Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Apocalipse 21.1-6
Leituras: Salmo 148 e João 13.31-35
Autor: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 5º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 28/04/2013
1. Introdução
No quinto domingo após a Páscoa, somos “sacudidos” por um impressionante texto de Apocalipse, revelando a glória do poder de Deus. O quanto temos ainda o nosso “coração ardente” pela novidade da Páscoa? Cabe lembrar os discípulos de Emaús (“não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava?” – Lc 24.32) e outro trecho de Apocalipse (“assim, porque és morno e nem és quente nem frio, estou a ponto de vomitar-te da minha boca” – 3.16).
No trecho do Evangelho de João, é retratada a quádrupla glória de Deus, enfatizando que a glória suprema de Deus se manifesta em Cristo por meio da encarnação (amor) e da cruz (obediência). O mandamento do amor que Cristo transmite aos discípulos sinaliza que o amor não é somente sentimento, mas atitude, e é uma dádiva de Deus e não conquista humana, tampouco merecimento. Essas palavras de Cristo foram ditas à luz de sua iminente partida para o Pai. O amor deve permanecer como um sinal entre os seguidores de Cristo, e isso até o fim dos tempos, aconteça o que acontecer.
O Salmo 148 é a convocação de um coro universal de louvor (tudo o que há nos céus e na terra) por toda a criação. A glória de Deus é algo tão maravilhoso, que diante dela só cabe às criaturas o louvor. Deus, como criador, é autônomo e independente, inclusive do tempo e do espaço, que são dimensões criadas por Ele também. Em seu poder e autonomia, Ele escolheu habitar entre nós por intermédio de Cristo, e toda a força de seu poder Ele nos revela por meio do amor.
2. Exegese – perscrutando a glória de Deus revelada
É fundamental que não se perca de vista o contexto histórico do Apocalipse de João: uma mensagem de esperança para uma época de cruéis perseguições aos cristãos, com o objetivo de manter no povo oprimido a perseverança na fé e a resistência aos opressores.
O mar é símbolo do caos primitivo (Gn 1.1-2) e dos poderes que se opõem a Deus. A afirmação do v. 1 – “E o mar já não existe” – possui um pano de fundo mitológico. Na história babilônica das origens, é narrada a luta entre Marduk, o Deus da ordem e da criação, e Tiamat, o dragão do caos. O mar é sempre inimigo de Marduk. Na maior parte das mitologias antigas, o mar é apresentado como lugar das forças do caos e da destruição. Há ainda outra explicação interessante, que identifica o mar com o mar de vidro (4.6; 15.2), que representa a separação entre Deus e suas criaturas.
A restauração de Jerusalém, citada no v. 2, retrata um antigo anseio do povo judeu, que possui um duplo pano de fundo: por um lado, o sentimento nacionalista e, por outro, a influência do modo de pensar grego, baseado na doutrina platônica das formas. Platão sustentava que, num mundo invisível, existiam as formas perfeitas de tudo o que existe na Terra. A partir dessa doutrina, existiria uma Jerusalém celestial, da qual a Jerusalém terrestre não é mais do que uma cópia imperfeita. É nisso que pensa Paulo quando fala da “Jerusalém lá de cima” (Gl 4.26), e é isso o que tem em mente o autor de Hebreus quando fala da Jerusalém celestial (Hb 12.22). Essa concepção de ideias preexistentes ou de formas perfeitas e celestiais pode apresentar-se complicada ao ouvinte moderno. No entanto, devemos reconhecer o impacto dessa concepção: o ideal é real e está nas mãos de Deus, a fonte de todos os ideais.
Afirmar que todas as coisas serão novas aponta para a profundidade da transformação. O resultado, porém, é a redenção e não simplesmente a abolição das coisas antigas. O auge dessa transformação manifesta-se em Jesus Cristo: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2Co 5.17).
Céu é o termo bíblico para designar o lugar da habitação de Deus (Sl 33.13-14; Mt 6.9). Enquanto estamos em nosso corpo atual, as realidades do céu são invisíveis para nós e somente as conhecemos pela fé (2Co 4.18; 5.7).
Assim como a noiva se enfeita para seu marido, Deus vai embelezar a Jerusalém celestial para seus amados. A palavra ataviada tem o sentido de enfeitada exageradamente, com gosto duvidoso. A noiva tem permissão para enfeitar-se conforme deseja e até mesmo para cometer alguns exageros em nome do sonho de casar-se e sentir-se linda para o noivo. A paixão desperta o desejo intenso de agradar e tornar tudo mais belo. Transpondo isso ao versículo 2, deduz-se que Deus cuidará com extremo zelo da beleza da cidade vinda do céu. Diante de todas as coisas maravilhosas que Deus tem criado neste mundo, podemos aguardar com grande expectativa a beleza extraordinária que terá a cidade construída pelo Criador Divino.
Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povo de Deus, e Deus mesmo estará com eles: As Escrituras estão repletas de frases como essas, descrevendo a comunhão divina com a humanidade salva. Deus queria uma relação dessa qualidade no Antigo Testamento (Êx 29.45). Jerusalém, o lugar escolhido por Deus para a edificação do templo, passou a representar a habitação de Deus no meio do povo (2Cr 6.2). Mas o povo rompeu esses laços de comunhão, repetidamente, pelo pecado (Is 59.2). Jesus veio para “fazer o seu tabernáculo” entre as pessoas (Jo 1.14), e a comunhão tornou-se possível pelo sangue dele (Ef 2.11-18).
A palavra tabernáculo (em grego skene) significa originalmente tenda, moradia provisória, “desmontável”. Há duas ideias principais que merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, trata-se do Tabernáculo que os judeus levantavam no deserto enquanto viajavam à Terra Prometida. Esse Tabernáculo era uma tenda, o lugar da presença de Deus no meio de seu povo. Em segundo lugar, há duas palavras que não têm nada a ver uma com a outra quanto à sua origem, mas que soam de maneira semelhante segundo suas respectivas pronúncias. Uma dessas palavras era skene, que remete ao Tabernáculo. A outra era o termo hebraico shequiná, que significa “glória”. Pela semelhança nos sons, afirmar que Deus fará o seu tabernáculo com as pessoas equivalia, portanto, a dizer que a glória de Deus habitará entre os humanos. No tempo vindouro, a glória de Deus não será uma nuvem transitória e misteriosa, mas sim uma presença real e visível.
Deus é o único capaz de fazer novas todas as coisas. Por isso afirma de si mesmo: “Eu sou o Alfa e o Ômega”, “o princípio e o fi m”. Alfa é a primeira letra do alfabeto grego, e ômega, a última. Mas João amplia o signifi cado dessa expressão: Deus é “o princípio e o fi m”. A palavra traduzida por “princípio” é arché e não signifi ca simplesmente primeiro no tempo, algo que ocupa o primeiro lugar em uma série. Significa primeiro no sentido de origem de todas as coisas. Significa que todas as coisas têm sua criação em Deus e por Deus. A palavra traduzida por “fim” é telos e não significa simplesmente fim no tempo, a última das coisas que se enumeram em uma série. Telos significa consumação, aquilo no qual todas as coisas chegam a realizar plenamente seu propósito.
3. Meditação – da glória de Deus ao coração humano
O texto bíblico é rico em explorar contrastes: novo/velho, princípio/fim, promessa/cumprimento, dor/alívio, choro/consolo, morte/vida eterna, tristeza/ alegria. Esses contrastes podem ser analisados na perspectiva daquilo que vemos e daquilo que desejamos ver, daquilo que os olhos do corpo veem e nos entristece e daquilo pelo que os olhos da fé esperam e nos alegra.
A imagem da cidade é algo muito sugestivo, é símbolo de convivência. Na colônia, no interior, as pessoas vivem mais isoladas e “desprotegidas”. No entanto, o quanto nossas cidades proporcionam convivência e proteção? Muitas pessoas migram para as cidades em busca de dias melhores, na esperança de realizar sonhos, e lá esses sonhos, muitas vezes, se tornam pesadelos. Os grandes centros urbanos de hoje oferecem possibilidades para todos realizarem seus sonhos ou somente proporcionam dias melhores para quem puder pagar por eles? O nome Jerusalém significa cidade da paz. Ao olharmos para a Jerusalém de hoje, vemos poucos sinais de paz. A promessa da “nova Jerusalém” é, por um lado, motivo de consolo, pois o caos urbano que desgraça a vida de muita gente vai ser “sarado” por Deus, e, por outro lado, é motivo de entusiasmado engajamento, pois a promessa de Deus é digna de confiança, e Ele mesmo nos capacitará no esforço por humanizar nossos centros urbanos. Vale destacar que a vida urbana por si só já é cheia de contrastes, que poderão enriquecer a atualização da prédica.
A alegria da convivência plena com Deus tem destaque no texto bíblico. Por meio de Cristo todos têm o privilégio de viver na presença de Deus. Estar com Deus não é mais uma busca inatingível do ser humano, mas uma dádiva para aqueles que creem nas promessas divinas concretizadas em Cristo. A glória de Deus encarna-se na história da humanidade e leva-a a um fim bem-aventurado para quem permanece na fé, na esperança e no amor. Assim como Deus é comunhão (Trindade), a salvação também apresenta aspectos de comunhão. É preciso resgatar a dimensão coletiva da salvação cristã, que contrasta com as propostas individualistas de salvação na atualidade. A comunhão de fé é um teste e um encaminhamento para a eternidade: testa, porque quem não ama o seu próximo a quem vê não conseguirá amar a Deus que não vê (1Jo 4.20); encaminha, porque o bem que se faz a qualquer um dos “pequeninos” é como um serviço ao próprio Cristo (Mt 25.40). A salvação apresentada pelo Apocalipse ajuda a vislumbrar que o ser humano não é salvo para fora da história como protagonista ou vitorioso solitário no pódio, mas é salvo para dentro da história criada, mantida e restaurada por Deus como coadjuvante ao lado de tantos outros coadjuvantes, que, entre si, não são menos ou mais importantes, mas todos igualmente participantes.
Afinal, coadjuvante também ganha Oscar, e a coroa da vida eterna é para aqueles que investiram na comunhão com Cristo e com o próximo.
É importante explorar a dimensão poimênica de Apocalipse. “Deus enxugará dos olhos toda lágrima” significa que ninguém terá mais uma lembrança triste de seu passado. Nenhuma culpa acusará ninguém. A citação “o mar não existe mais” pode ser enriquecida com a expressão “mar de lágrimas”, que Deus faz ser coisa do passado. Deus é próximo e é consolador. Por meio de seu poder Deus age na história da humanidade e por intermédio de seu amor Ele quer fazer morada entre os humanos. Deus não é um ser distante e inatingível, mas quer ser alguém tão próximo, a ponto de não apenas conhecer nossas dores como também enxugar nossas lágrimas. Deus é capaz de enxugar lágrimas, pois em Cristo experimentou toda sorte de sofrimento e também chorou (Lc 19.41; Jo 11.35).
4. Imagens para a prédica – manter o coração ardendo
Apocalipse é um registro do que foi revelado em visões ao autor. Nem sempre é fácil registrar o que se vê. Como descrever adequadamente um pôr do sol glorioso ou a majestade das montanhas? Os diferentes verbos gregos significando “ver”, “observar” e “perceber” aparecem 140 vezes nesse livro. Diante da importância do “ver” em todo o Apocalipse, não se pode deixar de usar algum meio visual para transmitir a mensagem bíblica. Se a pregação for num domingo, que tal levar um jornal de domingo (“novidades fresquinhas”), ou se for num sábado à noite, levar o jornal de domingo (“notícias do amanhã”)? Comece questionando: O que é novidade para você? Novidade tornou-se, hoje em dia, exigência do mercado: é preciso até “criar” novidades para vender mais. Enfatize a novidade cristã e seu diferencial: Deus vai recriar tudo o que existe. E isso já começou desde a Páscoa, quando Cristo foi ressuscitado dentre os mortos.
Outro recurso visual pode ser o bordado (de um quadro ou tapete). Conforme relata o P. Jucksch: “Quando estivermos com Deus, também compreenderemos todos os nossos caminhos aqui na terra. Compreenderemos porque a nossa vida teve que ser assim. No avesso de um bordado avistamos fios emaranhados e cortados, mas, olhando por cima, veem-se o lindo desenho, os pensamentos da bordadeira. Assim será também conosco. Em nossa vida terrena, tantas coisas são incompreensíveis, mas depois saberemos que tudo tinha relação com o maravilhoso plano de Deus” (p. 194).
5. Subsídios litúrgicos – a glória divina no cotidiano humano
Sugiro fazer uma celebração que contemple a dimensão visual. Se possível, usar recursos de projeção (data-show ou retroprojetor). Hinos e leituras bíblicas devem estar disponíveis para que todos acompanhem a leitura. Preparar com a equipe litúrgica alguns voluntários para permanecer no altar com os olhos vendados, que deverão ser desvendados no momento do Anúncio da Graça. As leituras bíblicas serão feitas por esses voluntários. No abraço da paz, na Ceia, enfatizar que, ao dizer “A paz de Cristo seja contigo”, as pessoas olhem-se nos olhos.
Confissão de pecados: Inspirando-se na palavra do v. 5, que pede a João para escrever as palavras de Deus, a confissão de pecados pode ser realizada de forma escrita. Para escrever a confissão, devem-se providenciar pequenos bilhetes, que deverão ser incinerados logo após o culto.
Anúncio da graça: Diante da culpa do pecado que pesa em nós e nos condena está escrito: “Das coisas antigas, nada sobrou. Tudo se foi” (Ap 21.1). E Deus mesmo nos proclama: “Sim, faço novas todas as coisas” (Ap 21.5) e “Enxugarei dos olhos toda lágrima” (Ap 21.4). Deus ouve a confissão sincera e concede o perdão que liberta. Andemos, pois, em novidade de vida pelo que Deus fez por nós em Cristo Jesus. Amém.
Devido à ênfase do trecho bíblico na glória de Deus, não deveriam faltar na liturgia o Gloria in excelsis (como introdução: Sl 148) e o Kyrie.
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 415-431.
JUCKSCH, Alcides. Em breve deve acontecer. Gramado: Editora Conhecer a Bíblia, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).