A. Preliminares
1. Trazendo calorosa saudação aos presentes, quero antes de mais nada expressar minha alegria por sobre este encontro de Bispos da Igreja Católico-Romana e de Pastores Sinodais da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. Trata-se, sem dúvida alguma, de mais uma iniciativa pioneira do ecumenismo bilateral brasileiro. Congratulo-me com ela e desejo que dela resultem ricas bênçãos.
2. Agradeço pelo convite dirigido à Comissão Bilateral Nacional Católica/Luterana, coordenada já há mais tempo por D. Ivo Lorscheiter e por mim. Estendo a minha saudação aos membros desta comissão, dizendo-lhe um sincero obrigado por sua presença e colaboração. A própria existência da Comissão é motivo de satisfação. Mostra que o ecumenismo não estagnou e sublinha a seriedade com que as duas Igrejas encaram o compromisso.
3. Iniciarei minha exposição, lembrando alguns marcos históricos do ecumenismo católico-luterano neste país, para então refletir sobre fatores propulsores da caminhada. Não pode faltar nesta avaliação também a menção dos empecilhos e das dificuldades a serem vencidas. Terminarei apontando para os desafios comuns e as chances do ecumenismo hoje.
4. Evidentemente, não poderei ser exaustivo. Mas creio não ser esta a expectativa. O que importa é, se entendo bem, um levantamento da situação e das perspectivas ecumênicas em futuro próximo.
B. Marcos históricos
1. Tudo começou em 1957, em São Leopoldo, com um encontro de teólogos jesuítas e luteranos. Merece destaque que João XXXIII ainda não havia sido eleito papa nem, é claro, criado o antigo Secretariado para a Unidade dos Cristãos. Mas o imperativo ecumênico se impunha com crescente urgência. Sejam lembrados os nomes do Pastor Bertoldo Weber, do Padre Frederico Lauffer e do Padre Paulo Olejak, todos eles já falecidos. Os encontros tiveram continuidade, juntando-se a eles outros importantes batalhadores em favor da causa ecumênica. Destaco, entre outros, os nomes do Prof. Dr. Harding Meyer e do Pe. Dr. Jesus Hortal. Nasceu dessa iniciativa a reunião periódica de representantes das Faculdades de Teologia em Viamão, Porto Alegre e São Leopoldo, mesmo depois que os jesuítas se transferissem para Belo Horizonte. Foi um importante ensaio de diálogo, disseminador do espírito ecumênico.
2. É claro que o ecumenismo nacional recebesse fortes impulsos pelo que estava acontecendo em nível internacional. O Relatório de Malta formula em 1972 um primeiro posicionamento comum católico-luterano. É o que vai motivar as Igrejas no Brasil a constituir, pela primeira vez, uma comissão mista nacional. Isto em 1974 com o objetivo explícito de divulgar o Relatório de Malta no Brasil. Dava expressão de que seria possível uma prática ecumênica mais autêntica. Realizam-se seminários conjuntos (em 1974 e 1977) e decide-se trocar observadores nas Assembléias Gerais da CNBB e nos Concílios Gerais da IECLB.
3. Mas já em 1969 havia sido fundado o Serviço Interconfessional de Aconselhamento (SICA) em Porto Alegre. Em 1970 cria-se o Conselho de Igrejas para Educação Religiosa (CIER) em Santa Catarina afim de acertar os passos na questão da Educação Religiosa. No Paraná surge órgão análogo, chamado ASSINTEC (Associação Interconfessional de Educação de Curitiba) e em 1973 nasce a Coordenadoria Ecumênica de Serviços (CESE). Nesta cooperam ainda outras Igrejas além da Luterana e Católica. O despertar ecumênico conduziu à formação de ainda outras organizações ecumênicas para atender necessidades comuns.
4. O órgão mais importante, porém, tem sido o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC). Sua fundação ocorrida em 1982 tem sido preparada por diversos encontros de “dirigentes de Igrejas”. Pelo que li, foram 14 ao todo. Trata-se também no caso do CONIC de um ato pioneiro. São raros os Conselhos Nacionais de Igrejas Cristãs que podem contar com a participação da Igreja Católica, e isto em proporção paritária. A história deste organismo foi muito bem apresentada em Carlos G. Bock. O ecumenismo eclesiástico em debate. São Leopoldo : Ed. Sinodal/OEPG, 1998 O CONIC tem desenvolvido inúmeras atividades nos dois decênios de sua existência. Tem promovido a Semana da Oração para a unidade dos cristãos, realizado seminários a exemplo daquele em Curitiba sobre o Documento de Lima, tem sido voz ecumênica das Igrejas em tempos difíceis e sobre assuntos polêmicos.
5. Cabe desataque especial à Campanha da Fraternidade Ecumênica no ano de 2000. Do mesmo modo tem significativa a reconstituição da Comissão Bilateral Nacional em 1996. Por iniciativa desta Comissão foram realizados três Seminários conjuntos, sobre justificação, hospitalidade eucarística, ministério. Mais outro está sendo planejado. Posicionamentos comuns foram redigidos a exemplo de um parecer sobre o projeto da Declaração Conjunta, em 1998, sobre a justificação, aliás algo inédito no mundo ecumênico internacional, ou da resposta à Declaração “Dominus Iesus” em 2000. Alguns cadernos com os estudos sobre os temas mencionados estão sendo distribuídos e estudados nas Igrejas.
6. Em retrospecto podemos dizer que foi rica a caminhada ecumênica das duas Igrejas no Brasil. Isto não só a nível nacional como também regional e diocesano. A riqueza se documenta em numerosas promoções, encontros e modalidades de cooperação. O saudoso Pastor Godofredo Boll, um incansável batalhador pela causa ecumênica e durante longos anos secretário executivo do CONIC, em estudo redigido em 1990, falou com muita propriedade da extraordinária pujança do ecumenismo brasileiro, especialmente aquele entre as Igrejas históricas, e entre elas novamente entre luteranos e católicos.
C. Fatores incentivadores
1. Muitas foram as forças que impulsionaram o processo. Cabe mencionar em primeiro lugar os acontecimentos internacionais, entre eles o Concílio Vaticano II, o compromisso assumido pelo papa João XXIII, seguindo-lhe Paulo VI e João Paulo II. Na encíclica deste último papa “Ut unum sint”, o compromisso está sendo qualificado como definitivo. Da mesma forma, importa lembrar os esforços ecumênicos das Igrejas luteranas unidas na Federação Luterana Mundial, além do Conselho Mundial de Igrejas e de outras entidades congêneres. É impossível isolar o ecumenismo brasileiro do contexto mundial.
2. Mas isto não explica tudo. Houve também fatores externos a exemplo da perseguição sofrida pelas Igrejas ou por segmentos das mesmas na época da ditadura militar, da violação dos direitos humanos, do restabelecimento do estado democrático em nosso País e outros. A miséria, a fome, a corrupção e semelhantes chagas no corpo da sociedade clamavam pela conjugação das forças dos cristãos e pela união das suas vozes. Embora a ditadura fosse entrementes superada, persistem situações de escandalosa injustiça, de violência e indigência, solapando a paz pela qual a Nação anseia. Também no futuro a responsabilidade pelo bem estar do povo vai requerer a reação ecumênica.
3. Ademais, progressos tem sido feitos no diálogo doutrinal. Embora ainda persistam divergências, houve aproximação numa série de importantes assuntos. Para tanto é exemplo o Documento de Lima, sobre Batismo, Eucaristia, Ministério. Celebrando uma Convergência multilateral, este documento é vinculante também para católicos e luteranos. Elaborado pela Comissão “Fé e Ordem” do Conselho Mundial de Igrejas, foi assinado também pela Igreja Católica que dessa Comissão é participante oficial.
4. Mas significativa ainda tem sido a recente “Declaração Conjunta Católico-Luterana” sobre a justificação por graça e fé, assinada oficialmente no dia 31 de outubro de 1999 em Augsburg na Alemanha, pela Igreja Católica e as Igrejas Luteranas da Federação Luterana Mundial. Constata-se haver um consenso fundamental em verdades da justificação por graça e fé. A Declaração oficializa um consenso afirmado já no referido Relatório de Malta e reafirmado em diversas ocasiões posteriores. Trata-se de um caso de “recepção” de uma acordo alcançado em diálogos bilaterais. Também a CNBB e a IECLB participaram do processo de estudos que precedeu a assinatura através de pareceres próprios .A Declaração é sinal de ser possível superar divergências do passado, não corrigindo anátemas anteriores, mas sim mostrando que eles já não mais atingem os parceiros de hoje nem possuem, por conseguinte força divisora. Outras Declarações Conjuntas deveriam seguir a este primeiro ensaio.
D. Dificuldades
1. A mesma Declaração sobre a justificação, porém, mostra não só ser possível o progresso, mostra também ser penoso o caminho à unidade. Foi complicada a gênese da Declaração. Várias reformulações se fizeram necessárias. Houve protestos por parte de professores luteranos, principalmente na Finlândia e na Alemanha. E quando a Congregação para a Doutrina da Fé da Cúria Romana deu o seu parecer, toda a caminhada parecia estar sustada. Mais uma vez se encontraram as partes para dirimir dúvidas e esclarecer divergências, anexando à Declaração um “Posicionamento Oficial Conjunto” que finalmente permitiu a assinatura em Augsburg. Mesmo assim, permanece o alerta de que há assuntos a merecer estudos futuros, a exemplo da pergunta como entender a pecaminosidade da pessoa justificada (o “simul iustus et peccator”), a cooperação do ser humano na justificação e o caráter meritório das boas obras. A exigência está sendo atendida. Também católicos e luteranos brasileiros estão empenhados em estudos respectivos, de modo que a busca por um consenso mais abalizado está em andamento.
2. Também outros acontecimentos abafaram o entusiasmo ecumênico. Menciono a Declaração “Dominus Iesus” da Igreja Católica que nega às Igrejas da Reforma a qualidade eclesial. Igualmente irritante para muitos luteranos tem sido a promessa de indulgências por ocasião do ano santo de 2000 em Roma, bem como a canonização de Pio IX, um papa notoriamente anti-ecumênico. Inversamente não pode ser negado o crescimento da oposição ao ecumenismo, sim, até mesmo do fundamentalismo em Igrejas protestantes, acarretando um clima mais áspero no relacionamento das Igrejas. Está se intensificando a competição religiosa, favorecida evidentemente pelo mercado religioso que se instala sob a égide do neoliberalismo e de uma sociedade plural. Proselitismo é a bandeira de muitos grupos ditos “evangélicos”, de matiz pentecostal ou nitidamente sectário, acuando as Igrejas chamadas históricas. É claro que a planta do ecumenismo não tem condições de vingar nessas circunstâncias. O momento histórico parece aconselhar o refúgio para a fortaleza da própria instituição para defender o que é nosso e rebater o ataque do inimigo.
3. Advém a tudo isto o que eu chamo a falta de uma “utopia” ecumênica. A teologia tem elaborado, nos últimos decênios, uma série de modelos de unidade, desde a união orgânica, à comunhão conciliar, à unidade na diversidade reconciliada, o projeto de Karl Rahner e de Heinrich Fries e ainda outros. Nenhuma dessas propostas conseguiu ser exitosa, nenhuma foi acolhida oficialmente pelas Igrejas, nenhuma realmente testada. Persegue-se hoje a meta de uma “Comunhão de Igrejas”. “Koinonia” é o que se pretende, uma proposta algo mais modesta e por isto talvez mais realista do que a da “unidade”. Julgo grande o potencial desta meta. Mesmo assim, o ecumenismo está patinando. Não está claro o que realmente se pretende. Queremos a fusão das instituições? Queremos reconduzir os parceiros à nossa própria Igreja? Queremos apenas uma federação de Igrejas? Afinal, o que significa unidade? Konrad Raiser, o Secretário Geral do Conselho Mundial de Igrejas, afirma com propriedade que, em muitos sentidos, ainda estamos nos inícios. Diante de um quadro religioso constrangedor, urgente é a reafirmação do compromisso ecumênico por parte das Igrejas. Isto não apenas em termos verbais como também – e principalmente – práticos.
4. O retrospecto aos últimos cinquenta anos de ecumenismo mostra que as Igrejas acolheram o compromisso, sim. Há uma consciência aguda de que o fraccionamento da Igreja de Cristo é prejuízo. Nisto há consenso, graças a Deus. Importa traduzir este consenso em projetos concretos, ou seja em práxis. Isto é difícil. Até mesmo a hospitalidade eucarística não nos é possível. Seria fabuloso, se neste encontro pudéssemos celebrar a eucaristia, ou seja a missa em conjunto. Ainda estamos impedidos de fazê-lo. Isto é lamentável, e o nosso esforço deveria consistir em levantar as barreiras responsáveis por esta separação. Mesmo assim, não vejo nenhum motivo para a resignação. Podemos orar juntos em nome daquele que é o nosso Senhor, podemos ouvir-lhe a palavra e já temos reconhecido o batismo uns dos outros. É grande o efeito da Semana da Oração pela Unidade dos Cristãos organizada pelo CONIC. Tais promoções preparam o espírito e unem o povo cristão que tanto almeja a fraternidade dos e das que professam o nome de Jesus Cristo. Mas há mais a fazer.
D. Perspectivas ecumênicas
1. O imperativo ecumênico se inspira em duas vertentes. Uma é a tradição. É o olhar retrospectivo do ecumenismo. Pretende detectar as causas das rupturas e consertar o estrago. Seu objetivo é reverter as divisões e eliminar os dissensos que estão na sua origem. É este o ecumenismo tradicional, empenhado em diálogo doutrinal na intenção de remover os empecilhos para a plena comunhão eclesial. Ecumenismo, de fato, não pode ser omisso nessa questão. Sem consenso na doutrina, unidade permanecerá fictícia ou então ameaçada. Não vai resistir aos impactos da prática. Mas esta é apensa uma vertente do ecumenismo. A outra é a vocação comum das Igrejas. É o olhar prospectivo, para frente, às tarefas e aos desafios a serem atendidos. O bom ecumenismo, assim entendo, vai mover-se entre esses dois polos. Não pode esquecer a tradição, o devir das Igrejas, sua origem e trajetória histórica. Tampouco, porém, pode passar ao largo do mundo em que vive inserido e que desafia a cristandade sem distinção denominacional. Por sobre o diálogo teológico, às vezes menosprezado em nossa América Latina, não devem ser esquecidos os escândalos deste mundo. Há uma vocação, uma missão comum da cristandade a ser cumprida sob pena de nos tornarmos culpados diante de Deus, nosso Senhor.
2. É significativo que os objetivos do CONIC englobam expressamente ambas as coisas, a saber o diálogo teológico e a reação conjunta aos desafios colocados pela realidade brasileira. Tem residido nesse lado a lado algo do vigor e da credibilidade do CONIC ao longo de sua história. Se a tradição ainda não permite maior aproximação estrutural e se ainda lutamos com o reconhecimento mútuo do ministério e da eucaristia, por exemplo, isso não serve de álibi para o isolacionismo eclesial. Podemos e devemos cooperar, unir o testemunho sempre no dever de divulgar o evangelho, de servir ao amor, à justiça e à paz, de sermos trabalhadores na seara de Jesus Cristo. Que o façamos cada qual com o talento que recebemos. Não em concorrência mútua, e, sim, com o intuito de nos complementarmos uns aos outros, assim como o fazem os membros em corpo sadio. É claro que tal complementariedade vai incluir o diálogo crítico. Fraternidade eclesial não exclui a prestação de contas devida a todo membro diante do evangelho. Mas vai impedir, que divergências redundem em “guerras santas” ou causem feridas no corpo de Cristo. Unidade não exige a uniformidade. Em prol da causa maior e em base do fundamento evangélico / católico comum pode tolerar diferenças, mesmo quando levemente dissonantes.
3. A urgência da cooperação entre as Igrejas se tornou especialmente aguda neste início do terceiro milênio. Permito-me mencionar algumas das razões. Já sempre houve violação da dignidade humana, houve miséria e injustiça. Mas o mundo globalizado conferiu às enfermidades sociais outra qualidade. Inflacionou as ameaças e lhes conferiu incomparável gravidade. Resumem-se basicamente na falta de “justiça, paz e integridade da criação”, ou seja cuidado ambiental. Após a queda do muro entre o mundo capitalista e o comunista, outro muros foram erguidos. Acentuou-se o desnível entre riqueza e pobreza, abriram-se fossos entre as culturas, a violência se privatizou e se espalhou. Diante de tal quadro, o amor cristão não pode ficar calado. Deve unir forças para conjuntamente reagir na tentativa de prevenir os males, denunciar o crime e, se possível, curar as enfermidades. O sofrimento neste mundo clama por o que eu chamaria de diaconia ecumênica.
4. Não menos alarmante é o quadro religioso. Passaram as épocas em que a fé cristã possuía algo como um monopólio no mundo da religião. Hoje ela deve competir com outras ofertas. Nesta disputa teremos credibilidade somente, se soubermos conjugar a paixão pela verdade com o fervor do amor que une as diferenças e as transforma em carismas a serviço da edificação do corpo. Para falar com os termos do apóstolo Paulo, confiamos na “demonstração do espírito e do poder”, não em outras forças, sejam elas de ordem econômica, política ou cultural. Jesus Cristo, o caminho, a verdade e a vida, há de revelar-se como Senhor do cosmo e redentor da humanidade. Para tanto nos engaja como suas testemunhas. E também nesta ótica a palavra “ecumênico” é de fundamental relevância. Cristo espera de nós, a um só tempo, o testemunho particular (e isto significa também: o católico e o luterano), bem como o testemunho conjunto. Ele quer o nosso testemunho ecumênico. Ecumenismo, incluindo até mesmo o inter-religioso, resiste tanto ao relativismo quanto ao fanatismo.
5. Vivemos, se vejo bem, num mundo em que se multiplicam os sinais de pânico, de desorientação, de brutalidade. O pânico, para ser superado, necessita da esperança, a brutalidade do amor, a desorientação da fé. Está aí o mandato da Igreja: Está chamada a semear a fé, o amor e a esperança, estes três, sem os quais se torna ilusória a “sociedade sustentável”. Não podemos fazer mais do que semear. O crescimento é obra do Espírito Santo. Mas sem semeadura não haverá colheita. É meu desejo que ecumenismo se inspira cada vez mais neste mandato e que o cumpra para o bem deste mundo e a glória de nosso Senhor.
São Leopoldo, 4 de junho de 2002