últimas décadas aumentaram os índices de expectativa de vida. Isto significa que seus membros são hoje em média mais idosos. Portanto, a IECLB está envelhecendo. Espelha-se nisto, sem dúvida alguma, uma tendência registrável no Brasil em seu todo. Mas há um descompasso. A IECLB perde na faixa dos jovens. Ela não acompanha o ritmo do crescimento populacional brasileiro, cuja taxa média era de 1,5 % ao ano. A pirâmide etária, pois, desfavorece a IECLB em comparação com o resto do país. Em termos percentuais, a IECLB está perdendo terreno. A estagnação numérica significa recuo. Os últimos decênios têm agravado a situação de minoria dos evangélicos de confissão luterana neste país.
O alerta já havia sido manifestado no documento “IECLB no pluralismo religioso”, expedido pela direção da Igreja no ano de 2000, onde se dizia: “Na IECLB, embora o número de obreiras/os esteja aumentando, não podemos registrar um crescimento significativo do número de membros” (p 8). O número de colaboradores cresceu e o trabalho se intensificou o que, em si, deve ser considerado fator positivo. Um obreiro ou uma obreira tem menos pessoas a atender do que em épocas passadas. Estranhamente, porém, essa vantagem não conseguiu ser traduzida em crescimento do quadro de membros. Considerando ainda que “a admissão de pessoas de outra origem religiosa está ganhando espaço” (Kliewer), a principal causa da estagnação reside na perda de membros. A IECLB não consegue devidamente segurar e integrar quem a ela pertence. As admissões não superam as demissões, respectivamente os desligamentos ou o simples sumiço de pessoas da vida ativa e do fichário das paróquias. O problema já não é a conquista de novos membros, graças a Deus, o que é sinal altamente promissor. Pois revela potencialidades missionárias. Mas como explicar a evasão de membros, que é particularmente forte entre os jovens?
É claro que de imediato pode-se apontar para a migração interna, o êxodo rural e a urbanização que desestruturam as comunidades tradicionais e as pulverizam pelo imenso território nacional. Produzem um inchaço geográfico da IECLB, mas não redundam em real crescimento. Conforme Kliewer, a IECLB “está perdendo a batalha nas metrópoles e nas grandes cidades”. Aparentemente a missão urbana ainda não achou um pardigma convincente, colocando-se como o maior desafio à IECLB no futuro. De Igreja de perfil rural deve transformar-se em Igreja urbana. Mas a forte perda de fiéis não se reduz a esta única causa. Há outros fatores a considerar. Pelo que tudo indica, a IECLB sofre sob fortes mentalidades exclusivistas, afastando quem foge a determinado padrão. Lembro a etnia que, em tempos passados, limitava a atuação da IECLB a descendentes dos imigrantes germânicos. Ainda hoje pode ser encontrada essa visão estreita, julgando que a fé luterana não se destina a luso ou afro-brasileiros. Por sua vez, a reação a uma “Igreja étnica” levou a neglicenciar grupos que preferiam o alemão como língua de culto. Algo análogo vale para os empobrecidos que na concepção eclesiológica das comunidades tradicionais não estão previstos. Muitos pobres já não mais enxergam espaço em sua Igreja. Novamente em contrapartida, preconizou-se o ideal de uma Igreja de pobres, cujo discurso, por algum tempo, marginalizou os considerados “burgueses”. Somam-se a isto os exclusivismos teológicos que pressionam os membros a aderir a determinado estilo de piedade. Cai fora quem nele não se enquadra. Vale a pena, pois, verificar os exclusivismos reinantes na IECLB para ver o quanto contribuem para a estagnação. É claro que a Igreja de Jesus Cristo deve colocar balizas a fim identificar o que é evangélico e o que não o é. Mas há barreiras artificiais, ilegítimas que obstruem a construção de comunidade.
Neste mesmo contexto é interessante observar que a orientação teológica, sob as quais são conduzidas as comunidades, faz pouca diferença. Ainda faltam estudos conclusivos quanto a este aparte. Dados seguros são difíceis de obter principalmente em razão da troca de pastores. Comunidades são “pastoreadas” ora neste ou naquele estilo. Mesmo assim se delineia claramente serem as paróquias de “linha tradicional” as que, no conjunto, “apresentam o melhor desempenho em termos de crescimento” (Kliewer). É verdade que a “linha evangelical”, ou seja o Movimento Encontrão, com sua ênfase na evangelização e missão, melhor soube atrair membros de outros ambientes culturais e religiosos. E no entanto, permanece a impressão que enquanto faz entrar novos membros pela porta da frente, “outros saem pela porta dos fundos” (ibd.). Em termos gerais, o movimento evangelical não fez a IECLB crescer em número de membros. Algo semelhante vale com relação à chamada “linha sócio-política”. O quadro é oscilante. Paróquias sob tal orientação perderam membros, outras conseguiram um modesto aumento. Mas o balanço geral não indica significativos avanços. Com relação ao “Movimento Carismático” ainda faltam os dados. Certo é que costuma conduzir a sérios conflitos comunitários. Também desta vez a conquista de novos membros parece ter por preço o abandono e a consequente exclusão dos antigos. Será forçoso que assim seja? Os dissensos teológicos acabam fraccionando a IECLB, certamente não na cúpula, e, sim, nas bases, constituindo-se em forte obstáculo ao crescimento. A temida divisão da IECLB é um processo em pleno andamento.
Tal constatação reforça a pergunta pelos “exclusivismos” que trancam o desenvolvimento. Será intolerância uma característica dos movimentos, permitindo-lhes constituir apenas grupos, facções e não comunidade? Em que medida são capazes de admitir legítima diversidade? A pergunta recebe reforço pelo pluralismo da sociedade democrática, moderna. Como integrar o diferente e onde traçar as fronteiras do permitido e do proibido? Comunidade cristã, ela terá vez diante das opções do mercado religioso que se rege pela lei da oferta e da procura? Também questões estruturais deverão ser repensadas. Na IECLB prevalece a estrutura paroquial. Isto significa que a comunidade cobre determinado espaço geográfico, atendido por um/a só obreiro/a. Que fazer para que essa estrutura tradicional funcione também nos grandes centros urbanos? Por acaso, deverá ser substituída?
São muitas as perguntas. Certo é que a IECLB, para ser viável, deve crescer. E para crescer, são necessárias mudanças. Eis a conclusão sombria a que chega o estudo de Kliewer: “Mantida a conjuntura atual, a IECLB não tem condições de crescer em número de membros.” Isto significa que os dados estatísticos redundam num atestado de inviabilidade da IECLB. Sob as condições atuais, a IECLB não tem futuro. É claro que isto não se aplica a todas as paróquias e a todos os sínodos. Há que se respeitar as diferenças. E no entanto, o prognóstico do desenvolvimento da IECLB em seu conjunto é nada animador. Deveremos por isto resignar? De modo algum. Pois o levantamento estatístico também mostrou haver potencialidades. A IECLB possui talentos, sim. Mas sua mobilização exige correção de defeitos. É nossa convicção que os fatores inibidores do crescimento são predominantemente de ordem interna. São produzidos “em casa” e, exatamente por isto, suscetíveis de conserto. A pergunta é, se a IECLB tem a energia para ser o que ela é, a saber “Igreja da Reforma.”
II. O desafio da missão
Durante mais que um século os evangélicos imigrantes da Alemanha tinham sua identidade garantida. A germanidade assegurava a membresia às comunidades, bem como aos posteriores Sínodos que se formaram em solo brasileiro. Não se pretendia a missão na nova pátria. Considerados hereges pela Igreja Católica que gozava de oficialidade no Império, os imigrantes se contentavam com a condição de grupos tolerados sem direito à propagação de sua fé e de seu “rito”. Este passado gravou profundas marcas no povo luterano. Elas não puderam ser desfeitas nem mesmo depois da proclamação da liberdade religiosa no País, em 1889, e da fusão dos Sínodos na “Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil”, em 1949. É verdade que já muito cedo se percebeu não haver futuro para uma Igreja baseada em fundamento étnico somente. Não obstante o despertar para a terefa missionária foi um processo longo e penoso. Ainda não está, de modo algum, concluído.
Para tanto contribuiu uma teologia que, em decorrência de experiências traumatizantes no passado, confundia missão com alienação cultural, respectivamente com proselitismo. Não só no Brasil, em todo o mundo, “missão” era fenômeno suspeito, idéia associada ao colonialismo do século XIX. Enquanto na esfera secular “publicidade”, “propaganda”, “divulgação” são considerados direitos naturais, implícitos na cidadania, nas Igrejas chamadas históricas a “tarefa missionária” se defrontava com resistências. Claro, missão está profundamente arraigada no ser da Igreja. Não pode ser abolida Mas que significaria? Transformação social, presença evangélica, conversão de indivíduos, ação diaconal? O conflito das interpretações paralizava também a ação da IECLB. O tema esteve em pauta pela primeira vez no IX Concílio Geral, realizado em 1974 em Cachoeira do Sul. O documento que produziu sob o título “A IECLB – Igreja Missionária no Brasil”, certamente deu valiosos impulsos. Mas ficou devendo uma definição precisa. A missão sucumbiu na variedade dos afazeres de uma Igreja ativa, sem claro perfil e proposta. Que missão tem algo a ver com edificação de comunidade permaneceu aspecto marginal.
Desde então foram várias as tentativas de levar adiante a reflexão missionária. As circunstâncias a tanto obrigaram, entre elas o desafio da migração e a crescente concorrência religiosa, principalmente nos centros urbanos. A germanidade já não constitui o vínculo natural das pessoas com a IECLB. Mais e mais ela deverá definir sua identidade em termos rigorosamente confessionais. Que significa isto? De um modo geral vivemos a erosão dos fundamentos da sociedade. Fala-se em “destradicionalização”. Por isto mesmo, a mera força da tradição não vai segurar os membros na IECLB. Futuramente vai pertencer a ela somente quem para ela foi conquistado, respectivamente quem a ela se filiou de modo consciente. Quem não faz missão, vai sofrer a missão por parte de outros. A inquietitude de muitas comunidades por sobre o avanço agressivo de outras religiões, denominações e novos movimentos religiosos exige não só medidas defensivas, entre as quais merece destaque a formação teológica da comunidade. Da mesma forma é preciso despertar para a própria missão. O imperativo conduziu à proposta de “Recriar e Criar Comunidades Juntos”. É este o título do “Plano de Ação Missionária do IECLB” (PAMI), lançado no ano de 2000. Ele representa um decisivo passo adiante. Redescobre a comunidade como sendo, a um só tempo, agente e meta da missão. Dizia o subtítulo: “Nenhuma comunidade sem missão – nenhuma missão sem comunidade!” Não se nega ser missão evangélico-luterana multidimensional. Mas ela está centrada na comunidade, incumbida de levar o evangelho aos confins da terra.
A mobilização trouxe alguns bons frutos, a exemplo das valiosas iniciativas do Movimento Encontrão sob o nome “Missão Zero”. O mesmo vale para projetos de missão urbana. Uma avaliação exata dos efeitos da arrancada missionária da IECLB está fora de nosso alcance. Certo é que a campanha “mexeu” com as consciências, eliminou antigos entraves, abriu perspectivas. A causa não deveria cair novamente em esquecimento. Missão como convite em nome de Jesus Cristo para abraçar a fé e juntar-se em comunidade não tem nada de violento. Não nega a sabedoria dada a outros. Mas não deixa de trabalhar com o próprio talento. Dirige-se prioritariamente a gente “sem Igreja”, não aos membros fiéis de Igrejas irmãs. Ecumenismo e missão não são atividades excludentes. Queremos ao mesmo tempo a comunhão e a comunidade. O que se pretende é uma Igreja “atrativa”, que chama e convida nos termos do que já foi o tema da IECLB: “Aqui você tem um lugar”.
Descontando, porém, alguns louváveis avanços, a IECLB ainda está longe de ser uma Igreja missionária. Por demais vezes, a mentalidade não acompanhou os projetos. Um dos fortes sintomas para tanto são os percalços financeiros, relativos à contribuição do membro à paróquia e desta à IECLB. Inadimplência e pobreza certamente agravam a situação. Mas não explicam as dificuldades. Estas resultam antes de uma concepção “clubista” de comunidade, de acordo com a qual o dinheiro compra o direito de sócio, e, portanto, de ser servido. Sob tal ótica, é claro, a contribuição deve ser igual para todos e tão baixa como possível. Contribuição como participação na “missão de Deus” no mundo está fora da perspectiva. Também os/as obreiros/as estão muito conscientes de seus direitos. Eles os cobram das comunidades, não raro em prejuízo das mesmas. Vocação deu lugar ao professionalismo. Claro, também aos/às obreiros/as assistem direitos. Mas quem nada puder fazer de graça, não está apto a servir na seara do Senhor. Da mesma forma é importante não negligenciar a competência profissional. E no entanto, puro professionalismo pode ser altamente frio e técnico. Vocação vai garantir o amor à causa, sem o qual o trabalho perde crédito. Somando-se a isto os escândalos produzidos por “mercenários” por quaisquer estúpidas razões, comunidades são literalmente “destruídas”. Um dos critérios de avaliação pastoral deveria ser o crescimento numérico da comunidade. Foi positivo, foi negativo, por que razões? Obreiros/as que causaram danos à comunidade ou que provocaram divisão não deveriam ter a chance de repetir o mesmo em outros lugares. São duras tais palavras. Atingem, assim espero, apenas uma diminuta minoria. Mas são necessárias como ajuda para não abortar o precioso projeto missionário. Repito o que eu já disse em outro lugar: Quem quiser encher um balde de água, deve primeiro tapar possíveis furos. Existe uma “contra-missão” na Igreja que é preciso evitar.
Mentalidade missionária requer a consciência de que todo membro é importante. Sofre com qualquer desligamento. Também não espera as pessoas chegar. Vai em busca das mesmas, convidando, indo, procurando. Por isto mesmo o serviço da visitação é fundamental, uma tarefa, aliás, cabível não apeans aos/as obreiros/as, mas a eles e elas também. As pessoas precisam sentir-se valorizadas. Da mesma forma torna-se cada vez mais importante o que chamo de “aconselhamento diaconal”. Outras denominações atraem pessoas com promessas de ajuda em problemas do cotidiano. Por que não as comunidades da IECLB? É um aconselhamento algo diferente do pastoral, não centrado apenas em assuntos de fé ou de ordem estritamente pessoal. Por isto mesmo deveria funcionar em lugar nêutro, mas como visível promoção da comunidade. Diaconia sempre tem sido porta de entrada para a missão. Amor conduz à fé, assim como este àquele. É sinal alvissareiro que a IECLB finalmente se identifica. Igreja missionária não pode ficar escondida. Deve procurar o mercado, o público, fazer valer a sua voz, marcar presença. O uso da mídia é para tanto instrumento imprescindível. A Igreja católica e os pentecostais que nô-lo ensinem. Não se trata de imitá-los. Pois evangelização e manipulação do povo pode facilmente confundir-se. Mas há o que aprender. Como Igreja luterana temos sido por demais acanhados no passado, retraídos, invisíveis. Somos chamados a ser cidade edificada no monte, como quis Jesus.
Ao mesmo tempo importa adotar e ensaiar o espírito da acolhida. Não raro falta afetividade no nosso jeito de ser, um campo a ser trabalhado. Não poucas pessoas se sentem rejeitadas pelo luteranos. A boa acolhida inicia na secretaria paroquial, mas tem prosseguimento nos cultos, nos ofícios, na catequese e nas demais atividades da comunidade. Tal espírito implica a prontidão para aceitar o diferente, pessoas de outras tradições culturais. Comunidade cristã não é “panelinha”. Não junta os iguais. Antes procura integrar “judeus e gregos”, os de perto e os de longe. Certamente não se trata de crescer a qualquer preço. A IECLB deve preservar sua identidade. Nem tudo cabe dentro de seus muros. Como Igreja confusa não terá vez. Precisa de clara proposta. Mas esta deve ser acessível a todos e animar para participar. Missão evangélica certamente deve traduzir-se em programas e iniciativas. Mas é muito mais do que isto. É um jeito de ser.
III. A pergunta pela identidade
Na sociedade pós-moderna, a religião já não é como era antes. Mudou de “cara”, de função, de papel. Se antes estabelecia as normas e dava direção à vida individual e social, hoje tornou-se opcional. Foi privatizada e convertida em mercadoria de consumo. Deve atender expectativas subjetivas, imediatas, concretas. Por isto ficam desestabilizadas as instituições, tradicionais guardiães de causas coletivas. O corpo está ameaçado de se desintegrar em mosaico de peças exóticas. Religião, para ter vez no mercado, precisa ser eficiente, mostrar resultados, acertar o gosto do freguês. Quais são as chances de Igreja de confissão luterana nessas condições?
Todas as Igrejas históricas, umas mais outras menos, lutam com esse problema. Porventura, tornaram-se caducas? Quem tira lucro são os movimentos, as empresas religiosas e o comércio correspondente. Ocultismo, esoterismo, mística e temas afins oferecem “best-sellers” nas livrarias, mas sem reflexos nas Igrejas. O mercado religioso parece privilegiar, de momento, uma religiosidade “pentecostalizante”, festiva, exorcisante, cuja oferta se resume essencialmente no que se entende por bênção. Ao lado da mesma pululam o espiritismo e as propostas reencarnacionistas. É pitoresco o quadro religioso no Brasil. O desencontro entre a oferta da Igreja e a demanda do mercado pode conduzir a sérias frustrações de pastores e pastoras. Veem debandar as massas para outros templos que não os seus. Buscam desesperadamente por receitas para recuperar a dinamicidade.
Nesse drama não adianta definir “identidade luterana” tão-somente em termos dogmáticos, teóricos. Que significam os quatros “sola”, por exemplo, o somente por graça, somente por fé, somente Cristo e somente a Escritura, em termos concretos no contexto brasileiro? O que decide sobre sucesso e fracasso no mercado é uma práxis. As pessoas querem usufruir, entusiasmar-se, vibrar. O tradicional discurso luterano, centrado na justificação por graça e fé, no perdão dos pecados, na morte expiatória de Cristo parece não atingir o público de hoje. Eis porque é forte a sondagem de novas fontes de inspiração. Boa parte das tensões na IECLB decorre de empréstimos tomados de fora na esperança de re-mobilizar a própria Igreja. Se vemos bem, tratra-se de paradigmas transdenominacionais, modernos, de indiscutível relevânica, muito embora possam ter correspondências na própria tradição confessional. O fenômeno religioso se apresenta numa extraordinária gama de variantes. Tentamos catalogar algumas das mesmas:
-Religião está a serviço da libertação dos oprimidos, da promoção de “salvações históricas”, da humanização da sociedade. Mesmo após a derrocada da utopia socialista, a teologia da libertação continua vigorosa, preconizando o “princípio misericórdia” (J. Sobrino), a “opção preferencial pelos pobres” em prol da luta por justiça, orientada nos valores do reino de Deus. Certamente o evangelho não se resume em ação política, mas não pode ser imaginado sem ela.
Religião recupera a auto-estima. Misturam-se aí “o auto-reconhecimento, a presença de um Deus interior, a conquista de um Eu superior, o autoaperfeiçoamento, o crescimento harmônico interno, práticas de cultivo à subjetividade e o ideal de um self perfeito e deificado…” Pretende-se a construção da personalidade no anonimato da sociedade técnica e o resgate das vítimas de às vezes histórica discriminação.
-Religião proporciona experiências místicas, de devoção ao sagrado, de profunda emotividade. O funeral do papa João Paulo II para tanto tem sido exemplo. A esmagadora maioria dos fiéis católicos discorda dos ensinamentos desse papa, mas se empolga com o fascínio de sua pessoa. Religiosidade moderna quer a emoção, é sentimental, até mesmo aberta para a magia. Procura espaços para a alma na fria racionalidade de um mundo científico e funcional.
-Religião promete fortes sensações. Atende a moderna demanda de aventura e experiências radicais. Aumenta o nível de “adrenalina” no sangue. Em suas variantes carismáticas promete êxtase, o elevar-se acima da rotina do cotidiano, o estar fora de si. Chama atenção exatamente por isto. Cai em vista, adere à “show-mania”, provoca entusiasmo.
-Religião é meio para conseguir cura divina, prosperidade, sucesso, uma necessidade premente na competividade social, especialmente entre a parcela carente da população. Seriam implicações da bênção de Deus, aliás já não entendida como dom gratuito, e sim, como prêmio a ser conquistado mediante investimento, inclusive financeiro. A teologia da prosperidade representa a mais consequente inserção da religião na ideologia do mercado.
-Religião fornece as certezas existenciais, sem as quais o ser humano sucumbe no relativismo. Afirma verdade, e o faz de modo categórico, insofismável, indubitável. Transmite o sentimento da segurança. Daí as tendências exclusivistas das religiões. Em épocas de desorientação geral, propostas fundamentalistas gozam de renovado interesse.
-Religião garante o status de pessoa eleita, salva, distinguindo-se da massa dos incrédulos. Para tanto pode ser alegada a ortodoxia, isto é a fé correta, ou a ortopraxia, a piedade, a ação correta. Assim ou assim, a pessoa crente se destaca das perdidas, das não convertidas, das que fazem parte do eixo do mal. A consciência da eleição implica a auto-valorização da pessoa.
A lista não é completa. O fenômeno religioso se apresenta complexo e multifacetado. Além disto, a tipificação possui algo de artificial. Pois os paradigmas se mesclam, podendo um adotar características de outros. Não se trata de enquadrar as formas da religiosidade contemporânea num esquema rígido. O que importa é descobrir ênfases, articulações específicas do que está sendo apregoado como “evangelho” hoje. E é nisto que as propostas variam e até divergem. Os paradigmas procuram, cada qual a seu modo, atender anseios humanos. E eles o fazem com indiscutível respaldo bíblico, muito embora o limite entre uso e abuso também desta vez seja pequeno. Voltamos a perguntar: A “ênfase” luterana deverá ser dada em qual das propostas acima?
É claro que, sob a perspectiva luterana, é impossível simplesmente optar. Isto uma vez porque as prioridades da ação pastoral são fortemente ditadas pelas emergências situacionais. Discurso e práxis da Igreja terão que primeiro ver e ouvir para então reagir. Ademais, seria leviano aderir a uma das ondas religiosas somente para acompanhar as modas. Sucesso no mercado é importante, sem dúvida, mas não será necessariamente sinal de autenticidade evangélica. Também no mundo da religião nem tudo o que brilha é ouro. Permanece válido o princípio de Paulo que exorta a examinar tudo e reter o que for bom (1 Ts 5.21). Desrecomenda-se, enfim, copiar estilo alheio. Se queremos imitar os pentecostais, saibamos que eles fazem melhor. Pois a cópia jamais é idêntica ao original. Para evitar mal entendidos seja sublinhado que de modo algum negamos a necessidade da “aprendizagem ecumênica”. Outros grupos religiosos têm muito a ensinar aos luteranos. Vale lembrar que desde sempre a pregação do evangelho teve que fazer “concessões” às preferências do público, teve que auscultar o mercado e aperceber-se da justa demanda. É legítimo, por exemplo, o apelo emocional na evangelização, é legítimo o desejo por visualização da fé em símbolos e retratos, é legítimo o anseio por cura. Quem não ouve o clamor do povo não vai poder socorrê-lo. Igreja luterana está impedida de cultuar um estéril confessionalismo que passa ao largo dos anseios das multidões no século XXI.
Dito isto, porém, ela deveria energicamente conscientizar-se de seu talento. Ele consiste no que tem sido o impulso original da Reforma, a saber o irredutível compromisso com a verdade da fé. Na ótica de Lutero e dos demais reformadores, o problema da época não era a falta de religiosidade. Pelo contrário, o povo era extremamente devoto, obediente às instruções da Igreja, ansioso por garantir sua salvação. Mas era uma religiosidade “ignorante”, ingênua, até mesmo estúpida, desorientada. O mesmo vale hoje: Fé e religião não são sinônimos. Existem, isto sim, afinidades. Assim como a religião não pode ser imaginada sem um mínimo de “crenças”, assim a fé costuma e até mesmo precisa usar expressões religiosas. Ainda assim, convém não confundir. Religiosidade pode abrir mão de “confessionalidade”. Não precisa de teologia. É emoção, comoção, adoração, deslumbramento ou estarrecimento perante o sagrado. Enquanto isso, a fé especifica seus conteúdos, presta contas de suas convicções, reflete. Analisa a religiosidade corrente para testar sua solidez, sua natureza evangélica, sua autenticidade. A Reforma causou escândalo justamente por isto.
Sem possibilidades de, neste contexto, aprofundar a relação complexa entre fé e religião, chamo atenção ao fato de que o tão falado retorno da religião num mundo que parecia encaminhar-se à total secularidade, não conduziu ao renascimento da fé. A religiosidade está muito viva, mas a fé está em profunda crise. O mundo pós-moderno não sabe o que deve e pode crer, ou seja em que confiar, em que apostar a existência, por onde se orientar. Com isto sumiram os parâmetros do normativo. A fé foi substituída por religiosidade emocional, privada, opcional, ou seja por uma religiosidade “light” que, enquanto não fanática, não incomoda nem transforma. Por via de regra exerce função compensatória. Entretanto, ela pode ser facilmente instrumentalizada para fins políticos, ideológicos, étnicos e outros. O fervor religioso, então, descamba em raiva que se descarrega em supostos culpados e cria vítimas. Ele gosta de demonizar o diferente, desencadear guerras santas, conclamar à batalha espiritual, na qual nós naturalmente sempre estamos no lado certo. Ele precisa de inimigos para se auto-afirmar. Religiosidade, por si só, costuma ser altamente irracional e por isto suscetível de manipulação.
Não assim a fé bíblica. Jesus não dispensa o juízo quando o assunto é fé. Através de sua atividade pedagógica promove a capacidade de discernimento das pessoas entre Deus e ídolos, entre realidade e ilusão, entre o bem e o mal. Fé autêntica jamais é cega. Sabe das razões que a sustentam. Não se deixa seduzir por promessas falazes. Embora não tenha provas científicas para as suas verdades, dispõe de bons argumentos. Muito de acordo com isto, M. Lutero preconizou a comunidade adulta como modelo de comunidade evangélica. Ela não é composta de “massas populares”, dependentes de tutela humana. Constitui-se, muito antes, de sujeitos conscientes, discípulos, pedras vivas. É uma implicação do que o reformador chamou de sacerdócio geral de todos os crentes.
A Igreja luterana é herdeira desse compromisso ambicioso. Quer a fé assumida de seus membros, não o ôba-ôba religioso, superficial e passageiro. A proposta luterana no mercado das religiões é a sabedoria do evangelho, mediante a qual desafia as loucuras deste mundo (1 Co 1.18s). Insiste no bom senso na religião, na ciência, na política, lembrando que as maiores conquistas do ser humano a nada se reduzem, se não estiverem acompanhadas pelo amor (1 Co 13.1s) e pelo temor a Deus (Pv 1.5). Ela fará valer a mesma insistência frente ao agnosticismo que, ao lado da religião e em meio a ela, está ganhando espaço na sociedade brasileira. Conforme o Sl 14.1, a negação de Deus não é sinal de inteligência, e, sim, de estupidez. Um mundo ateu não é de modo algum mais prudente do que um mundo supersticioso. G. U. Kliewer, em palestra sobre o referido estudo estatístico da IECLB, recomendou aos e às estudantes de teologia o empenho por comunidades “interessantes”. E com efeito, somente como Igreja interessante a IECLB terá competividade no mercado religioso. Vale a pena, assim entendo, competir com a sabedoria da fé nos “tsunamis” religiosos que varrem o mundo globalizado.
IV. O conflito das eclesiologias
Por enquanto, porém, não há consenso nenhum quanto ao perfil de uma “Igreja evangélica de confissão luterana no Brasil”. Pelo que tudo indica, a base formal da Constituição da IECLB é insuficiente para garantir a sintonia de propósitos. Muito à semelhança do que recentemente se constatou com relação ao Conselho Mundial de Igrejas, reina também na IECLB verdadeira “selva de eclesiologias”. Existem várias Igrejas na mesma estrutura. Os movimentos possuem, cada qual, seus devocionários, seus cancioneiros, suas editoras e mesmo alguma administração. Realizam seus próprios encontros. A IECLB conta com três Faculdades de Teologia, centros de formação de obreiros/as, com referencial bibliográfico e orientação teológica distintos. Seja repetido que variedade não é prejuízo enquanto integrada, “puxando a mesma carroça”. Entretanto, permanece a pergunta: Afinal de contas, que é a IECLB? Um movimento popular, uma comunidade eclesial de base, uma sociedade cultural religiosa, uma célula pietista, um grupo carismático, um encontrão – ou? Todos reivindicam espaço na IECLB. Mas este está ficando pequeno para tanta diferença. É urgente que os movimentos especifiquem sua eclesiologia e a coloquem em discussão. A Pastoral Popular Luterana, o Movimento Encontrão, a Missão Evangélica União Cristã, a Comunhão Martim Lutero, a Renovação Carismática, como imaginam Igreja luterana neste País? Existe uma proposta viável, consensual? Esta, aliás, deverá levar em consideração, não por último, a eclesiologia de fato existente nas comunidades. Pois não adianta sonhar Igreja à parte da realidade. Os sonhos terão condições de realizar-se? Como? A IECLB sofre sob a síndrome das “eclesiologias submersas”, presentes, mas não discutidas abertamente, uma fonte de permanentes conflitos.
Em 1994, o Concílio Geral realizado em Cachoeira do Sul, houve por bem resolver uma “constituinte” da IECLB. Ela redesenhou a estrutura. Entrementes uma “constituinte teológica” atingiu o mesmo grau de urgência. Qual poderia ser o consenso teológico que permite à IECLB ser de fato Igreja? Consensos exigem diálogo, trabalho teológico, intercâmbio de experiências. Assim sendo, deve-se energicamente resistir à tentação de resolver as divergências teológicas através da conquista de maiorias nas instâncias decisórias. A imposição de um grupo vai rachar de vez a IECLB, mesmo que aconteça com o respaldo do Concílio Geral. Tais considerações voltam a levantar a pergunta pelo papel dos movimentos na Igreja. Também esta questão está totalmente indefinida. Movimentos são valiosos enquanto acrescentam, são perigosos quando pretendem substituir. No primeiro caso, os movimentos assumem o jeito de ser da Igreja, da qual fazem parte. Inserem-se em suas ordens, usam o material litúrgico oficial, seguem as diretrizes dos documentos normativos, procurando enriquecer através de novas ênfases. Se, porém, desenvolvem estruturas paralelas, promovem a ruptura. Reclamar espaço na Igreja para desrespeitar suas ordens, é sinônimo de preparar a cisão. Julgo importante um acerto claro entre os movimentos e a direção da IECLB para definir expectativas mútuas, compromissos, atividades. Aplica-se isto também à Pastoral Popular Luterana que não se entende como movimento, e, sim, com espaço na IECLB. A diferença me parece mínima.
Qualquer acerto deve inevitavelmente traçar limites. Não nego ao movimento carismático potencial renovador. Mas quando adota a prática do rebatismo, respectivamente o “batismo de crentes”, ele ultrapassa a linha do tolerável. A concordância com o rebatismo não só conflitaria com a tradição luterana, ela colocaria a IECLB na contramão da história eclesiástica, com inclusão do testemunho bíblico. Isolaria a IECLB no mundo ecumênico. Quem rebatiza, já abandonou a IECLB. Por isto surpreende o apoio do Movimento Encontrão aos carismáticos, expresso no folheto expedido em 2001 sob o tema”Que Igreja queremos?” Merece aplauso o convite à conversa, bem como a iniciativa de discutir eclesiologia na IECLB. Mas, poderá ser incondicional e irrestrito o apoio à Renovação Carismática? Porventura, o Movimento Encontrão vai fazer-se porta-voz do rebatismo? É claro que a questão dos limites da IECLB é mais ampla. Exige uma discussão à parte.
As grandes vítimas dos dissensos na IECLB são as comunidades e as paróquias. Sofrem sob o impacto da orientação divergente de seus/suas pastores/as e demais obreiros que se revezam, enquanto elas, as comunidades, não têm condições de transferir-se. Aliás, é à “teimosia” das comunidades locais que a IECLB deve a unidade que lhe resta. Pois, se elas tivessem optado a favor de uma das “linhas” na IECLB, a ruptura já há tempo estaria consumada. Não obstante, a disputa teológica na IECLB causa danos às comunidades. Arranca-lhes fatias, cujo tamanho depende da intransigência com que as lideranças impõem o seu regime. A direção da IECLB tem tentado reagir, procurando participar mais decisivamente no provimento das vagas. Avaliações periódicas pretendem impedir a fixação indevida de obreiros e obreiras em determinados campos de trabalho. Mas as tentativas se mostram ineficientes sempre que os/as obreiros/as são hábeis em consiguir o apoio dos presbitérios e das diretorias paroquiais. Isto pode conduzir a perigosas constelações. Pergunta-se, se nesse tocante as atribuições dos Sínodos e da Secretaira de Pessoal não deverão ser ampliadas para evitar que obreiros/as e comunidades sigam rumos que os afastam da IECLB.
Ao falar nisso, convém apontar ao perigo que chamo a “privatização da comunidade”. Ela acontece sempre que os pastores ou as pastoras se portam como chefe do rebanho, ditam as regras de jogo em desrespeito às normas vigentes e impõem a sua teologia. Quando um pastor decreta a abolição do talar, por exemplo, quando por princípio se nega a batizar crianças, quando implanta novas regras para a celebração da santa ceia ou introduz hinários de outras Igrejas estabelece regime autoritário e trata a comunidade como se fosse sua propriedade particular. Ora, a comunidade evangélica é propriedade de Jesus Cristo, santuário de Deus, cuja destruição não passará impune (1 Co 3.17). Ela faz parte de um corpo que se chama IECLB, cuja confessionalidade e cuja ordem foi por ela estatutariamente abraçada. Por sua vez, a ordenação compromete os pastores e as pastoras com exatamente estas normas. Então, a falta de disciplina e o autoritarismo pastoral são atentados contra a natureza da comunidade. Também pastores devem aprender a aceitar a condição de minorias vencidas e respeitar tradições. O mesmo autoritarismo, aliás, pode ser encontrado em lideranças leigas. Também presbitérios ou diretorias não estão imunes contra a tentação de apoderar-se do rebanho de Jesus Cristo, estabelecendo seu próprio governo sob desconsideração dos dispositivos regimentais e de resoluções conciliares. A privatização da comunidade, seja por quem for, acarreta prejuízos e ameaça a unidade do corpo. É uma tentação a que se deve resistir.
Pelo que tudo indica, ainda não temos descoberto na IECLB o jeito como lidar com pluralidade. Isto apesar de tão substancias manifestos como o já citado “IECLB – no pluralismo religioso” e o texto aprovado pelo XXIV Concílio da Igreja em 2004 com o título “Unidade: Contexto e identidade da IECLB.” As propostas precisam traduzir-se em estratégia pastoral em nível paroquial. Espera-se dos obreiros e das obreiras que saibam trabalhar conflitos, que desistam de “optar” a favor do grupo de sua preferência na comunidade, que sejam servidores e servidoras de todos. Se em governo secular é assim, quanto mais na Igreja. Clientelismo sempre polariza. Para atingir os diversos públicos que se encontram também na comunidade evangélica, necessário se faz diversificar a oferta. Necessitamos de várias propostas litúrgicas, de opções diferentes para o trabalho com jovens ou com pessoas provenientes de outros ambientes culturais, bem como de cursos específicos para a formação teológica da comunidade, para citar apenas estes exemplos. A IECLB necessita de espaço experimental. Cabe cuidar, porém, para que por sobre a diversidade não seja perdida a coerência evangélica e o perfil próprio da confessionalidade luterana. Em todas as inovações deve ser possível reconhecer a face inconfundível da IECLB.
V. O charme luterano
Para ser viável, a IECLB precisa eliminar barreiras internas que lhe entravam o crescimento. Deve aprender, sobretudo, o mutirão eclesial. Por ora não consegue controlar o suficiente as forças centrífugas nem unir-se em torno de um projeto comum. Volta a manifestar-se, na IECLB, o tradicional “déficit eclesiológico”, típico do luteranismo. Para muitos luteranos, Igreja não passa de um mal necessário, uma concepção que favorece o individualismo e o corporativismo, ambos lesivos à comunhão dos santos. Falta auto-estima eclesiológica aos membros e grupos na IECLB. Também no mais há muito a arrumar na casa. Importa acentuar a dimensão mística, emocional da fé, trabalhar mais com símbolos e fazer o evangelho visível, sem cair refém de uma religiosidade tonta. Recomenda-se conjugar melhor a fé e o amor, bem como o temor a Deus e a alegria que nasce do evangelho. Sonho com comunidades celebrativas, agradecidas, corajosas no testemunho da sabedoria de Deus. Ao mesmo tempo, porém, me orgulho desta Igreja modesta, limitada. É Igreja séria e honesta. Ela tira vantagem por sobre muitas outras quando se trata de credibilidade e autenticidade. A IECLB merece uma imagem melhor do que aquela que muitas vezes dela se transmite.
Por tudo isto quero encorajar a (re-)descobrir o encanto da confissão luterana. Seu charme não se limita a alguns dogmas e axiomas de fé. Diz respeito a uma maneira de ser. Residem numa hermenêutica bíblica que sabe distinguir entre letra e espírito; num realismo antropológico que se recusa a divinizar como também a demonizar o ser humano; numa liberdade comprometida que se distancia tanto do legalismo quanto da permissividade; numa estrutura eclesial participativa que exclui hierarquia humana de qualquer tipo. A confissão luterana me convida à fé sem proibir o raciocínio crítico. Ela quer “crentes pensantes”, gente que sabe julgar as coisas e que, mesmo assim, não permanece presa ao criticismo. O luteranismo me ensinou uma determinada visão da realidade que é um pouco mais complicada do que muitos simplismos querem fazem crer. Subdividir o mundo em bandidos e mocinhos, em ganhadores e perdedores, em crédulos e incrédulos, em justos e pecadores, ora isto é construção de hipócritas ou de ingênuos. É estupidez a que a sabedoria doevangelho se opõe. Por isto mesmo sou grato por ser luterano e convido ao empenho para garantir viabilidade à IECLB.
P. Dr. Gottfried Brakemeier