Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Apocalipse 21.1-6a
Leituras: Eclesiastes 3.1-13 e Mateus 25.31-46
Autor: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: Véspera de Ano Novo
Data da Pregação: 31/12/2013
1.Introdução
Véspera de novo ano. Período de refletir sobre o tempo, nosso tempo. Tempo passado e tempo futuro. Se, de um lado, o texto de Eclesiastes leva-nos a refletir sobre o tempo e nossa ação nesse tempo (“tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu” – Ec 3.1), o texto de Mateus lembra-nos que o juízo divino nos confronta a partir de nossa ação realizada em favor dos pequeninos. Como vivemos nosso tempo? Como nos relacionamos com os pequeninos?
O texto de Apocalipse, nosso objeto de estudo, acrescenta a tudo isso o contexto de violência. Viver o tempo, planejar as ações, visitar o encarcerado, vestir o nu, alimentar o faminto, dar de beber a quem tem sede, visitar o enfermo, tudo isso em um contexto de violência. Essa é a esperança cristã, e esse é o desafio de nossa abordagem.
2. Exegese
Nossa perícope é o grande desfecho de uma jornada de dor e esperança. Para percebermos a importância de nossa perícope, precisamos entender a dinâmica do livro de Apocalipse.
2.1 – A perícope e o livro: os justos em um contexto de violência
Nesse texto marcadamente litúrgico (que aponta para o culto como o lugar onde esse escrito era usado), a mesma história é contada quatro vezes. O esquema de sete cartas, sete trombetas e sete taças marca as divisões de cada vez em que a história é contada. Ao repetir a história, há um aprofundamento da crítica e um convite à fidelidade. Essa é a grande característica do livro. Herdeiro da tradição profética e da sabedoria, ele costura essas duas posturas diante das angústias que a comunidade enfrenta. A denúncia chama a comunidade à fidelidade.
a) Apocalipse 6
No primeiro ciclo dessa história, que aponta o motivo do juízo de Deus, o capítulo 6 apresenta um projeto de vitória da violência – apresentada na figura dos quatro cavaleiros do Apocalipse –, projeto esse que deseja vencer, mas ainda não é vitorioso. Essa é a denúncia. A esperança surge na resistência daqueles que morrem pela fé e são os verdadeiros vitoriosos e por isso recebem “estolas” brancas.
b) Apocalipse 9
No segundo ciclo dessa história, o capítulo 9 denuncia que a violência militar, simbolizada pelos gafanhotos, é instrumento dessa violência. A esperança, porém, é que somente os que não têm o selo de Deus na fronte são verdadeiramente atingidos, pois eles não têm o privilégio de morrer em esperança nem o compromisso: a morte foge deles, e o sofrimento continua. Para os fiéis, a morte é prêmio. Morte por compromisso.
c) Apocalipse 12-13
No terceiro ciclo, os capítulos 12 e 13 fazem com que o conflito ganhe em amplitude. O conflito na terra é a vingança do dragão que foi derrotado no combate celestial. O capítulo 12 anuncia que Deus já ganhou a luta contra o dragão. O que sobrou para a terra é o desejo de vingança de um derrotado. No capítulo 13, ele faz isso a partir de uma besta. A alusão à aparência da besta como leão, urso e pantera remete-nos aos textos apocalípticos e ao livro de Provérbios, onde essas figuras representam um poder ímpio, um rei ímpio. A violência promovida pelo exército é comandada por um rei ímpio. A esperança do povo é que esse poder imenso, demoníaco, seja de saída o poder de um derrotado. Deus já venceu!
d) Apocalipse 17-18
No quarto círculo, a crítica chega a seu ápice. No capítulo 17, é apresentado que a besta tem sobre si o poder da “Grande Prostituta”, que representa uma cidade que vive do luxo, seduz reis, príncipes e comerciantes. Uma cidade que se embriaga e embriaga seus seduzidos com o sangue dos santos. Esse capítulo aponta o cerne do poder devastador que se localiza sobre os cristãos e cristãs da comunidade do Apocalipse de João. O comércio é o grande mal que seduz e mata. O luxo desenfreado da cidade promove a violência para alimentá-la dos produtos pelos quais ela anseia. O desafio e a esperança estão no capítulo 18. A comunidade é desafiada a sair dessa estrutura, a fugir dessa sedução, pois o julgamento sobre a cidade é violento. No capítulo 18, introduzido pela expressão “ai da cidade”, que é a introdução de um canto de lamentação fúnebre, temos o lamento fúnebre pela morte da cidade. Porém, no final do lamento, a cidade morta não é enterrada. É atirada ao mar, lugar do caos e dos demônios. A cidade e todos os que se associam a seu esquema de luxo, comércio, poder violento, exército e desejo de vitória serão julgados com a mesma radicalidade.
Esse é o contexto que cerca nossa perícope, grande fim do apocalipse e que apresenta a recompensa para aqueles e aquelas que permanecerem fiéis.
2.2 – A recompensa dos justos: os justos em um contexto de fidelidade
Os capítulos 21 e 22 apresentam a utopia que move os justos. Nossa perícope é parte de um conjunto de duas perícopes que costuram duas teologias importantes do mundo bíblico. A nova Jerusalém é apresentada na perspectiva da teologia mosaica, que é nossa perícope, e na perspectiva da teologia davídica. Norte e Sul abraçam-se em esperança. O Apocalipse, ao anunciar a esperança e a utopia do povo de Deus, promove, simbolicamente, a superação das divisões históricas de Judá e Israel.
Nossa perícope é, portanto, marcada pelos símbolos de esperança da fé do Norte – a tradição mosaica. O Êxodo é o grande celeiro de imagens que permeiam nossa perícope.
a) A estrutura da perícope
Nossa perícope poderia ter vida independente do livro do Apocalipse. Como um livro que reúne retalhos da fé de sua comunidade, essa tradição pode ter existido anteriormente como parte do anúncio de esperança dessa comunidade. Desse modo, podemos considerar o versículo 2 e os versículos 6b-8 como redacionais para unir as duas expectativas. São parte do arremate literário para conjugar as duas expectativas diferentes. O anúncio de esperança é marcado por símbolos que falavam ternamente aos ouvintes daquela comunidade. O grande tema é a renovação, que aparece no versículo 1 – novo céu e nova terra – e no versículo 5 – “eis que faço novas todas as coisas”. Dentro dessa moldura do novo surgem imagens de esperança. Nosso desafio agora é compreender essas imagens.
b) As imagens de esperança
Novo céu e nova terra. No pensamento judaico antigo, os opostos, quando colocados juntos, indicavam a totalidade. Se terra e céu são renovados, isso implica a renovação de todo o cosmo na concepção da época. O anúncio, portanto, é da fé e esperança na renovação de tudo o que existe. Porém há um acréscimo: “e o mar não existe mais”. O mar, como símbolo do caos, habitação dos demônios, ao inexistir, aponta para um céu e terra renovados em que com a inexistência do mal se constitui, torna-se lugar de vida, de paz e saúde. Essa esperança aparece no centro da perícope: “enxugará toda lágrima…” Trabalharemos nela mais abaixo.
A tenda de Deus com os seres humanos. Considerando o versículo 2 uma costura realizada entre a perícope que segue (21.9-22.5) e a nossa perícope, a “Nova Jerusalém” surge como uma tenda em que Deus e os seres humanos coabitam. Voltamos ao Êxodo, mas voltamos também ao Éden. A esperança do cosmo renovado possibilita a coexistência de Deus e os seres humanos em um mesmo espaço, uma mesma tenda, um mesmo acampamento. A habitação de Deus em meio à existência humana supera todo sofrimento.
Enxugará toda lágrima. Aqui está o cerne da esperança. A presença de Deus é curativa e renovadora da vida. Sem choro, sem luto (sem morte), sem pranto (sem a dor da perda). As primeiras coisas passaram, agora é o tempo das últimas, e elas são melhores. A vida triunfa em plenitude para aqueles que não perdem a esperança. O cosmo renovado é a concretização da vida que supera toda adversidade. Nesse novo tempo, a figura de Deus aparece marcada pela ternura materna: Ele enxuga toda lágrima. Há a superação da morte e da dor da perda, mas há também a companhia terna e materna de um Deus que enxuga carinhosamente as lágrimas.
A esperança anunciada nessa perícope quebra barreiras e afirma a fé em um novo que vem embalado em ternura, cuidado, renovação e vida. É a esperança que não se funda no grito da vingança e da vitória, mas se firma na afirmação de fé em um Deus que maternalmente enxuga as lágrimas de seus filhos e filhas.
3. Meditação
Ano novo é tempo de avaliação. Sonhamos com o novo e desejamos a superação daquilo que provocou tristeza e dor. Planejamos a novidade e assumimos projetos. Nesse período tão rico de autoavaliação, somos levados a refletir nesse texto tão importante do Apocalipse.
Vivemos em um mundo onde os sinais de vitória da violência e da desesperança aparecem com tal vitalidade, que nos dão a impressão de que não há outro caminho, de que não há outra solução a não ser o triunfo da adversidade desse projeto. Como enfrentar este mundo? Como enfrentar o caos?
O livro do Apocalipse é uma celebração da esperança. Uma celebração que não ignora a violência, muito pelo contrário, encara e dá nome à situação de violência que se abate sobre a comunidade. Aponta que o sistema é demoníaco, ou seja, não há aliança possível nem esperança que resista à força, ao exército, ao rei ou ao comércio e à cidade que formam o conjunto das forças da morte. Todos eles estão embebidos na força demoníaca. Não há aliança possível.
No livro de Apocalipse, ao apontar toda a estrutura como demoníaca, o livro obriga a uma tomada de postura dos fiéis da comunidade. Não dá para, como Laodiceia, fazer parte da comunidade e da estrutura. Não é possível ser morno. Deve-se assumir o compromisso com um dos lados desse conflito, pagar o preço e receber a recompensa.
Ao mesmo tempo em que o livro chama para o compromisso e nomeia a violência, ele a deslegitima. Ela, a violência, aparenta ser vitoriosa, mas ainda está buscando vencer. O que ela anuncia e aparenta é falso. O dragão, origem de todo o mal, é um derrotado. Seu poder é a vingança a partir da ilusão. Por isso aqueles que apostarem suas vidas nesse projeto apostam em um projeto derrotado.
Por outro lado, aqueles que mantêm a fidelidade ao projeto do Reino, mesmo sucumbindo à violência, já são vitoriosos. A morte pela fidelidade é vitória. Essa certeza e esperança surgem na perspectiva da fé em um Deus que faz tudo novo. A esperança do novo é a esperança na renovação que vem de Deus. O novo céu e a nova terra apresentam como marca a ausência do mar, a vitória sobre o caos. O fim da habitação do que produz medo, provoca a violência,
desestabiliza a existência.
Em meio a essa esperança, a comunhão entre Deus e os seres humanos traz plenitude: sem a morte e sem a perda – sem o luto e sem o pranto. Devemos perceber que, nessa nossa perícope (em especial sem a parte redacional), a esperança não está baseada na vingança, na vitória sobre o inimigo. A esperança está baseada na transformação da existência, do cotidiano de cada participante da comunidade.
Por isso o texto tem no centro a imagem terna e materna de um Deus que enxuga as lágrimas de seus filhos e filhas. Ato de proximidade, de afetividade, de cuidado e de carinho.
A esperança firma-se em um Deus que renova o cosmo a partir do cuidado terno e materno. Em meio aos sinais de violência, a comunidade do Apocalipse anuncia a esperança que se funda na ternura de Deus. Em um momento em que sonhamos o novo, a partir de um novo ano que se
anuncia, vivendo em um mundo marcado por sinais de violência, somos desafiados pelo apocalipse a forjar a esperança que nasce da ternura.
4. Imagens para a prédica
Como vivemos um período de retrospectiva, quando jornais e programas de TV buscam fazer um balanço do ano, sugerimos que ou no início da prédica ou durante a liturgia do culto haja uma retrospectiva, destacando os sinais de violência que marcaram o país, a cidade e a comunidade de fé.
Sugerimos elencar as notícias que apontam a violência gratuita, a corrupção e o consumo desenfreado, lamentavelmente abundantes em nossos noticiários. Ao mesmo tempo, é importante apontar também notícias que apresentam sinais e gestos que, com a marca da ternura, constituíram uma forma de superação da violência.
No final da prédica, é importante a comunidade ser desafiada a construir projetos pessoais e comunitários que anunciem a esperança da mudança a partir de atos e gestos que tenham a marca da ternura, do cuidado, da presença amorosa na vida do outro, da outra.
5. Subsídios litúrgicos
Como subsídio litúrgico, sugerimos que seja cantada ou lida a música de Frederico Pagura: Esperança. Essa música/poesia complementa o desafio dos projetos marcados por gestos de ternura.
Temos esperança!
Frederico Pagura
Porque ele entrou no mundo e em nossa história;
porque quebrou o silêncio e a agonia;
porque mostrou na terra a sua glória;
porque foi luz em nossa noite fria;
porque nasceu em pobre estrebaria;
porque viveu semeando amor e vida;
porque partiu os corações mais duros
e levantou os tristes e abatidos.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir dos povos oprimidos.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir.
Porque atacou corruptos, mercadores
E denunciou maldade e hipocrisia;
Porque exaltou crianças e mulheres
E condenou os que de orgulho ardiam;
Porque levou a cruz de nossas penas
E saboreou o fel de nossos males;
Porque aceitou sofrer a nossa culpa
E assim morrer por todos os humanos.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir dos povos oprimidos.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir.
Porque uma aurora viu sua vitória
Sobre as mentiras, sobre a morte e o medo;
já nada pode interromper sua história
Nem a chegada de seu Reino eterno.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir dos povos oprimidos.
Por isso é que hoje temos esperança,
por isso é que lutamos destemidos,
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir.
Bibliografia
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. Apocalipse de João: esperança, coragem e alegria. São Leopoldo: Centro de Estudos Bíblicos; São Paulo: Paulus, 2002.
PRIGENT, Pierre. O Apocalipse. São Paulo: Loyola. 1993.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).