Teologia da losna
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Amós 5.6-7;10-15
Leituras: Marcos 10.17-31 e Hebreus 4.12-16
Autoria: Evandro Jair Meurer
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/10/2018
1. Introdução
Cinco anos depois me foi colocado o mesmo desafio: apresentar auxílios homiléticos a respeito dos mesmos três textos. No PL 36, apresentei informações exegéticas e sugestões homiléticas para a pregação sobre o texto de Amós no 20º Domingo de Pentecostes. Vejamos então o que posso apresentar de novo e complementar para bem apresentarmos a palavra de Deus seis anos depois.
Desta vez, gostaria de propor deixarmos um pouco de lado o clássico verbete literário em Amós – Buscai o bem e não o mal e “explorar” (desculpe a palavra tão carregada de mau uso – exploração) um detalhe que muitas vezes passa “batido” em nossos estudos bíblicos sobre a perícope. Falo da “alosna”.
Há um fio azul muito nítido nos três textos para este dies dominica: Em Amós é dada a exortação a que se busque o Senhor e se viva sob a ética por ele proposta (v. 5); se busque o bem e não o mal, a fim de que a vida sobreviva à presença da morte em seus mais diferentes sinais reais (v. 14); se aborreça o mal, se ame o bem e se estabeleça o juízo, na expectativa de que Deus mude de ideia e não faça o que caber-lhe-ia fazer em uma situação de tamanho pecado (v. 15).
Em Marcos nos é narrada a história daquele homem (jovem) que tinha muitas posses (rico) e que está interessado em saber o caminho para a vida eterna. Jesus lhe propõe um caminho árduo (amargo) e de abnegação espiritual e material. Uma inversão de vida. Ou seja, se em Amós viria castigo aos desobedientes, em Marcos são anunciados desprendimento e inversão de posições e valores aos que desejam obedecer e seguir ao Deus de Jesus Cristo.
Em Hebreus, temos a clássica imagem da “espada” a ilustrar a vontade e o desejo de Deus para nós (v. 12). O desafio posto é de nos achegarmos ao trono da graça de Deus (v. 16), para que não sejamos “penetrados”, “perfurados”, “divididos”, “amputados” pelos dois afiados fios da sua palavra, que denuncia pensamentos e intenções pecaminosas às quais nos rendemos quando tentados.
Sob esse olhar, cada um dos três textos faz menção a “amargores” da vida em Deus. “Amargores” àqueles e àquelas que não andam no caminho, e também “amargores” aos que, por andarem no caminho, são provados e perseguidos por seu seguimento e vivência da fé. Ou seja, o que está proposto às pessoas que querem seguir a Jesus é a “teologia da losna” (Am 5.7) e não a “teologia do vinho” (Am 5.11).
2. Exegese
A botânica bíblica é muito rica. Através dela encontramos mensagens belíssimas que enriquecem nosso viver cristão de tal forma que podemos enriquecer outras pessoas, repartindo o que recebemos de Deus. Das imagens dos profetas às figuras utilizadas nas cartas dos apóstolos, passando pelas parábolas de Jesus, os exemplos que utilizam coisas da natureza e, em especial, as plantas são magníficos e muito pedagógicos. Revelam conhecimentos profundos sobre Deus e também de sua criação. Uma dessas ilustrações proféticas é a losna, planta que em hebraico se chama laanah, e em grego apsinthos, em português absinto, alosna ou simplesmente losna. Na Bíblia ela aparece nove vezes: oito no Antigo Testamento e uma no Novo Testamento (Apocalipse).
É símbolo de injustiça (Am 5.7), punição (Jr 9.15), sofrimento (Lm 3.19). Sob esses três enfoques aparece ainda em outras seis passagens bíblicas: Dt 29.18; Pv 5.4; Jr 23.15; Lm 3.15; Am 6.12. E no único texto do Novo Testamento: Ap 8.11.
Sem desmerecer as qualidades medicinais da losna, que também é parte da criação de Deus, e que quando devida e orientadamente utilizada pode curar e trazer vida e saúde, nas passagens bíblicas acima o Pai se utiliza dela para, no destaque ao amargor da losna, exemplificar o mal que acompanha muitas vezes o seu povo, os seus filhos e filhas. A profecia de Amós é um exemplo disso. O povo andava errante. A mensagem divina que Amós deveria trazer a Israel está bem clara: chegou o fim (confira as visões proféticas em 7.1-8, 8.1-2 e 9.1-4). Javé tinha, com certeza, motivos muito fortes: as transgressões do povo (cf. 2.6-8; 3.9-12a,12b-15; 4.1-3; 5.7-11; 8.4-7), as de ordem social (2.8; 3.14; 4.4-12,21-25; 5.10-12) e as de deturpação do culto (5.18-20; 6.1-7,8-14), fruto de uma falsa segurança proporcionada por uma má compreensão da eleição. Ou seja, os ouvintes da profecia de Amós pareciam mostrar-se seguros frente ao anúncio de juízo contra eles. Porém, estavam agarrados a uma falsa ideia (qualquer semelhança com o “jovem rico” não é pura coincidência). Tinham já experimentado toda a proteção de Javé, que lhes proporcionou vida. Já tinham feito a experiência de que a prática do bem, seguir os mandamentos (olha o “jovem rico” aí novamente!) e buscar a Javé havia lhes trazido vida. Mas agora era visível que uma parte deles estava se lembrando somente da promessa de vida e esquecendo de preocupar-se em fazer o bem:
– praticavam o comércio, tendo muitos lucros, porém ilícitos e exploradores;
– viviam em luxuosidade, em grandes casas de marfim, e a soberba estava presente;
– viviam em grandes festas com muita comida e bebida;
– eticamente a imoralidade não estava ausente;
– relações sexuais ilícitas, maus-tratos de um para com o outro estavam à vista;
– não faltavam os que eram falsos em sua religiosidade e que ao lado de oferendas, dízimos e sacrifícios, visitavam templos pagãos;
– injustiças no tratamento dos pobres;
– alguns acumulavam tesouros para si, fartavam-se, não se lembrando do necessitado;
– tratavam injustamente os pobres nos tribunais, levando a culpa pessoas inocentes.
Para os endereçados da profecia, não restou senão uma remota esperança: uma radical conversão ética talvez levasse a que a compaixão de Deus se revelasse ao menos para uma parte desse povo – “resto de José” (v. 15). Assim entendemos o mar de losna em que o povo de Deus estava envolvido e para o qual Amós foi chamado a profetizar.
3. Meditação
Parece-me que a losna é uma perfeita imagem para os nossos dias atuais, tanto no país como na comunhão eclesial.
Nadamos atualmente em um “rio de fel”, que pelo visto ainda desembocará num “mar de losna”. De operações “gospistas” (no legislativo) a “lava-jistas” (no judiciário), passando pelo “4×3” (no TSE), eis o cenário político brasileiro de 2016-17. Nós, que pregaremos sobre a profecia de Amós neste 14 de outubro de 2018, com certeza temos novos “amargores” para ilustrar uma pregação contextualizada. Escrevo este auxílio em junho de 2017. Neste momento, o presidente Temer, com o apoio de seu grupo parlamentar, ainda teima em se intitular assim e o “amargor” ainda persiste na boca de brasileiros e brasileiras, quando têm que suportar tanta justiça sendo transformada em “boldo” e tanto direito sendo lançado por terra. Fico aqui conjeturando como vai estar a conjuntura brasileira um ano e quatro meses depois. Mas de uma coisa infelizmente tenho certeza: a denúncia profética de Amós ainda terá seu espaço e sua atualidade em nossa realidade brasileira.
De outra forma, seria recomendável que avaliássemos nossa postura relacional comunitária também. Em que medida somos um irmão ou uma irmã “losna”? Em que medida somos um irmão ou uma irmã “vinho suave”, ou um irmão ou uma irmã mel? O “amargor” muitas vezes também se concretiza em nossas relações de amizade, familiaridade e de fraternidade cristã. O texto de Amós também é uma profecia para dentro da igreja. O “amargor” muitas vezes e infelizmente é a marca em nossas convivências ditas fraternas, que se mostram tantas vezes azedas e até repugnantes. Numa tentativa de um neoprofetismo transcrevo:
Sim. É isso que vocês estão fazendo:
O direito está sumindo e a justiça está no chão.
Vocês erram ao não temperar o mundo.
Vocês pecam quando se calam diante da inversão de valores.
Vocês frustram o Criador de vocês…
Quando se matam e se violentam uns aos outros…
Quando não punem nem castigam os violentos e os infratores…
Quando incentivam a imoralidade, a pornografia, o adultério e a exploração sexual e reproduzem tudo isso em suas TVs e computadores…
Quando maltratam a natureza e fazem mal uso dos recursos naturais…
Quando institucionalizam o suborno e a corrupção de juízes e legisladores…
Quando agem com egoísmo querendo levar vantagem em tudo…
Quando manipulam as estatísticas e distorcem as informações para fazer parecer que está tudo em paz e segurança…
Quando fazem com que os honestos paguem impostos demais e incentivam as pessoas a roubar e mentir em suas declarações de faturamento…
Quando tornam o circo mais importante do que a educação…
Quando humilham os professores, os policiais e os médicos, e superestimam os malandros, os atletas e os animadores de circo…
Quando não valorizam mais o papel do pai e a função da mãe…
Quando desprezam a comunhão da igreja e ridicularizam o cajado dos pastores…
Quando tornam o dinheiro a razão de existir…
Quando levantam falsos pastores que lhes acariciam os ouvidos…
Quando perdem o conceito de pecado e ignoram o temor de Deus…
Quando transformam o culto em show e a profecia em autoajuda…
Quando vivem no egoísmo e orgulho e não sabem o que é a bondade e o amor…
Quando adestram supersticiosos fi ngindo lhes mostrar o caminho e misturam a fé com a crendice…
Quando roubam de mim as pessoas levando-as à idolatria de Maamom…
Quando se calam diante do mal e se omitem perante a injustiça…
Quando deixam a viúva sem consolo e perpetuam a amargura do órfão…
Quando deixam de evangelizar e discipular para Jesus a fim de atrair membros para seus grupos de amigos…
Quando julgam que estão agindo bem porque ajuntam grande número de adeptos…
Quando reclamam da chuva ou do calor e me atribuem a culpa por desastres…
Quando pensam que podem determinar o que eu devo fazer e acham que existo
para mimar seus desejos nojentos…
Quando mentem e enganam uns aos outros pensando que os fins justificam os meios…
Quando gastam o tempo tão escasso com joguinhos de crianças desocupadas…
Quando ignoram a palavra da vida e resistem ao verdadeiro jejum…
Por isso e por outras coisas, eu tenho poucas alternativas para vocês senão derramar meu juízo…
É somente por causa da minha misericórdia e minha grande paciência que vocês ainda não foram consumidos…
Aguardo por mais um pouco de tempo para ver se ao menos mais alguns de vocês podem ser salvos…
A minha ira está à porta. O meu furor não poderá ser suportado… Não deseje que este dia venha para você e para os seus…
Chore, lamente-se, arrependa-se e convoque reunião sem música e sem risos, para que eu mude de ideia e cancele o castigo… O tempo da vingança está próximo!
Se ao menos um remanescente me ouvir, se me buscar de coração e me honrar junto aos oprimidos, se confessar o pecado que me ofende e zelar pelo direito e pela justiça… então eu me levantarei e cancelarei o juízo que está por vir, perdoarei a iniquidade e transformarei a sua nação…
Convertam-se os corações dos pais aos filhos e dos filhos aos pais…
Voltem os maridos para as suas esposas e as esposas para os seus maridos…
Haja confissão de pecados nos púlpitos e gritos de vergonha nas assembleias…
Eu não quero mais ser louvado ao som de cordas e tambores. Eu quero ser glorificado pelo pulsar de corações e pelo gemido dos espíritos quebrantados. Eu quero mentes que me queiram…
Eu estou chegando e chamando. Quem me ouvir será bem-aventurado. O vencedor será recompensado.
A sabedoria, a verdade e a justiça aguardam a manifestação da verdadeira fé, da atitude de fidelidade, da força do amor. Vocês estão fazendo tudo errado,
mas eu os convido a corrigir!
Convertam-se!”
(Disponível em: voces-estao-fazendo-tudo-errado-amos-57.html.> Acesso em: 28.06.2017.)
4. Imagens para a prédica
Seria certamente ousado oferecer na entrada do culto um chá de losna ou, então, chá de boldo aos que estão chegando à celebração. Combinado com a equipe litúrgica da comunidade ou grupo responsável pela recepção no culto, essa surpresa seria bem interessante. Em tom de gentileza, convidar a um chazinho. Contudo, não aquele chá gostoso costumeiro nas confraternizações de final de eventos da igreja, mas aquele copinho com um gole de chá bem amargo. Na pregação poderia se fazer menção a essa experiência. Em contraposição, ao final do culto, poderia ser oferecido e servido um gostoso chá com aquela pitadinha de gengibre, limão ou mel para a comunhão e confraternização junto à porta da igreja. Caso o culto seja com a Ceia do Senhor, a figura do “vinho” também poderá ser “explorada” positivamente apontando para comunhão no sangue salvífico de Cristo, fonte de toda a justiça e direito, verdade e bem.
5. Subsídios litúrgicos
Mesmo que de um material já de três décadas atrás e de um contexto específico (Santarém/PA), a coleção Projeto de Deus (Edições Paulinas) me vem à lembrança quando reflito sobre os profetas do Antigo Testamento. O livrinho apresenta desenhos, ilustrações e passagens bíblicas que apontam para o “Projeto dos reis”, distinguindo-os do “Projeto de Deus”. Talvez o resumo possa inspirar–nos a criar e contextualizar um responsório litúrgico que aponte profeticamente para o projeto de poderosos e poderosas de nosso tempo, contrastando com o anúncio de Projeto Divino para a igreja e a sociedade de nosso tempo:
Projeto dos reis
1. Sociedade dividida
2. Exploração do trabalho
3. Concentração do poder
4. Leis que defendem o sistema
5. Exército de mercenários
6. Monopólio do saber
7. Vários deuses
8. Culto de ritos
9. Sacerdote latifundiário
Projeto de Deus
1. Sociedade igualitária
2. Autonomia de produção
3. Poder comunitário
4. Leis que defendem o povo
5. União do povo
6. Escola para todos
7. Único Deus libertador
8. Culto a partir da vida
9. Sacerdócio profético
Bibliografia
EQUIPE de Catequese Rural da Diocese de Santarém-PA. Projeto de Deus. São Paulo: Paulinas, 1987.
KIRST, Nelson. Amós – textos selecionados. Comissões de Publicações da Faculdade de Teologia da IECLB. São Leopoldo: 1981. (Série Exegese, v. 1, Fascículo 2).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).