Em Deus podemos confiar
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Apocalipse 1.4-8
Leituras: João 18.33-37 e Daniel 7.9-10,13-14
Autoria: Emilio Voigt
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 25/11/2018
1. Introdução
A festa do “Cristo Rei” foi instituída em 1925 pelo papa Pio XI e entrou no âmbito protestante com a adoção do lecionário ecumênico. Há críticas em relação ao nome dado para este, que é o último domingo do calendário litúrgico. Qual mensagem o título “Cristo Rei” estaria transmitindo? O texto previsto para a pregação menciona o trono de Deus e identifica Jesus como o maioral dos reis da terra. As leituras de Daniel e do Evangelho de João igualmente reforçam a ideia de um reinado. Neste sentido, a terminologia do domingo não está distante da perspectiva bíblica e da concepção de exaltação decorrente da fé na ressurreição e ascensão. Entretanto, é necessário explicitar o conceito de reinado. A declaração meu reino não é deste mundo (Jo 18.36) pressupõe dois indicativos importantes: não está sob o nosso controle e se manifesta de forma sui generis. A soberania divina não pode ser comparada ao exercício humano de poder. Não é baseada em privilégios, dinheiro, força ou armas. Dispensando teologias da glória, é concebível falar em Cristo Rei. Jesus é nosso Senhor e Rei porque nos serviu com sua vida, morte e ressurreição.
A proposta de delimitação omite a parte inicial do v. 4 provavelmente para que as pessoas ouvintes de hoje não se sintam excluídas. Considerando que o contexto do livro do Apocalipse é relevante para compreender a sua mensagem, proponho integrá-lo à perícope. O Império Romano era o palco no qual o sofrimento e a ousadia de comunidades cristãs se evidenciavam. Esse império tinha sua capital em Roma e abrangia territórios na Europa, Ásia Menor e África. O domínio se expandiu com base em um poderoso e cruel aparato militar. Roma não é citada explicitamente no Apocalipse, mas o enfrentamento com o Império Romano perpassa todo o livro.
2. Exegese
v. 4-5a: Sobre João sabemos que era profeta (22.9) e que entendia sua mensagem como profecia (1.3; 22.7,10,18s). Levando em conta a época e o estilo de redação, é muito pouco provável que tenha sido o discípulo de Jesus ou o autor do quarto evangelho. Em todo caso, ele se considera irmão e companheiro nos sofrimentos das comunidades para as quais escreve (1.9). O escrito é endereçado a sete igrejas (comunidades) da Ásia Menor: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodiceia (1.11). As cidades estavam localizadas ao longo de rota comercial, eram estações de correio e, em parte, centros de justiça. A localização atual é a Turquia. Na tradição judaica, o número sete indica totalidade, perfeição, plenitude. Simbolicamente, as sete comunidades seriam a representação do conjunto da igreja. O Cânon de Muratori (por volta de 200 d.C.) menciona que João, ainda que escreva a sete igrejas, está falando para todas.
O Apocalipse é classificado como livro, mas os v. 4-8 correspondem a uma introdução de carta, semelhante ao modelo das epístolas paulinas. A estrutura inicial dessas cartas continha menção ao remetente, a pessoas ou comunidades destinatárias e uma palavra de saudação. Graça e paz era uma típica saudação paulina (Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.2; Gl 1.3; Fp 1.2; 1Ts 1.1), o que pode ser indício da influência do apóstolo na região. Paz era saudação característica do povo judeu. Graça remete ao conteúdo central do evangelho de Jesus Cristo. A graça e a paz provêm de Deus, dos sete espíritos e de Jesus Cristo. É algo que pode ser recebido, porém nunca como posse definitiva. Ao ser humano cabe pedir e compartilhar aquilo que recebe.
Com base em Êxodo 3.14, Deus é caracterizado – em três tempos verbais – como aquele que é, que era e que virá. A lógica insinuaria o futuro do verbo ser, (é, era, será), porém João utiliza o verbo vir. A escolha do verbo provavelmente tem fundamentação em Daniel 7.13 e no fato de Jesus Cristo ser concebido como aquele que estava para vir (Mt 11.3). Aqui, todavia, o próprio Deus é identificado como aquele que está para chegar.
A referência aos sete espíritos (1.5; 3.1; 4.5; 5.6) pode indicar seres celestiais, tais como anjos (8.2). Na tradição judaica há referências a sete arcanjos que poderiam ser equiparados aos sete espíritos. Eles também poderiam corresponder ao Espírito Santo, mas essa interpretação trinitária é igualmente especulação. Não há como saber.
Tal como Deus, Jesus Cristo recebe tríplice definição: testemunha fiel, primogênito entre os mortos, soberano (chefe, líder) dos reis da terra. Encarnação, ressurreição e exaltação estão desta forma circunscritas. A designação como “testemunha” remete à atividade de Jesus. Suas palavras e ações foram sinais e testemunhas do reino de Deus. Sua fidelidade culminou com a morte na cruz. A ressurreição marcou a vitória sobre a morte. Nesse sentido, ele é o primogênito – o primeiro – a ressuscitar. Com a ascensão, Jesus foi exaltado e colocado em posição superior à qualquer autoridade humana. Tornou-se rei dos reis e senhor dos senhores (1Tm 6.15; Ap 17.14; 19.16).
v. 5b-6: À introdução segue-se uma doxologia (louvor, adoração), elemento comum em salmos e orações, a exemplo do Pai-Nosso. Doxologias são costumeiramente dirigidas a Deus (Sl 41.13; 72.18s; Rm 11.36), mas aqui é direcionada a Cristo, assim como em outros escritos tardios do Novo Testamento (Hb 13.21; 1Pe 4.11; 2Pe 3.18). Seu conteúdo faz referência à obra salvífica: Jesus Cristo nos ama, nos libertou dos pecados, nos constituiu reino e sacerdócio. O amor é a essência da obra salvífica. A libertação dos pecados foi outorgada pela morte na cruz. Diferentemente da teologia paulina e da compreensão luterana da simultaneidade de justiça e pecaminosidade, o Apocalipse parece pressupor que já estamos plenamente livres do poder do pecado. A constituição como sacerdócio é resultante da exaltação e evoca Êxodo 19.6: vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa. O caráter teocêntrico da função é preservado: o sacerdócio está a serviço de Deus.
v. 7: A palavra profética resulta da interpretação cristológica de Daniel 7.13 (vem com as nuvens) e Zacarias 12.10-14 (foi traspassado). Jesus Cristo virá com as nuvens e todas as pessoas o verão, também aquelas que não professam a fé cristã. Chama a atenção que todas as pessoas lamentarão sua vinda. O motivo do lamento não é explicitado. Pode ser manifestação de arrependimento ou de temor em relação ao juízo, mas é mais provável que seja demonstração de compaixão pelo sofrimento ao qual o crucificado foi submetido.
v. 8: A metáfora do alfa e ômega, a primeira e a última letra do alfabeto grego, evoca Isaías 44.6: Eu sou o primeiro e eu sou o último, e além de mim não há Deus. Deus está no princípio e no fim de todas as coisas, abrange tudo, preenche tudo e em seu poder estão todos os acontecimentos. A caracterização de Deus como todo-poderoso (pantocrator) é frequente no livro do Apocalipse (1.8; 4.8; 11.17; 15.3; 16.7,14; 19.6,15; 21.22). Fora dele, aparece somente em 2 Coríntios 6.18. Essa caracterização é uma contestação notória ao culto imperial e à pretensão de controle absoluto do Império Romano.
3. Meditação
A prédica pode ser elaborada com base na seguinte estrutura:
1. Identificação:
Quem escreve: João
Para quem: sete igrejas (toda a igreja)
2. Saudação:
Graça: conteúdo do evangelho
Paz: justiça e vida digna
3. Motivação:
Quem concede graça e paz
Deus: era, é, há de vir
Sete Espíritos: estão diante do trono de Deus
Jesus Cristo: Fiel testemunha, primogênito dos mortos, soberano máximo
4. Doxologia:
Glória e domínio a Jesus
Nos ama
Nos libertou dos pecados
Nos constituiu reino e sacerdócio
5. Profecia:
Jesus Cristo virá
Todas as pessoas verão
Todas as pessoas lamentarão
6. Afirmação:
Quem é Deus
Alfa e Ômega
Aquele que é, que era e há de vir
Todo-Poderoso
1. Identificação – João escreve para comunidades que estavam sofrendo perseguições. Provavelmente não havia ataques sistemáticos em todo o Império Romano, mas ações circunstanciais que, todavia, eram cruéis e resultavam em prisão, tortura e execução. Na Ásia Menor ocorreram perseguições brutais sob o imperador Domiciano (81-96 d.C.), sobretudo nos últimos anos do seu reinado. Desde Nero (66 d.C.), o cristianismo era considerado superstição ilícita e perigosa. A recusa de prestar culto ao imperador deve ter impulsionado a repressão sob Domiciano. Inicialmente, esse culto consistia na veneração ao imperador falecido, especialmente a César Augusto. Calígula (37-41 d.C.) exigiu devoção também a si próprio. Domiciano foi mais longe. Ele mandou colocar imagens e estátuas de sua pessoa em diversas regiões do império. No templo romano de Éfeso foi erigida uma estátua, cuja dimensão da cabeça equiparava-se à estatura de uma pessoa. A avidez por reverência não parava por aí. Suas leis e ordens costumavam iniciar com as palavras: “nosso senhor e deus” (dominus et deus noster). Nesse contexto, confessar Jesus como “senhor” signifi cava insubordinação política e traição ao imperador.
O testemunho de Jesus Cristo e a negação do culto imperial não se limitavam a uma questão litúrgica. Havia concepções e formas de vida divergentes. A fé cristã contém princípios que contradizem regimes políticos e sistemas econômicos baseados em violência, corrupção, injustiça e desigualdade. Há muitos sistemas inconciliáveis com a fé, a exemplo da economia de mercado que propicia riqueza para uma pequena parcela, penalizando a maioria com dificuldades e miséria. A ganância desmedida resulta em agressão à criação e esgotamento dos bens naturais. Muitas vezes a crueldade e os malefícios são camuflados. Convém examinar até que ponto nos acomodamos, nos constrangemos ou nos beneficiamos com práticas e estruturas incompatíveis com a fé. Que tipo de sofrimento o enfrentamento desses poderes pode suscitar?
2. Saudação – O apocalipse foi escrito quando vigorava a assim chamada pax romana, um período de relativa estabilidade nos territórios ocupados. Ameaças externas estavam controladas e indícios internos de insurreições eram suprimidos pelo aparato militar. A paz que João deseja às comunidades não está baseada em força e repressão. O profeta anuncia a paz que decorre da relação com Deus e leva ao esforço pelo bem-estar de todas pessoas. Em sentido bíblico, somente há paz quando se concretizam a justiça e a vida digna.
3. Motivação – Nessa motivação há um chamado a confiar. Apesar da situação de sofrimento, as comunidades podem sentir graça e paz. Mesmo em sensação de impotência e abandono, Deus não está ausente, mas acompanha a vida das comunidades. O imperador tem autoridade limitada porque o poder divino está acima dele.
4. Doxologia – A doxologia é um louvor e também uma declaração daquilo que Cristo fez e continua fazendo. A afirmação de que ele nos ama está no tempo presente para assinalar processo contínuo, que não se limita a uma ação singular ou a um período determinado. Por outro lado, a libertação dos pecados e a constituição como sacerdócio são ações específicas que, todavia, contêm perspectiva ininterrupta. A libertação dos pecados significa, em primeiro lugar, que a natureza pecaminosa não é um entrave. Deus nos aceita apesar de sermos pessoas pecadoras. O apóstolo Paulo diria: Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores (Rm 5.8). Em segundo lugar, a libertação dos pecados diz respeito aos atos pecaminosos que cometemos. Também desses eventos circunstanciais carecemos reiteradamente de libertação.
A nossa constituição como sacerdócio não acontece por merecimento, mas pela obra de Jesus Cristo. Não há meritocracia. Quem usa tal terminologia somente pode apontar para os méritos de Cristo. Essa obra em nosso benefício tem três implicações: acaba com as hierarquias, nos aproxima de Deus e nos coloca ao seu serviço. Não há pessoa que esteja mais próxima de Deus ou que seja mais importante dos que as outras. Todas são iguais. A comunidade toda é elevada à posição sacerdotal e toda a comunidade participa de igual forma do sacerdócio. Todavia, é necessário ressaltar que não recebemos um cargo, e sim uma função. O sacerdócio está a serviço de Deus no mundo e se efetiva em ações do dia a dia. Na prédica se pode apontar para a concepção luterana de sacerdócio geral, que tem também aqui a sua base.
5. Profecia – Com a vinda de Cristo, a soberania de Deus se estabelecerá completamente. Essa esperança perpassa todo o livro do Apocalipse. Nós igualmente vivemos na esperança de algo totalmente diferente – um novo céu e uma nova terra. Mas como preservar a paciência se a espera já dura quase dois mil anos? Como manter a confiança quando se tem a impressão de que as coisas pioram? Tal como uma praga, o mal se dissemina sobremaneira. Como manter a confiança quando parece não haver alternativas para a situação do país ou para a conjuntura global? Na época de Domiciano, havia pessoas obcecadas pelo poderio militar romano. Imaginava-se que ninguém seria capaz de vencê-lo (Ap 13.4), mas também esse impressionante império teve seu fim. Neste sentido, podemos nutrir a esperança. A espera não consiste num permanente olhar para cima. O céu não precisa ser buscado na longitude do firmamento. Ele já se manifesta no decurso que me aproxima das pessoas, especialmente daquelas que necessitam.
6. Quem é Deus? Deus age no passado, no presente e no futuro. O alfabeto grego possui 24 letras, assim como o dia tem 24 horas. Com isso a metáfora expressa que Deus é o início e o fim do tempo e da história. Para o cristianismo, somente Deus é o pantocrator (todo-poderoso, onipotente). Poder geralmente é associado com força e riqueza, e muitas vezes é exercido para oprimir e matar. O poder de Deus, por outro lado, não é arbitrário e despótico. Sua função é criar, proteger e manter a vida. A onipotência de Deus só pode ser entendida a partir do amor e do serviço. Nossos tempos são marcados por transformações rápidas e intensas. Tudo parece ser relativo e as verdades parecem não mais constituir referência. É difícil saber ou mesmo acreditar que existe verdade. Talvez por isso o termo “pós-verdade” esteja tão em voga. O texto de pregação aponta para uma verdade absoluta que permanece como fundamento da nossa fé: Deus era, Deus é, Deus virá. Em Deus podemos confiar.
4. Indicações para a prédica
– Preparar um envelope grande, com várias folhas dentro, como se fosse o escrito de João.
– Iniciar a prédica dizendo que recebemos uma mensagem, que será o tema da reflexão.
– Sem abrir o envelope, ler o remetente. Falar um pouco sobre o profeta, mencionando que está preso na ilha de Patmos por causa do testemunho de Jesus Cristo (Ap 1.9).
– Ler o nome das sete comunidades destinatárias, mencionando que elas representam o conjunto da igreja da época. Descrever brevemente o contexto de perseguição sob Domiciano.
– Explicar que, como palavra de Deus, o escrito também se destina à nossa comunidade.
– Abrir o envelope, ler o texto de pregação e seguir com a reflexão.
Bibliografia
LICHTENBERGER, Hermann. Die Apokalypse. Stuttgart: Kohlhammer, 2014.
WEGNER, Uwe; VOIGT, Emilio. Apocalipse: manual de estudos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2013.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).