Aspectos da Relação IECLB e Estado, em uma Compreensão Histórica e Teológica(*)
Augusto E. Kunert
O tema fala em aspectos. Isto significa que o meu trabalho não tem a pretensão de tratar o tema de maneira exaustiva, antes, isto sim, de focar situações no passado e no presente e, a partir de uma reflexão, apontar possibilidades para uma caminhada da IECLB.
I. ASPECTOS HISTÓRICOS E SEUS EFEITOS
A história da IECLB acusa situações e conceitos determinados pelo Estado, que foram decisivos para o comportamento dos evangélicos em terras brasileiras. A discriminação religiosa, tendo a Igreja Católica como a de ¨Rito Oficial” , com a consequente limitação de direitos civis para os evangélicos, é fator importante que provocou na IECLB o distanciamento da vida pública, levando-a a enclausurar-se numa vivência em gueto. Essa realidade, a de enclausuramento e de preocupação concentrada sobre assuntos inter muros”, teve sua consequência teológica, quanto à compreensão de serviço no mundo, quanto à participação no processo de formação do povo brasileiro e quanto à presença da IECLB na vida social e política do Brasil. Reconheço que ocorreram situações que fogem à regra, como, por exemplo: a formação de Kolonievereine (ligas coloniais) em defesa aos ataques sofridos pela colônia (na área de Feliz, Forromeco) no período das revoluções de 1890 a 1893, a participação do P. Klingelhoefer na Guerra dos Farrapos.
P. Friedrich Christian Klingelhoefer veio ao Brasil em 1824. Ele ¨exerceu o curato de almas até, pelo menos, 1836” em Campo Bom (1). Ele aderiu aos Farrapos. E ¨morreu em combate com as tropas imperiais em Freguesia Nova, perto de Triunfo, em 6 de novembro de 1838…”(2). Frustrado no recebimento da sesmaria nas margens do Rio Jaguarão, prometida pelo Governo Imperial, conforme atestam cartas do Visconde de Caravellas, de 10.02.1826, ao Monsenhor Miranda e deste, em 14.02.1826 (3), a José Feliciano F. Pinheiro, e ainda desiludido com a negação do ordenado de pastor, a molde do que acontecia com o P. João Georg Ehlers, mesmo que 254 colonos assinassem e encaminhassem uma ¨petição dirigida a D. Pedro I” e, adicionando-se a essa experiência negativa a suposição da promessa dos Farrapos de dar aos evangélicos igualdade de direitos em lei, devem ter levado o P. Klingelhoefer a integrar-se nas forças combatentes dos Farrapos. E ainda a presença de membros da IECLB na ativa do Exército Nacional (João Niederauer), no período da Guerra do Paraguai, mas de uma maneira gerai os membros da IECLB estiveram ausentes da vida social, política e pública do país.
É decisivo, a fim de evitarmos frustrações, recalques e rupturas, que assumamos conscientemente a nossa realidade histórica e com ela admitamos falhas e erros, reconhecendo inclusive culpa por omissão na incumbência de ser voz profética, de ser consciência da sociedade e do próprio governo. No reconhecimento e no assumir da culpa, está a possibilidade evangélica de superação de falhas do passado com uma participação responsável na “causa pública” no presente.
A vida política, social e econômica do povo brasileiro esteve, já no século passado, interligada e dependente de interesses e consequentes ações de nações estrangeiras.
Vamos encontrar, exatamente na imigração – e a IECLB está ligada de maneira inseparável com a imigração – muitos fatores que determinaram situações para a economia, a política nacional e para a vida social do povo, especialmente no sul do Brasil. A colonização no sul do Brasil partiu de determinação oficial, quando Dom João VI, refugiando-se com a família real no Brasil, baixou, em 25.11.1808, um decreto que regulamentava a ‘‘doação de terras a imigrantes – não portugueses, que se dedicassem à agricultura ou e aldeamento” (4). Com isso Dom João VI cedia à pressão do Governo da Inglaterra. Essa perdera, diante do avanço e do poder da França na era napoleônica, a hegemonia comercial no mercado europeu e precisava de um novo mercado consumidor. A Inglaterra, em troca de proteção a Portugal contra ataques constantes da França, exigiu a abertura dos portos brasileiros com o monopólio comercial para os ingleses.
Os interesses econômicos dos ingleses contribuíram para uma mudança social no Brasil. O sistema escravista não permitia ao povo em gerai maior poder aquisitivo. Esse ficava limitado à classe dominante e proprietária da terra, numericamente de pouca expressão. A Inglaterra, buscando a expansão de mercado, pressionou o Governo Brasileiro para abolir o sistema de produção baseado na mão-de-obra escrava Daí aconteceu que Dom Pedro I, informando o Congresso Nacional da fundação da Colônia de São Leopoldo, disse que “buscaria agricultores livres, brancos, mas não portugueses, visto que a escravatura degradara o trabalho manual aos olhos dos luso-brasileiros” (5).
Isso nos mostra que a vinda de nossos antepassados ao Brasil, esteve ligada ao lado de fatores nacionais – que a seguir enumerarei – a interesses econômicos estrangeiros.
II. MOTIVOS NACIONAIS
1) O Brasil, em sua estrutura fundiária, carrega ainda hoje a carga da herança do feudalismo medieval. No Nordeste e no Brasil Central, de maneira acentuada, a distribuição de capitanias hereditárias e a de sesmarias fez com que o latifúndio se expandisse, levando o “senhor do engenho” à posição dominadora. Em São Paulo e parcialmente no Espírito Santo o fazendeiro do café assumira o domínio, enquanto que no extremo Sul o fazendeiro pecuarista marcou presença como dono da terra, senhor da sociedade e chefe plenipotenciário da economia.
O capital se encontrava na classe latifundiária tanto no Nordeste como no Brasil Central e no extremo Sul. As classes dominantes pressionaram o Governo Brasileiro para acelerar a imigração, quando reconheceram que o regime de trabalho escravo se tornara antieconômico, antiquado e oneroso na fase do capitalismo vivido no Brasil e que, com a iminência da abolição do tráfico negreiro, a mão-de-obra viria tornar-se muito cara. Pensadamente ou ocasionalmente, interesses econômicos das uma buscava mão-de-obra mais em conta, a outra, com expansão de seu mercado, procurava quem comprasse suas mercadorias. Assim os senhores de engenho, do café e da pecuária pretenderam substituir a mão-de-obra escrava pela do homem livre. Obviamente, tentaram, desde logo, fazer dos imigrantes seus assalariados.
2) O litígio entre o Brasil e a Argentina, provocando conflitos entre os dois países na busca de limites geográficos, fez com que o Governo Brasileiro sentisse a necessidade de povoar e de ocupar áreas até então despovoadas e distantes. Havia, portanto, a necessidade de assegurar as fronteiras entre o Brasil e a Argentina na altura de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Assim, a Segurança Nacional, mesmo que de maneira mais branda se fazia presente já há 150 anos.
3) A partir de 1820, quando o governo começou a pensar concretamente na vinda de agricultores, os latifundiários, baseando sua economia na monocultura, ficaram liberados da produção de gêneros de subsistência (6).
4) A partir da liberação dos latifundiários da produção de alimentos – não por último requeridos pela comercialização inglesa – o governo perseguiu a introdução da agricultura em área de predomínio da pecuária.
III. CONSEQÜÊNCIAS PARA A ESTRUTURA SOCIAL E FUNDIÁRIA
1) O pequeno proprietário é o novo componente numa sociedade de senhores e escravos.
2) O agricultor, como proprietário e como homem livre, tem sua grande influência no mercado de trabalho caracterizado pela mão-de-obra servil dos escravos.
3) Acontece a substituição da mão-de-obra escrava pela mão-de-obra do homem não escravo, do assim chamado homem livre.
4) O imigrante foi importante para ocupar espaços vazios e para servir de garantia para as fronteiras com alguns países vizinhos.
5) Analisando estes fatores, ocorreu nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, a partir da imigração, a primeira reforma agrária e uma mudança na estrutura social.
Situações econômicas e políticas, interesses e necessidades nacionais e estrangeiras foram fatores determinantes para a vinda de nossos irmãos ao Brasil. Eles vieram, primeiramente, a regiões circunscritas, onde fundaram comunidades e hoje, diante da presença de muitos dos fatores de ontem, se lançam pelo território nacional afora na busca de novas terras para sua sobrevivência, quando o pequeno agricultor, na atual conjuntura econômica e fundiária, está seriamente prejudicado.
IV. O ESTADO DETERMINA POR ANTECIPAÇÃO A SITUAÇÃO DOS EVANGÉLICOS
A partir do século 17, quando ocorreu a invasão holandesa o assim chamado protestante foi identificado no Brasil como invasor, como inimigo do Estado e do povo brasileiro, como adversário da fé católica. A Constituição durante o período imperial dava margem à compreensão de que o bom brasileiro é católico, que o bom católico é brasileiro. Estado e Igreja estavam aliados. Trabalhavam de comum acordo. Mesmo que a Constituição já em 1824 garantisse a liberdade de culto, havia sérias limitações. A fé evangélica não podia ser testemunhada publicamente. O culto não podia ocorrer em público, devendo acontecer de maneira reservada, afim de evitar qualquer “estorvo para terceiros”. Os locais de culto não podiam identificar-se como tais para quem por elas passasse.
Elucidativo nesse particular é um documento da Comunidade Evangélica de Porto Alegre, fundada a 24 de fevereiro de 1856, quando sua primeira Diretoria encaminhou ofício ao “Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul” com os dizeres: “vem os abaixo assignados, como representantes e órgãos da referida Comunidade, ante V. Excia., solicitando em nome delia, a Alta Aprovação e Licença de V. Excia. para que ella possa continuar a celebrar as cerimônias do seu Rito na forma expressada…” .
No documento encontramos dois despachos do Barão de Muritiba de 1° de março de 1856, que muito bem apontam a situação Estado/Igreja Evangélica da época.
1º. A licença é concedida para que “possão celebrar offícios do culto evangélico em casa, que lhes sirva de Templo, sem que tenha disso apparência exterior, nem tão pouco se exerção esses atos publicamente… ’.
2º. Em um segundo despacho é concedida licença ao Pastor Erdmann Wolfram de ¨exercitar n’esta Capital as funções do mencionado Rito”, ficando, porém, “prohibido aos Pastores fazerem casamentos de Catholicos com protestantes, pois que só devem ser feitos por Sacerdote Catholico, autorizado para isso…” .
A implicância da autoridade despachante do Palácio da Presidência, no caso o Barão de Muritiba, vai a tal ponto que a discriminação dos evangélicos se espelha até na ortografia, sendo escrito com letra maiúscula “Catholicos” e com letra minúscula protestantes”.
Sintomático para a relação Estado/Igreja Evangélica é o acontecimento d e Santa Maria, quando, e isso já em 1887, o Chefe de Polícia do Estado mandou fechar a igreja da Comunidade Evangélica por ela ostentar uma torre e ter um sino, o que contrariava o artigo 5 da Constituição.
Pelo que consigo apurar, o acontecimento de Santa Maria envolveu, de maneira global, a Direção e as Comunidades em abaixo-assinados e representações perante o Governo, recebendo ampla cobertura da imprensa A medida do Chefe de Polícia foi revogada, mas o artigo 5 permaneceu em vigor até o evento da República Jean Roche (7) constata: ¨Quando os Sínodos se constituíram, havia uma longa tradição de vida comunitária, graças à qual o protestantismo resistira às mais graves dificuldades e obtivera as primeiras concessões do Governo Brasileiro. Mesmo com sua profunda devoção, custou muito aos colonos se adaptarem ao meio brasileiro, onde os protestantes se tornaram minoria e o catolicismo constituía a religião do Estado. Os protestantes não gozaram de liberdade de culto, aliás relativa, senão tolerância administrativa, precária e variável, consoante o tempo e o lugar”.
Havia enorme dificuldade jurídica para os evangélicos. Os imigrantes evangélicos, mesmo que houvesse a promessa do Governo, conseguirem naturalizar-se somente em número reduzido. Os evangélicos sofreram prejuízo’ em seus direitos civis. Seus matrimônios não tinham validade perante a lei civil e seus filhos eram considerados como filhos naturais. A exigência de juramento ao assumir uma função pública comprometendo-se o candidato a zelar peio rito católico como culto oficial, afastou, desde logo, os evangélicos da vida política e pública Assim a família evangélica em sua estrutura, e a pessoa evangélica em seus direitos civis, sofreram séria limitação e marginalização. Essas circunstâncias prejudicaram e dificultaram o relacionamento Igreja Evangélica e Estado.
É minha convicção, que o tratamento discriminatório, que os evangélicos sofreram por parte do Estado, contribuiu decisivamente para a segregação social e para a aversão da grande maioria dos evangélicos a questões políticas. Aversão essa que perdura nas Comunidades da IECLB também em nossos dias.
Os quase 60 anos iniciais da presença de Comunidades evangélicas em terras brasileiras foram de luta e de sofrimento. Foram, também, testemunho da fé, de firmeza e de decisão evangélica, quando, sob todas as adversidades por parte de autoridades, sofrendo pressões, sendo os evangélicos diminuídos a cidadãos de 2* categoria, limitados e prejudicados em seus direitos civis, permaneceram fiéis ao legado da Reforma. A experiência com a discriminação marcou nossos antepassados durante gerações e foi, no meu entender, a forte causa do enclausuramento das Comunidades Evangélicas e seu consequente afastamento da vida pública brasileira.
Somente em 11 de setembro de 1861, parcialmente, e posteriormente em 17 de abril de 1863 o casamento não católico recebeu regulamentação jurídica e com isso efeito civil. Finalmente acabara uma situação vergonhosa e discriminadora para o cidadão brasileiro evangélico, que sofria as consequências da realidade vivida, quando ainda em 1856 o despacho do Palácio da Presidência da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul determinava “é, porém, prohibido aos Pastores fazerem casamentos de Catholicos com protestantes, pois que só podem ser feitos por sacerdote Catholico, autorizado para isso…’’.
Afirma Jean Roche neste contexto, que “a firmeza da doutrina e da atitude do Sínodo Riograndense (fundado em 1886) na questão de Santa Maria, em 1887, constitui um esteio para os colonos evangélicos cansados de lutar sozinhos por seu estatuto, pois, até então, não tinham recebido senão o apoio de um político brasileiro particularmente liberal, o Conselheiro Silveira Martins” (8). O Conselheiro Silveira Martins defendera, em 7.12.1866 os evangélicos contra a intolerância católica. Isso fez com que Silveira Martins tivesse grande aceitação nas Comunidades evangélicas.
Situações delicadas ocorreram para as Comunidades da IECLB durante a I Guerra Mundial e mais tarde, com o evento do Estado Novo, quando ocorreram, a partir de 1938, na área da educação, situações apreensivas entre o Estado e muitas Comunidades Evangélicas com a reforma de ensino, que vetava a língua estrangeira como matéria nas escolas de 1º. grau. Somente então, quase 100 anos depois, a necessidade da aprendizagem da língua portuguesa nas escolas comunitárias e encaminhada em ofício de solicitação ao Palácio do Governo pelo Dr. Hillebrand, chamando a atenção que somente depois que os alunos soubessem “ler, escrever e contar até as 4 operações na língua nacional”, fosse permitida a aprendizagem da língua alemã, veio a ser reconhecido como necessidade de integração. Naquela época o Governo respondeu com a Lei n9 579, permitindo claramente o ensino em língua alemã (9).
A atitude do Governo de então, no meu entendimento, foi de curta visão e provocou um retardamento de 100 anos no processo de integração do elemento evangélico na realidade social, política e cultural do Brasil. Mesmo que houvesse interesse político por parte do Governo ou a disposição de atender garantias anteriormente dadas aos imigrantes, e a medida recebesse aplauso nos círculos evangélicos da época é fato consumado que a Lei 579 foi de consequências prejudiciais ao longo da história, contribuindo decisivamente para a automarginalização do evangélico do processo de formação do povo brasileiro.
O fechamento de centenas de escolas comunitárias evangélicas nos anos de 1939 a 1942 não serviu para melhorar o relacionamento entre a Igreja Evangélica e o Governo Brasileiro. As ocorrências em consequência da declaração de guerra do Brasil à Alemanha em 1942, com ataques aos evangélicos pela imprensa, que jogava a opinião pública contra os evangélicos, os quais sofriam acusações diretas por parte de autoridades, contribuíram para dificultar o relacionamento. Esses acontecimentos, sejam quais forem os motivos para tanto, que houvesse culpa por parte de alguns grupos evangélicos e até alguns pastores com posicionamento político desrecomendável, seguramente, dada a globalidade da acusação e incriminação por parte de determinadas autoridades, reacenderam ressentimentos e provocaram retraimento de muitos membros, comunidades e da própria direção da Igreja. Essa situação serviu antes para “provocar um choque moral nos indivíduos do que a facilitar sua integração na comunidade nacional” . (10)
V. CONCEITOS TEOLÓGICOS REFERENTES À RELAÇÃO IGREJA E ESTADO
Predominou na IECLB, a partir das decepções e do sofrimento no passado, o conceito, que a religião é assunto pessoal e de ordem particular, que assuntos da vida política e social estão fora da esfera da Igreja; que a salvação das almas para a vida eterna é assunto da Igreja; que problemas sofridos pela sociedade e atinentes à política, à economia e à situação social são assuntos reservados ao Estado, ao Governo.
Romanos 13 foi compreendido ¨ipsis litteris”, esquecendo-se muitas vezes, especialmente em situações conflitantes, que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens” . (Atos 5.29).
Alguns conceitos teológicos:
1) No seu posicionamento na questão, hoje dizemos relacionamento Estado/Igreja, Jesus, abordado no assunto, respondeu, conforme Mc 12.17, “dai a César o que é de César, e a Deus o que ó de Deus”. Com seu posicionamento Jesus confirma o direito do Estado, pelo menos um direito vigente nesta atualidade e contextualidade.
Isso corresponde à atitude do apóstolo Paulo, quando em Romanos 13 admite e reconhece a autoridade do Governo, autoridade essa dada ao Estado pela vontade de Deus e, ao mesmo tempo, por ela limitada O Estado tem a finalidade de servir à conservação do mundo e da vida. Suas funções estão limitadas a este mundo. Os cristãos devem-lhe obediência. Em um ponto, porém, e é de importância decisiva vê-lo claramente, a obediência é questionável, é rompida, não é admissível. No momento do “status confessionis”, no momento em que me for exigido negar a verdade evangélica, no momento em que me for exigida uma atitude contra o Senhorio de Cristo, a obediência ao Estado não é possível, pois “antes importa obedecer a Deus do que aos homens”. (Atos 5.29).
2) O artigo XVI da CA reconhece que as “coisas civis” e as ordenações civis” são legítimas e boas obras de Deus. Elas são legítimas e boas segundo a vontade de Deus. Também a CA coloca com clareza que o Estado, o Governo existem a partir de Deus, pela vontade de Deus e receberam autoridade de Deus e têm de Deus a incumbência de zelar pela ordem, pela vida, pela conservação do mundo. A CA requer que observemos a ¨ordem Estatal¨ como ordenação de Deus. Afirma ainda ¨por isso os cristãos devem necessariamente obedecer aos seus magistrados e às leis”, deixando, porém, claro e evidente, na linha de Atos 5.29, que a obediência ao magistrado, ao Estado, encontra o seu limite quando ¨exigem que se peque, pois neste caso devem obedecer mais a Deus do que aos homens¨. (Atos 5.29).
3) O artigo 16 da CA, assim me quer parecer, parte do princípio que as autoridades, os magistrados, enfim as pessoas do Governo são cristãos e consequentemente estão sob o chamado, o questionamento da Palavra de Deus. Assim o Evangelho chama as pessoas, portanto, as próprias autoridades, à obediência na fé.
4) O santo e trino Deus, criador, mantenedor e salvador do mundo e dos homens é o Senhor do mundo e dos homens. E como não há outro nome no céu nem na terra no qual devamos ser salvos, também o homem no poder, com poder no governo, está na total dependência do Senhorio de Cristo. É, portanto, submisso a Deus. (Atos 4.12).
5) Deus é Senhor da Igreja e do Estado. Ambos, Igreja e Estado são submissos a Deus. Ele governa a ambos. Há diferença entre Igreja e Estado. São as duas grandezas distintas, mas simultâneas para a pessoa Somos membros tanto de uma como da outra. Ambas têm ascendência sobre a pessoa e a pessoa tem responsabilidade para com as duas. Em sua diferenciação e sua simultaneidade a Igreja e o Estado não se excluem como se uma grandeza fizesse desnecessária a outra. Não podemos, portanto, separar a relação Igreja e Estado em esfera espiritual e esfera política (terrena) como se não houvesse para o cidadão comunicação entre ambas as esferas. O que acontece, isso sim, é que Deus governa a Igreja através da sua Palavra. E o anúncio da Palavra acontece para o membro da Comunidade cristã como para o cidadão do Estado. Deus governa o Estado, no Estado, através da Lei.
6) Cada uma das duas grandezas ¨Igreja e Estado” tem as suas competências. Lutero usou este pensamento para demonstrar a limitação das respectivas funções, em seu escrito de 1523 “Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei (Da autoridade secular). O motivo desse escrito está na determinação do duque da Saxônia, exigindo que todos os exemplares do Novo Testamento, traduzido por Lutero e recentemente publicado, fossem recolhidos. Em resposta, Lutero deixou claro que o duque, nem mesmo o imperador tem direito ou poder sobre a Palavra de Deus, não tem “autoridade sobre as almas”.
Isto quer dizer que “antes importa obedecer a Deus do que aos homens”, (Atos 5.29), que o Evangelho nos orienta como medida da obediência. Lutero, para falar numa linguagem de hoje, dentro de uma realidade contextual, protestou contra o totalitarismo do Estado, protestou e levantou a voz contra a intenção do Estado em querer dominar todas as esferas da vida humana, em pretender dominar totalmente o homem.
Aqui está o limite do Estado. E, sempre que o Estado não souber de sua limitação, a de respeitar sua limitação dada por Deus, cabe à Igreja alertá-lo disso, fazendo uso de sua função profética.
Concordo com Franklin Sherman, quando alerta que a ‘‘função limitadora vale também em outra direção, no sentido que a Igreja deve saber de seus limites, de seu poder e de sua sabedoria em assuntos terrenos”. Na compreensão luterana, sempre é necessário que aconteça uma contribuição com¨ conhecimento de causa”. Soluções de problemas sociais, continua o mesmo teólogo, ¨que a consciência cristã vier a apontar, devem comprovar-se na dura realidade da vida e com isto vamos verificar que, seguidamente, alcançamos somente uma aproximação do ideal anteriormente concebido”(11).
7) Em contraposição a quem afirma que o Governo de Deus está limitado à minha vida pessoal, à esfera eclesial, a teologia luterana deixou claro que o mundo com suas instituições, a sociedade, o poder, a política pertence a Deus, que tudo está sujeito ao juízo de Deus. Ele é o criador, mantenedor e Senhor do mundo (CA XVI e CA XXVIII).
É incumbência da Igreja lembrar, na pregação da Palavra de Deus, o mundo e suas instituições, que pertencem ao Governo de Deus. A palavra de Deus reúne “Lei e Evangelho”. E a Lei, em sua função de “usus civilis ou usus politicus”, é uma diretriz para possibilitar o convívio das pessoas em comunidades organizadas. E, afirma Franklin Sherman, “a lei é a lei da justiça, como também se queira entender: como justiça distribuidora “suum cuique a cada um o seu, como se diz em formulação clássica; como justiça que cobra, como se usa no código da justiça penal, mas também como justiça reparadora, como se manifesta no protesto profético contra a opressão e no anúncio da presença de Cristo em favor dos pobres” (12).
8) A organização e a ordem do Estado estão entregues aos homens. Ambas pertencem a este século. E como tais não podemos exigir delas a perfeição, é dada a relatividade do melhor e do pior. Na forma de governo, porém, é básico que se encontre e se concretize “uma norma de justiça, que deixa acontecer a livre responsabilidade e a liberdade responsável do indivíduo e da comunidade; em que liberdade e justiça para o indivíduo e para a coletividade estão em relação de paridade” (13).
É decisivo para a forma democrática de governo que seja considerada centralmente a pessoa humana, pois respeitada a pessoa humana, será, simultaneamente, respeitada a sociedade. Onde a liberdade do indivíduo é limitada, a sociedade toda sofrerá restrições. Enquanto o Governo se sabe a serviço do povo e da nação, compreendendo sua função como serviço ao homem e à sociedade, da liberdade e da solidariedade, estamos poupados de um sistema totalitário. No momento em que exatamente estas funções se embaralham e se confundem, vendo-se o indivíduo e a sociedade toda, o povo e a nação a serviço do sistema de governo vigente, a liberdade e a solidariedade correm o risco de força.
Nesse contexto para mim é inesquecível e muito significativa a manifestação do Pastor Rodolfo Saenger, quando frisava: “Uma democracia em mau funcionamento é 10 vezes melhor do que qualquer ditadura em bom funcionamento”.
E hoje vivemos a anunciada ¨abertura política”. Essa declaração, aliada à outra solenemente dada pelo presidente João Figueiredo: “Hei de fazer deste país uma verdadeira democracia”, deixam claro que o regime atual continua o de força e de exceção; que o viver novamente em clima democrático, com liberdade de expressão, de manifestação e ampla possibilidade participativa do povo nos acontecimentos e decisões que orientam o Brasil, é a grande aspiração do povo brasileiro. E a Direção da IECLB, em suas manifestações na imprensa falada, escrita e televisionada e também em suas cartas pastorais pretende apoiar, fortalecer e fazer crescer entre os membros a consciência do regime democrático, por ser ele a maior possibilidade de participação do povo no governo e nas decisões essenciais que afetam a nação, na escolha de seus representantes e cúpula do Estado, por ser a democracia o sistema que apresenta o respeito à pessoa humana, à liberdade da pessoa e da própria sociedade. O regime em que a liberdade e o respeito à pessoa humana correm o menor risco de força.
Em sua tarefa profética a Igreja deve anunciar à comunidade cristã, ao mundo e ao Estado que a liberdade é uma característica do “Regnum Dei” . E como Igreja de Jesus Cristo nos devemos dar conta que ao regnum Dei pertence a pessoa toda, não somente a alma, sua vida espiritual, mas o homem todo em sua alegria e necessidades físico-espirituais.
9) Isto significa que a Igreja deve deixar claro para o cristão, membro da comunidade cristã e civil, que ele está sob o governo espiritual de Deus. Ele foi batizado, é confrontado com a Palavra de Deus, comunga a Ceia do Senhor. É exigência evangélica que se lhe diga da necessidade de sua permanência sob o governo espiritual de Deus para a sua salvação. Todo o resto, comparado com a salvação, diz Peter Brunner “é assunto de menor importância”. E, continua Peter Brunner “as cousas se confundem e se tornam um terrível emaranhado, quando a pergunta pela ordem do convívio dos homens no matrimônio e no lar, no trabalho e na economia, no povo e no estado é colocada como se de sua solução dependesse a salvação do homem”. Realmente, afirma o mesmo Peter Brunner, “quando entregarmos o céu aos tico-ticos, a terra se tornará um inferno, quando, porém, a mensagem do Evangelho vier a ser um dolo sacerdotal, então o programa do partido passa a ser a doutrina da salvação e se torna a doutrina do estado totalitário”(14).
Isto nos diz que o reconhecimento do governo espiritual de Deus é indispensável para a nossa salvação eterna e também para a ordem objetiva da sociedade. Na medida em que nos é dado o reconhecimento do governo espiritual de Deus, reconhecemos os limites de tudo o que é terreno, nos é dado a ver o limite da autoridade do próprio Estado. Com palavras neotestamentárias isto significa que ¨antes importa obedecer a Deus do que aos homens. (Atos 5.29).
10) A ordem civil não nos justifica e sim tem a atribuição de manter a ordem em meio à injustiça. Esta limitação é dada ao Estado por Deus mesmo. Também a paz, que o Estado deve buscar e pela qual é responsável, não trata da “paz que supera todo o entendimento” (Filip. 4.7). E CA XXVIII declara “o magistrado não defende as mentes, porém os corpos e as cousas corpóreas contra manifestas injustiças”.
11) Creio, porém, o que nos levou como IECLB, ao lado de experiências frustrantes, decepções com promessas não cumpridas pelo Governo Brasileiro, de maneira especial no período imperial, das discriminações civis e jurídicas, a nos enclausurar, nos manter alheios à vida pública e política do Brasil, foi apoiado por uma compreensão errônea de CA XXVIII, que o poder eclesiástico tem sua própria incumbência: Ensinar o evangelho e administrar os sacramentos, separando indevidamente o “sacro” e o “profano”.
Assuntos da esfera civil, política e social foram entendidos como atribuição do Estado e tratar de tais assuntos seria “invadir ofício alheio” CA XXVIII.
12) A partir de uma interpretação alienante desses conceitos da CA XXVIII e mais a realidade da Lei dos Estrangeiros que proíbe a ele tomar posição pública em assuntos de ordem social, política e econômica como prejuízos civis durante gerações, e ainda sendo, e isto é marcante, até 1950, os pastores da IECLB em 80% estrangeiros, portanto sofrendo limitação nos direitos civis e políticos, as comunidades, depois de conseguirem, menos pelo esforço e dedicação e mais por doação da República, igualdade de direitos e de tratamento perante a lei, se acomodaram em um verdadeiro quietismo como se de fato a causa pública não lhes dissesse respeito, que a política seria de fato assunto dos outros; que a causa da Igreja seria a de cuidar das almas, servir de bom freio e preparar o seu povo para observarem boa obediência.
13) Na minha compreensão devemos ver no conceito central da teologia luterana, “a justificação por fé”, toda a dinâmica contida exatamente na fé. A fé sabe-se envolvida com os irmãos. A fé não se isola. Ela busca comunhão. A fé ativa nosso serviço. A fé se concretiza na vivência do serviço, de um serviço que edifica o povo de Deus (Ef 4.12). A fé sabe-se responsável e comprometida com o mundo e os homens, sabendo que Cristo, o doador da fé, veio ao mundo exatamente para buscar e salvar o que estava condenado e perdido (Lc 19.10), pois Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigénito em resgate (Jo 3.16); que a fé se concretiza no amor ao próximo (Mt 22.37-40); que a fé assume responsabilidade na vivência do novo mandamento (Jo 13.34).
14) A partir da grande comissão, a incumbência da pregação do Evangelho (Mt 28.20), tarefa nobre da Igreja, tornou-se, pouco a pouco, mais claro, compreensível e evidente que a Boa Nova quer ser testemunhada de maneira contextual. Isto é, a pessoa vive uma realidade contextual. A comunidade local vive uma situação na sociedade na qual está inserida, à qual pertence e pela qual é co-responsável. A vida da pessoa está interligada com a vida das outras pessoas. A pessoa tem a sua história, tem a sua realidade, sofre consequências de situações locais e nacionais. A pregação se deve dar conta disso. Vejo no hoje da IECLB um crescimento importante, um despertar decisivo, um processo de renovação, a partir da tomada de consciência que somos ¨Igreja de Jesus Cristo no Brasil” . A 2ª. Guerra Mundial com suas experiências muito duras para membros, comunidades e para a Igreja toda, quando a perseguição, prisões, confisco de bens, fizeram sofrer física e moralmente a muitos, foi um toque de alarme para que pessoas na direção da Igreja, entre o pastorado e nas comunidades se dessem conta que se deveria tomar medidas urgentemente. (15)
15) Estou convencido que este reconhecimento orientou as reflexões do Presidente Hermann Dohms, quando no primeiro Concílio da Federação Sinodal, em 1950, declarou entre outras, “A IECLB entende-se como Igreja de Jesus Cristo no Brasil. Ela não persegue este fim, não busca este objetivo, mas sabe-se Igreja de Jesus Cristo no Brasil. O ser Igreja de Jesus Cristo é uma dádiva, dada ou não dada”. O ser Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil é comprometedor; aponta responsabilidade para com o povo, a nação, a terra e o Governo brasileiros. A IECLB ¨tem aqui a sua pátria e o seu campo de ação. Constitui-se aqui como entidade jurídica e administrativa… em plena autonomia e em concordância com a legislação brasileira Tem a sua vida aqui no povo e estado brasileiros, com cujo destino se acha entrelaçado com seus membros. Procura com todo seu serviço o bem desta terra e do seu povo” (16).
16) A reflexão sobre a relação Estado e IECLB deve considerar:
a) A oração, a partir de 1 Tm. 2.1 ss, pois: “A Comunidade cristã que intercede em oração pela sociedade e pelo seu Estado se sabe responsável tanto por uma como pelo outro’’ (17).
b) A pregação da Igreja deve deixar claro: ¨Deus não só governa através da sua palavra na Comunidade cristã, e sim, o governo de sua palavra abrange todas as classes e a sociedade toda” (18).
c) Deve ficar evidente na pregação que “nada fica excluído do regnum Dei, seja na comunidade cristã ou na comunidade civil” (19).
d) O testemunho deve anunciar que: “ao regnum Dei pertence a pregação, a Constituição, o Regimento Interno e a confissão da própria Igreja, a fé, o amor e a oração da cristandade, mas pertencem também o Estado, a economia, a cultura, as estruturas sociais e a ordem jurídica da sociedade” (20).
e) É indispensável sublinhar que: “ao regnum Dei pertence a pessoa toda, não somente a alma, não só a esfera espiritual da pessoa humana, e sim o homem todo, o seu espírito, sua alma e seu corpo” (21).
f) É importante o testemunho tanto à “comunidade cristã como à civil, que Deus convocou a ambas para sob o seu governo, por ser esse seu regnum o governo do Pai e não o de um tirano. É o governo do Pai que possibilita à pessoa na comunidade cristã e na comunidade civil a necessária liberdade para que viva… o cumprimento da incumbência recebida” (22).
g) A comunidade cristã, sabendo-se sob o regnum Dei, deve testemunhar continuamente à comunidade civil e ao Estado que está sob o mesmo governo de Deus, que também ela, em meio à sua contrariedade para com Deus e para com a pessoa, vem do governo de Deus e vai ao encontro de sua manifestação total, quando “Deus será tudo em todos¨.
h) A Igreja deve salientar que ¨é graça do governo de Deus que pessoas, na medida do conhecimento humano e possibilidade humana, portanto em liberdade, se devem preocupar com a coordenação entre verdadeira liberdade e a verdadeira solidariedade, buscando o sadio convívio da comunidade civil” (23).
A fermentação da nova compreensão de ser “Igreja de Jesus Cristo no Brasil”, da tarefa ligada com a visão ‘‘no Brasil, nesta terra, entre este povo, neste contexto”, já tivera em março de 1946 um resultado prático com a criação da então Escola Superior de Teologia, a atual Faculdade de Teologia. Visão essa, assumida pela direção da Igreja e pelos docentes, fez com que mais e mais pastores fossem despertando para uma vivência com maior abertura ecumênica, uma nova compreensão da tarefa de ser Igreja de Jesus Cristo no Brasil, vencendo o nosso tradicional isolamento, superando a compreensão de ontem que assuntos da vida civil e política não são da alçada da Igreja, despertando assim para uma maior participação e a marcar presença, mesmo que ainda um tanto limitada, na vida do povo, da nação e do governo brasileiros.
17) Para mim, de maneira particular e especial, é importante a compreensão de que a reconciliação com Deus é uma dádiva cheia de dinâmica, que me chama e me envia com a tarefa de servir. Serviço esse que, entendo-o como resposta fiel da fé em Jesus Cristo, me levou muito cedo a envolver-me com problemas sociais, econômicos, políticos, enfim com a causa pública vivida pelas Comunidades, às quais fui enviado com o “munus pascendi”.
O meu envolvimento aconteceu desde a busca de novas sementes em substituição de uma cultura desgastada e foi até à importação de gado leiteiro. Envolveu-me desde a construção de pontes e de estradas até a criação e construção de escolas e de hospitais. Foi desde a representação perante autoridades municipais, estaduais e federais em defesa de assuntos do interesse da coletividade até ao ponto de assumir campanha política com o desfecho da eleição para vereador.
Esta compreensão e vivência fez com que assumisse na plataforma como candidato a Pastor Presidente, no tocante ao nosso tema, os pontos de vista:
“4.4 – Marcar uma maior presença da IECLB na vida pública através da imprensa publicação de pastorais e posicionamento frente a assuntos importantes de caráter sócio-político.
4.5 – Facilitar a participação das comunidades no processo histórico do povo brasileiro.
4.6 – Incentivar a formação de uma consciência social a manifestar-se em sensibilidade frente às necessidades da pessoa e frente às causas da injustiça e do sofrimento.¨ (24).
A partir desse compromisso assumido, e discutida a problemática amplamente em retiro do Conselho Diretor, buscando igualdade de informações, uma conscientização de todos os Conselheiros e o assumir da tarefa em comum acordo, salientaram-se como prioridades nacionais, o problema do índio e o problema da terra, ligando-se a essas prioridades toda a problemática sócio-política que povo e nação enfrentam. Na oportunidade, despontou a evangelização em sua compreensão abrangente, em sua dimensão contextual, visando o homem em sua vivência tanto espiritual como social.
Analisando a atuação, as reivindicações dos evangélicos e da IECLB, vejo que os assuntos em pauta, no relacionamento com o Estado, foram, até recentemente, de interesse e de caráter ¨intermuros”. Vejamos os motivos: as reivindicações de nacionalização dos evangélicos imigrantes buscavam igualdade civil com os demais cidadãos brasileiros; a luta pelo reconhecimento do casamento evangélico pretendeu terminar com situação constrangedora e discriminadora, que classificava o casal evangélico como vivendo em concubinato e declarava os seus filhos como filhos naturais; a luta pela casa de culto com características visíveis de templo – o próprio acontecimento de Santa Maria, em 1887, é prova para tanto – visava terminar com a discriminação religiosa; visava quebrar uma situação de privilégio da Igreja Católica buscava igualdade de tratamento do cidadão e fazer o Estado cumprir com compromissos anteriormente assumidos.
Essa luta toda, o sofrimento ligado a ela, fortaleceu os evangélicos. Motivou-os, ao lado de suas convicções de fé evangélica, a criarem e se reunirem em comunidades, levando-os, desde cedo, ao reconhecimento de que a vivência em comunidade seria uma necessidade para sobrevivência como evangélicos em um Estado, que não cumpria com promessas dadas e, além disso, mantinha leis que marginalizavam exatamente o evangélico. Contudo, foram reivindicações com a marca de interesses ¨inter muros¨ e menos integração na defesa e busca de interesses da coletividade.
VI. DOCUMENTO DE CURITIBA
Uma visão de responsabilidade, que a IECLB tem de maneira abrangente e não somente limitada às próprias fileiras, começou a tomar corpo a partir do Documento de Curitiba: “ Manifestação da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (25).
1) Em sua 1ª. tese o documento salienta que “a mensagem da Igreja sempre é dirigida ao homem como um todo, não só à sua alma”. Isso terá” continua o documento, “consequências e implicações em toda esfera de sua vigência – inclusive física, cultural, social, econômica e política… sobre todas as questões relacionadas com o bem-comum” .
Considero o Documento de Curitiba, VII Concílio Geral, de 22-25.10.1970, um documento histórico, que aponta para uma nova auto-compreensão da IECLB como Igreja de Jesus Cristo no Brasil. A IECLB rompe a defesa de interesses “inter muros¨ para se integrar de maneira participativa em toda a esfera de sua vivência” e de todas as questões relacionadas com o bem-comum”. Com isso a IECLB dá sinais de que começou a entender sua responsabilidade evangélica para com o povo e a nação e que assuntos de ordem social e política não são da alçada “dos outros” , mas dizem respeito aos evangélicos como de resto a todo cidadão.
2) A 2ª. tese deixa claro que o testemunho público da IECLB não pode estar divorciado do seu testemunho interno”. O testemunho público da Igreja não pode estar condicionado a “interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência…”.
3) Merece ser ressaltado que a IECLB nesse documento define, pela primeira vez, para o grande público o papel profético da Igreja perante o Estado e a Sociedade. Reportando-se a Ezequiel 33.7 ( a ti, pois, ó filho do homem, te constituí atalaia sobre a casa de Israel”), o documento destaca que cabe à Igreja ‘‘desempenhar uma função crítica – não de fiscal, mas antes de vigia e de consciência da Nação. Ela alertará e lembrará as autoridades de sua responsabilidade em situações definidas, sem espírito faccioso, e sempre com a intenção de encontrar uma solução justa e objetiva”. Para mim e outros diretamente envolvidos, com a elaboração do documento, aconteceu a declaração de presença da IECLB como Igreja de Jesus Cristo no contexto brasileiro.
O assumir do papel de atalaia aconteceu com muita abertura, franqueza e objetividade, assinalando uma característica da IECLB, a do diálogo, mesmo em situação de contestação e de crítica. A IECLB, porém, em situações de tensão com o Estado jamais deverá portar-se ¨como se ela fosse um partido político”, mas deverá manter-se consciente que a ela, como Igreja, cabe unicamente proclamar o ¨Senhorio de Cristo¨ e a ¨justiça de Deus”.
Daí nos deve servir de orientação que à Igreja não cabe fazer política partidária, assumindo um comportamento como se partido político fosse. Ela deve, isso sim, anunciar ao governo, aos partidos políticos, indistintamente, e à sociedade toda o Senhorio de Jesus Cristo e a justiça de Deus, denunciando como contrárias à vontade de Deus todas as situações marginalizantes e de discriminação, que ferem a dignidade do homem como criatura e imagem de Deus (Gn 2.27).
A Igreja é chamada para evangelizar os políticos, as autoridades, os componentes da mais alta direção governamental. O que não deve acontecer é que os grupos bíblicos, os grupos da JE, os grupos da OASE e os presbíteros sejam transformados em propagandistas de alguma orientação, de alguma ideologia partidária.
Na evangelização, que deve ser contextual e visar o homem todo em sua vivência, não podemos assumir uma atitude paternalista, querendo impor ao membro a nossa compreensão e visão daquilo que está certo ou errado, o que deve fazer ou deixar de fazer. Devemos, isto sim, buscar uma evangelização participativa, envolvente, conscientizadora, que informa, comunica, prepara e equipa o membro, deixando-o apto para pessoalmente discernir entre o certo e o errado, tomando posicionamento frente a problemas sociais, econômicos e políticos conforme a sua compreensão evangélica lho determina.
4) O mesmo documento – manifesto diz “a pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico… mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras”. Essa limitação teve o seu motivo na experiência com a doutrina da Segurança Nacional, que coloca a segurança da pátria acima de tudo e de todos e requer para a Bandeira Nacional a prestação de culto. O cidadão evangélico deve amar e honrar tanto a pátria como sua bandeira, mas deve estar consciente que acima de tudo está a obediência a Deus.
5) Com muita clareza, em contato com a Igreja Católica, participamos da luta pela conservação do ensino religioso nas escolas públicas, o qual era mais e mais substituído pela educação moral e cívica. Sempre ali onde a direção da escola não partia do reconhecimento que devemos “antes obedecer a Deus do que aos homens” a situação se embaralhava e o ensino religioso sofria limitações e substituição pela educação moral e cívica. Houve, exatamente nos anos de 1969 a 1972, uma grande tensão entre Igreja/Estado, de maneira especial no setor da educação. A tensão foi superada com a abertura do Estado em criar uma Comissão Ecumênica, que delineasse as diretrizes para o ensino religioso na escola pública. A IECLB participa com dois representantes na Comissão do Rio Grande do Sul, também na Comissão de Santa Catarina e no Paraná colabora ativamente na ASSINTEC.
6) Na situação difícil para os direitos humanos nos anos de 1969 a 1973, especialmente, quando as notícias – não publicadas na imprensa brasileira, que vivia sob rigoroso controle – sobre torturas políticas fizeram com que surgisse ¨uma atmosfera de intranquilidade, agravada com a carência de informações precisas e objetivas”, a IECLB denunciou “que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos”.
De maneira mais acentuada, concreta e direta, em assuntos dos direitos humanos, no reconhecimento de nossa responsabilidade evangélica pelo irmão, pelo próximo, pela pessoa injustiçada e prejudicada na igualdade de criatura de Deus, a Direção da IECLB denunciou, em correspondência dirigida ao Presidente da República, a diversos ministérios e autarquias, situações em que a pessoa humana estava prejudicada por medidas do Governo, por falta de cumprimento da lei em vigor, por motivos de corrupção e interesses obscuros, colocando-se ao lado dos que sofrem as consequências de atitudes espoliativas. Com isso mantivemos a disposição do diálogo com o Governo. Em assuntos vários dialogamos diretamente com as autoridades, seja com a Presidência da República, com o Ministério da Justiça, com a direção da FUNAI. Fomos um passo adiante, promovendo coletivas com a Imprensa falada, escrita e televisionada tomando nossos posicionamentos em determinadas situações e frente a diversos assuntos, posicionamentos públicos com a intenção de chamar a atenção da opinião pública para momentos delicados, que parte da sociedade sofre e, para fortalecer o processo de participação e de integração da IECLB na vivência da realidade brasileira, para vencer e superar, mesmo que lentamente, em um processo consciente a opinião que o envolvimento com assuntos da esfera civil, política e social não significa invadir “ofício alheio¨.
VII. DIVERSOS DOCUMENTOS
Entre os muitos assuntos tratados entre IECLB e Governo (por exemplo a situação dos Taivaneses, que estão como refugiados e por isso ilegalmente no Brasil) está a saudação de Natal de 1978, solicitando a anistia como possibilidade de reconciliação nacional e outros, como por exemplo o problema dos Indochineses, sofrendo como vítimas as duras consequências da luta entre o capitalismo e o consumismo materialista-marxista; está o sofrimento dos colonos na Binacional de Itaipu; está a problemática social, que aguarda os agricultores nas 44 barragens a serem construídas ao longo do Rio Uruguai; está a injustiça na relação de custo e preço do quilograma dos suínos; está a luta do agricultor contra o confisco do soja; estão os debates com a FUNAI e nosso posicionamento em defesa do índio, que simboliza o homem preterido, marginalizado, sem direitos, sem voz e sem vez, enfim o representante do homem preterido e sofredor, marcando a intenção de preparar, através de entrevistas, a opinião pública para a compreensão da função social da terra, compreensão acentuada pelo próprio Presidente da República Castello Branco ao encaminhar o Estatuto da Terra ao Congresso Nacional, em novembro de 1964. Estatuto esse, que oferece um modelo agrícola teórico, que se define basicamente pela produção de alimentos para o suprimento das necessidades do povo brasileiro e, secundariamente, pela produção para fins de exportação. Na prática, porém, o que temos é um modelo usado para criar mecanismos financeiros, tributários e comerciais para facilitar as exportações, jogando automaticamente a pequena empresa rural, de dimensões familiares, para o segundo plano. O pequeno agricultor, orientado pela política econômica oficial a participar da produção de produtos exportáveis, deixa de produzir alimentos tanto para sua família como para a sociedade” (26). A consequência dessa realidade se apresenta na escassez e no alto custo dos alimentos, na falta de determinados alimentos, na importação de alimentos considerados de primeira necessidade e, de maneira evidente, com o agricultor freguês do Supermercado para comprar o seu feijão, sua galinha – e esta deve estar depenada e limpa – seu aipim, referencialmente descascado. Estamos vivendo assim uma orientação fundiária, agrícola e econômica rejeitável. A Reforma Agrária, a mudança na orientação da agricultura para fins de exportação e a orientação econômica de financiamentos são necessidades imediatas.
A IECLB, se mais não poderá fazer, deve apontar a realidade que é vivida por 50% de seus membros mais uma considerável parcela do povo e deve conscientizar o agricultor que ele deve, pelo menos, produzir alimentos para a própria mesa, escolhendo, para fins comerciais, aquele produto que melhor se adapta à região, ao clima e à sua terra. O que urge são as reformas, pois o sofrimento com falta de alimentos, seus custos inflacionados o baixo poder aquisitivo da massa popular brasileira, sua marginalização do desenvolvimento nacional, o sistema capitalista de lucro, que concentra a renda nas mãos de poucos; a realidade brasileira no setor da educação e da saúde, preterindo 60% a 70% do povo brasileiro, são motivos suficientes para nos sentirmos como sobre um barril de pólvora e, por motivos de responsabilidade evangélica para com a pessoa humana, sermos atalaia, voz profética, sermos consciência da sociedade e do próprio Governo, visando as reformas necessárias, pois “aqueles que fazem a reforma pacífica impossível, tornam a mudança violenta inevitável” (John F. Kennedy).
Entre diversos outros assuntos, que exigiram a atenção e atuação da direção da IECLB, cito mais a Lei dos Estrangeiros e a Lei de Segurança Nacional. Assessorado por um grupo de colaboradores, elaboramos o nosso posicionamento frente à nova Lei dos Estrangeiros, encaminhando um exemplar do mesmo ao Ministro da Justiça, ao Presidente do Senado, ao Presidente da Câmara dos Deputados e às Igrejas do CONIC, bem como à imprensa secular. No documento reconhecemos a validade de uma Lei dos Estrangeiros, que o Brasil não é uma exceção, mas que todos os países têm uma lei que regulamenta a situação dos estrangeiros em seu respectivo território; que consideramos justa e necessária a proteção à mão-de-obra nacional. Questionamos, porém, e solicitamos revisão no projeto e, posteriormente, consideração na lei, aprovada por decurso de prazo, dos seguintes conceitos:
1) Estrangeiro casado (a) com brasileira(o) e com filho(s) brasileiro(s) não poderá ser expulso do país.
2) Parentes de estrangeiro, que venha a ser expulso em consequência de atuação condenada peia Lei dos Estrangeiros, não poderão ser responsabilizados pelos atos do incriminado, sofrendo concomitantemente a expulsão.
3) Que sega permitido ao estrangeiro, com situação regularizada, de buscar os seus parentes para o convívio da família no Brasil.
4) Que haja previsão na Lei, que manda regularizar a situação dos estrangeiros, que por motivos políticos e outros se encontram refugiados no Brasil.
5) Que seja concedido o visto de entrada para colaboradores eclesiásticos e não somente para cientistas e outras profissões que o Estado vier a julgar de interesse nacional.
6) Que seja mantida a possibilidade de transformar o visto temporário em visto permanente.
7) Que se reduza ao mínimo a margem do arbítrio conferido ao Governo peio estatuto, aprovado por decurso de prazo.
8) Que o conceito ¨interesse nacional’’, cujo julgamento é da competência única do governo, seja claramente definido, a fim de evitar, em situações de permanência ou de expulsão, qualquer arbitrariedade.
9) Que o poder dado ao Ministro da Justiça de determinar e de prescrever a área geográfica de atuação do estrangeiro, denominado de “confinamento” seja eliminado.
10) Que haja abrandamento na exigência, que obriga a rede hoteleira e imobiliária a enviar informações à Polícia, sempre que houver hóspedes e locatários estrangeiros.
O nosso posicionamento evidenciou os critérios: que uma lei da envergadura da Lei dos Estrangeiros, requer que haja uma discussão ampla e profunda sobre o projeto e suas implicações; que a tradicional hospitalidade brasileira deve oferecer aos estrangeiros “a oportunidade de levarem em nosso país uma vida segura e tranquila e de estabelecerem seus lares em nosso meio; que os estrangeiros, mesmo que não se naturalizaram, mas são “brasileiros de coração” , e ¨contribuíram para o desenvolvimento do país”, sejam respeitados e reconhecidos; que a IECLB quer a colaboração de pastores estrangeiros não tanto pelo motivo de falta de pastores em seu quadro de obreiros e sim por sua compreensão ecumênica, pela necessidade do intercâmbio teológico e por saber-se, com as demais Igrejas do mundo, parte da Igreja Universal; que ao lado dos “interesses nacionais” deve-se “tomar em consideração também a situação e os interesses pessoais, familiares e sociais do próprio estrangeiro”.
11) Que o artigo 16 do projeto de lei nº. 9 seja reformulado. O artigo não deve destacar somente o desenvolvimento econômico e sim, prever a concessão do visto permanente também a pessoas que não contribuem diretamente para o aumento da produtividade, a assimilação de tecnologia e a captação de recursos para setores específicos da economia, mas também os que contribuem para o desenvolvimento do país num sentido mais amplo.
VIII. LEI DE SEGURANÇA NACIONAL
A atual Lei de Segurança Nacional, (LSN) de nº. 6.620, foi reformulada e aprovada, como também aconteceu com a Lei dos Estrangeiros, por decurso de prazo, em 17 de dezembro de 1980. A LSN é consequência da doutrina da Segurança Nacional, com orientação americana e adaptada à “necessidade nacional” pela Escola Superior de Guerra.
Vejo tanto na LSN como no Estatuto dos Estrangeiros, ambos aprovados por decurso de prazo, uma situação sui generis, mexendo com uma população toda. O Congresso Nacional não teve oportunidade de tratar da LSN devidamente. Aprovação por decurso de prazo, escolhendo-se períodos especiais durante o ano, significa que a lei não recebeu aprovação do Poder Legislativo, que a lei não passou pelo crivo do Legislativo, não reconheceu discussão ampla e não chegou a ser debatida pela Imprensa para maior informação do povo.
Aprovação por decurso de prazo significa manobra impositiva sobre o Congresso Nacional, que continua sofrendo limitações de poder por parte do Executivo, que se sobrepõe tanto ao Legislativo como ao Judiciário, exatamente através da LSN.
A existência de leis que resguardam a soberania nacional é aceita por todos os brasileiros. Isso não seria novidade nem exclusividade no Brasil, é indispensável que o Brasil faça respeitar suas fronteiras por países limítrofes e que haja, internamente, controle e manutenção da ordem. Esse, porém, não é o problema com a LSN. O preocupante é que essa, sendo consequência da filosofia da Segurança Nacional, penetra em todas as áreas e tem predomínio sobre toda a organização do Estado, da Sociedade, do Legislativo, Judiciário, vendo as entidades, inclusive a Igreja, a serviço da segurança nacional. A segurança nacional passou a ser o termo mágico, de máximo poder, a razão, a finalidade do Estado, da sociedade e o próprio povo deve viver em função da segurança nacional. Inverteram-se os papéis, enquanto que o povo considerava a segurança nacional uma proteção para a nação e o povo, esse vive, trabalha e existe a serviço da Segurança Nacional.
A doutrina da Segurança Nacional tem penetração em todos os setores administrativos e orienta inclusive a economia nacional, dá o seu apoio e defesa ao grande capital, rege o sistema econômico em vigor e, tendo à testa para aplicação da LSN o Supremo Tribunal Militar, com ministros nomeados pelo Poder Executivo, penetra na justiça civil, determina o que é ou não é da competência da mesma.
O Ministro Dilermando Gomes de Monteiro (STM) fala na manutenção da LSN pelo fato que a Constituição Nacional não ¨contém os resguardos necessários à soberania nacional”; que a LSN é uma ¨salvaguarda dos princípios democráticos¨.(27).
Creio eu que os resguardos à Soberania Nacional e a ¨salvaguarda aos princípios democráticos” devem ser assuntos específicos da Constituição Nacional, a Carta Magna do Brasil, que expressa o regime democrático e não devem estar a mercê de uma lei que fere a Democracia com poderes totalitários.
Abriu-se a discussão em torno da necessidade de reformulação da LSN, perguntando-se se o julgamento dos crimes, assaltos, assassinatos devem ou não ser incluídos na LSN. Francamente, nestas alturas pergunto do porquê da existência da Justiça Civil.
A Democracia se caracteriza com a existência de 3 poderes com suas competências definidas: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. No caso brasileiro contamos com o 4º. poder, emanado das Forças Armadas, com a LSN.
O próprio Presidente João Figueiredo admite que vivemos em regime de exceção no Brasil, quando ele, ainda candidato a ser submetido à aprovação do Congresso, prometeu: ¨Haverei de fazer deste país uma verdadeira democracia¨. Mesmo que aconteça a abertura política, que se supere finalmente o bi-partidarismo imposto peio Executivo, que o Congresso Nacional ainda não esteja no pleno uso de suas prerrogativas, que se afrouxe o controle da Imprensa, que o Executivo determine, dentro de uma regulamentação estabelecida a formação de certo número de partidos sem que esses nasçam e se formem a partir de convicções do povo, a LSN continua como a eminência parda, largando sua sombra sobre o cidadão, grupos e instituições, continua a sombra contra a democracia e com isso contra a liberdade de expressão do cidadão.
Estamos em um dilema: ou “declaramos caduca a lei, preparando-lhe, por outros caminhos, a reforma – mais ou menos como se acaba de fazer com o Estatuto dos Estrangeiros — ou consentimos na sobrevivência do autoritarismo que nos desmente o projeto de democratização¨ (28).
Ministros do STM que acompanham a abertura política, como por exemplo o General Rui Pessoa, afirmam que “conflitos trabalhistas devem ser julgados pela Justiça do Trabalho – mesmo assim o comando da greve no ABC foi enquadrado na LSN – e que os crimes de imprensa devem ser julgados pela Lei da Imprensa (29).
Aparentemente não há área na vida da nação e da sociedade brasileira que não esteja sujeita a LSN, o que enfraquece a Justiça Civil, e dá margem a tensões entre a polícia civil e militar. Na seriedade da afirmação da abertura política para que o Brasil volte a ser uma verdadeira democracia, a conservação da LSN como expressão do totalitarismo é um contrassenso. É chegada a hora da reformulação ou até da extinção da LSN e que os 3 poderes, característicos da Democracia, assumam, cada um dentro de suas prerrogativas, o papel que lhes cabe.
IX. CONCLUSÃO:
1) O processo de participação, envolvimento, integração da IECLB como Igreja de Jesus Cristo no Brasil, e com isso na realidade brasileira, dando presença na vida pública e na sociedade, está em andamento. E somos todos responsáveis pela maior conscientização das Comunidades da IECLB de que Deus é Senhor da Igreja, do Mundo e do Estado; que somos membros com responsabilidade tanto na Igreja como no Estado; que não podemos separar a esfera espiritual da esfera social e política; que o Senhorio de Jesus Cristo abrange o homem todo na totalidade de sua vivência e que o Estado, o Governo, a Política pertencem à responsabilidade do cidadão evangélico.
2) A IECLB deve manter presente, que sua atuação pública não pode ser diferente de sua atuação interna. Ela tem a incumbência de anunciar o Evangelho de Jesus Cristo, válido para a Comunidade cristã como para a sociedade toda. Jamais a IECLB poderá assumir o papel de uma ideologia político-partidária, com isso ela deixaria de ser evangelicamente atalaia, consciência e voz profética, para seguir e confundir-se como partido político. Em todo respeito, honra, amor à Pátria e obediência às autoridades, deve ficar claro que antes devemos obedecer a Deus do que aos homens.
Notas:
*
Palestra apresentada na Faculdade de Teologia da IECLB, em 29.04.1981.
(1) Carlos H. Hunsche, A imigração e Colonização Alemã no Rio Grande do Sul (Porto Alegre 1977), pág. 348.
(2) Carlos H. Hunsche. op.cit pág. 351.
(3) Carlos H. Hunsche, op. cit. pág. 346a.
(4) RS: Migração e Colonização. Documento 4, Mercado Aberto (Porto Alegre 1980), pág. 12.
(5) Jean Roche, A Colonização Alemã no Rio Grande do Sul, Vol I (Porto Alegre 1969), pág. 1.
(6) Cf nota 4. pág. 13.
(7) op. cit., pág. 677
(8) op. cit., pág. 679.
(9) Cf nota 4, pág. 31.
(10) Jean Roche, op. c it, pág. 679.
(U ) Franklin Shermann. Der weltliche Beruf und das sozial-ethische Denken, in: Vilmos Vatja´(ed.) Die Evangelisch-Lutherische Kirche. Vergangenheit und Gegenwart (Die Kirchen der Welt XV), (Stuttgart 1977). pág. 214.
(12) op. cit, pág. 212.
(13) Gustav Reusch, Was hat die Kirche in Ausrichtung ihrer Botschaft dem Staat zu sagen, in: Estudos Teológicos 1951 (I) pág. 13.
(14) Peter Brunner. Der Christ in den zwei Reichen, in: Pro Ecclesia Gaaammelte Aufsätze zur dogmatischen Theologie, Vol I (Berlin und Hamburg 1962), pág. 362.
(15) Exemplo: em Rio Grande o Governo mantém até hoje confiscado parte do terreno com prédio escolar – hoje construção nova, executada pelo Governo – da Comunidade Evangélica. Em Florianópolis o Governo somente devolveu em 1979 terreno e prédio, confiscados durante a 2ª. Guerra Mundial.
(16) Hermann Dohms, A significação dos artigos I e II da Ordem Básica (Estatutos) da Federação Sinodal, em: Primeiro Concílio Eclesiástico da Federação Sinodal, (São Leopoldo, 14-16 de maio de 1950), pág. 30.
(17) Gustav Reusch. op. cit. , pág. 17.
(18) idem, pág. 17.
(19) idem, pág. 17.
(20) idem, pág. 17.
(21) idem. pág. 17.
(22) idem, pág. 18.
(23) idem. pág. 18.
(24) Augusto Ernesto Kunert Plataforma, elaborada em julho de 1978.
(25) Texto em Germano Burger (ed.) Quem assume esta tarefa? Um documentário de uma Igreja em busca de sua identidade. (São Leopoldo 1977), pág. 37-41.
(26) Pronunciamento de Dom Edmundo Kunz no Correio do Povo, em 6.01.81.
(27) Estado de São Paulo. 11.03.8!
(28) Estado de São Paulo, Editorial. 10.03.81
(29) Zero Hora. 13.03.81. pág. 15.
Fonte: Estudos Teológicos. Vol. 22, nº. 3, 1982, p. 215-242