ASPECTOS HUMANOS NA VIDA DE LUTERO
Martin N. Dreher
Lutero foi pessoa muito humana, que via toda a sua vida entre Deus e o diabo. Sua vida está plena de altos e baixos, alegrias e tristezas, saúde e doença, confiança e desespero, salvação e inferno. Em suma: sua vida foi muito humana, muito próxima de nós. Intento, aqui, através de uma coletânea de palavras suas, deixá-lo falar sobre essa sua vida. Estas palavras são tomadas, principalmente, de suas conversas à mesa, que foram anotadas por alunos seus, ao longo de sua vida.
1. NASCIMENTO E INFÂNCIA
Martim Lutero nasceu a 10 de novembro de 1483, na localidade de Eisleben, na Alemanha. Sobre a sua infância, ele próprio narra o seguinte:
Sou filho de um colono; meu bisavô, meu avô, o pai foram verdadeiros colonos. Como [Melanchthon] disse, eu deveria ter-me tornado um regedor, um alcaide e o que mais existe numa aldeia, ter vindo a ser algum servidor superior sobre os demais. Posteriormente meu pai mudou-se para Mansfeld, tornando-se, ali, um mineiro. Eu venho de lá. Que eu viesse a me tornar bacharel e mestre, que depusesse o barrete marrom e o deixasse para os outros, tornando-me monge, provocando, com isso, grande desonra, o que aborreceu meu pai amargamente, e que, mesmo assim, me pegasse com o papa e ele comigo, que eu tomasse por esposa a uma monja fugida — quem leu isso nas estrelas? Quem ter-me-ia profetizado isso? (WA TR 5,6250.)
Descendente de agricultores e de mineiro, Lutero teve educação severa quando criança, em um lar no qual a devoção principal estava centrada em Santa Ana, a santa dos mineiros.
Lutero veio a falar de crianças, dizendo que não se lhes deveria permitir ladroíces; no entanto, dever-se-ia agir com moderação. Em se tratando de cerejas, maçãs e assemelhados, não se deveria castigar tão severamente tais peraltices. No entanto, caso alguém tomar dinheiro, roupas ou a arca, ar está na hora de castigar. ¨Meus pais me mantiveram em rigorosa ordem, a ponto de me intimidarem. Minha mãe bateu-me até correr sangue por causa de uma única noz. Em última análise, através desta dura disciplina, compeliram-me a entrar no convento, mesmo que tenham tido as melhores intenções; com isso eu só fui intimidado. Eles não conseguiam manter a proporção correta entre a disposição natural e os castigos. Deve-se castigar de tal maneira que a maçã permaneça junto da vara.¨ (WA TR 3,3566 A.)
Não foram as surras que levaram Lutero a se tornar monge. Houve motivos mais profundos que o levaram a tomar tal decisão1. Fato é que Lutero, depois de haver já muito jovem iniciado seus estudos — alguns autores falam de que teria ido para a escola aos quatro(!) anos2 foi para a cidade de Erfurt estudar Direito. A decisão seguia intenção do pai, o qual queria assegurar um ¨bom futuro¨ para o seu filho. Jurista, este poderia ser secretário de algum príncipe. A coisa saiu diferente. Por trás da mudança da decisão ou orientação do jovem Lutero estão dois acontecimentos, dos quais o próprio Lutero fala:
Ao viajar para sua terra natal, a caminho, sem querer bateu com a coxa contra a espada, lesionando a artéria principal. Na ocasião encontrava-se sozinho no campo, na companhia de apenas uma pessoa, distante de Erfurt como Entzsch de Wittenberg, uma meia milha. O sangue correu violentamente e não podia ser estancado. Quando comprimiu o dedo contra a ferida, a coxa inchou muito. Finalmente conseguiu-se trazer um médico da cidade, o qual pensou a ferida. Ali encontrou-se em perigo de vida e gritou: ¨Ó Maria, ajudai¨ ¨Naquela oportunidade¨, disse ele, ¨eu teria morrido em Maria.¨ — Depois, durante a noite, na cama, a ferida abriu mais uma vez; ele quase sangrou e invocou novamente a Maria. Era a terça-feira após a Páscoa. (WA TR 1, 119.)
O outro texto diz:
A 16 de julho, no dia de Aleixo, disse ele: ¨Hoje faz anos que ingressei no convento de Erfurt.¨ — E começou a contar a história, de como fizera um voto, quando cerca de 14 dias antes se encontrara a caminho e fora de tal maneira aterrorizado por um raio perto de Stotternheim, não muito distante de Erfurt, que, assustado, gritara: ¨Ajuda, santa Ana, quero tornar-me monge!¨ — Naquela ocasião, porém, Deus entendeu meu voto em hebraico: Ana, i. é, sob a graça, não sob a lei. Depois, arrependi-me do voto, e muitos me desaconselhavam. Eu, porém, permaneci firme, e no dia antes de Aleixo convidei os melhores amigos para a despedida, para que me acompanhassem no dia seguinte até o convento. Quando me quiseram reter, disse: ¨Hoje vocês me vêem pela última vez.¨ Ar eles me acompanharam sob lágrimas. Também meu pai estava furioso por causa do voto, mas eu permaneci firme em minha decisão. Jamais pensei em abandonar o convento. Eu havia morrido para o mundo. (WA TR 4, 4707.)
2. NO CONVENTO
Assim, a 16 de julho de 1505, Lutero ingressou no Convento Negro dos Agostinianos Eremitas, em Erfurt. Por trás deste ingresso no convento há mais do que invocação de Maria e promessa a santa Ana. O Lutero que entrou no convento era uma pessoa aterrorizada, atormentada pelo medo do inferno, pela incerteza quanto à salvação. Inteligente e acompanhado de perto por seus superiores, Lutero fez seus votos monásticos, em 1506. Já no ano seguinte, a 4 de abril de 1507, foi ordenado sacerdote, rezando sua primeira missa a 2 de maio de 1507. Nesta ocasião encontrou-se com seu pai. Uma anotação de suas conversas à mesa diz:
Tornou-se monge totalmente contra a vontade do pai. Quando celebrou sua primeira missa e perguntou o pai por que estava desgostoso com sua decisão, este lhe respondeu, à mesa: ¨Não sabeis que está escrito: Honra pai e mãe?¨ Como se desculpasse, dizendo ter sido assustado de tal maneira pela tempestade que se tornara monge sob pressão, respondeu: ¨Cuidai, para que não tenha sido um fantasma!¨ (WA TA 1.623.)
As palavras do pai certamente não o auxiliaram. No convento, Lutero continuava preocupado com sua salvação. Fez uma viagem a Roma. A viagem não o escandalizou, mas também não o auxiliou a resolver suas angústias.
Um dos meios de que a Igreja dispunha para auxiliar as mentes atribuladas por seus pecados era a confissão auricular. Lutero fez muitas vezes uso dela. Houve períodos em que chegou a se confessar várias vezes em um só dia. Diz ele:
Na confissão auricular, os papistas só olhavam a obra externa. Corria-se tanto que não se conseguia confessar o suficiente. Quando nos lembrávamos de mais um pecado, voltávamos, de modo que o sacerdote me disse em certa oportunidade: ¨Deus ordenou que confiássemos em sua misericórdia; vai em paz!¨ E o doutor Jerônimo Schurff ouviu tanta pregação que por três vezes fugiu do sacramento para o sacerdote. Inclusive, ao recebê-lo no altar ainda lhe disse ao ouvido um de seus escrúpulos. Cansávamos os confessores, enquanto que eles nos atemorizavam com suas absolvições condicionais: ¨Absolvo-te pelo mérito de Nosso Senhor Jesus Cristo, por causa da contrição do coração, da confissão da boca, da satisfação de tuas obras e da intercessão dos santos, etc.¨ A condição provocava todo o desastre. Pois fazíamos tudo isso por temor a Deus, para sermos justificados — cumulados de incontáveis regulamentos humanos. (WA TR 5,6017.)
Ou ainda:
Quando eu era um monge escrevi muitas vezes ao doutor Staupitz. Certa vez escrevi-lhe: ¨Oh, meu pecado, pecado, pecado!¨ Ar ele me respondeu: ¨Queres ser sem pecado e não tens pecado verdadeiro! Cristo é o perdão para os verdadeiros pecados, como assassinar os pais, blasfemar publicamente, desprezar a Deus, cometer adultério, etc.; estes são os verdadeiros pecados, Tens que ter um registro, no qual se encontrem verdadeiros pecados, caso Cristo te deva auxiliar; não deves andar por aí te preocupando com obras mal feitas e pecados de boneca, e fazendo de cada peido um pecado!¨ (WA TR 6,6669.)
O texto mostra-nos toda a angústia de Lutero e, também, sua busca por salvação. Angustiado, assim como outros contemporâneos seus, Lutero, cheio de dúvidas, foi indicado para ser professor de Filosofia na Universidade de Wittenberg, na época uma cidade insignificante, com dois mil habitantes. Pouco mais tarde, também teve que começar a dar aulas de Bíblia, em substituição a seu superior João von Staupitz. Foi na luta com a Bíblia que Lutero fez uma descoberta sensacional: a causa de suas dúvidas e angústias já tinho sido assumida por Jesus na cruz. A ele só cabia fazer uma coisa: aceitar, confiadamente, que em Cristo estava sua salvação. Além disso, ele tinha dois sinais, nos quais ficava evidente o que ele já tinha, o Batismo e a Santa Ceia.
Lutero falou disso muitas vezes. Ouçamos, aqui, um dos seus relatos:
¨Não me envergonho do Evangelho; nele se revela a justiça de Deus.¨ Isto não me safa da mente. Não conseguia entender essa palavra, ¨justiça de Deus¨, sempre que a encontrava na Escritura, de outra maneira do que como a justiça através da qual ele próprio era justo e julgava tudo com justiça, etc. Bati-me com ela por algum tempo com crescente veemência. Ali estava eu e batia, para ver se alguém me abria — mas não havia ninguém que me abrisse. Não compreendia o que significava, até que continuei a ler: ¨O justo viverá na [da] sua fé.¨ Esse dito é a explicação daquela justiça de Deus. Quando descobri isso, alegrei-me com tal júbilo, que nada havia que o suplantasse. Com isso abriu-se o caminho, quando li nos Salmos: ¨Salva-me em tua justiça¨ — antes: ¨Salva-me em tua misericórdia!¨ Antes eu me assustava e odiava os Salmos e a Escritura, onde falavam da ¨justiça de Deus¨, i, é, da justiça com a qual ele próprio era justo e julgava de acordo com os nossos pecados, não aquela com a qual nos aceitava e tornava justos. Toda a Escritura apresentava-se como um muro, até que se me abriu o sentido, quando ¨O justo viverá na [da] sua fé.¨ Com isso, aprendi que a justiça de Deus é a fé em sua misericórdia, através da qual ele próprio nos justifica, através da dádiva de sua graça. (WA TR 5, 5553.)
Lutero cita neste texto, por diversas vezes, a palavra de Rm 1.16s., um texto que veio a se tornar querido para ele e para toda a Igreja Luterana. A Reforma começa com a descoberta desse texto. É com ele que Lutero terá a alavanca para fazer muitas transformações.
3. CHOQUES
O primeiro dos choques, por causa da nova descoberta, é a discussão em torno das indulgências, que provoca a publicação das 95 teses, de 31 de outubro de 1517. Que são indulgências? ¨Indulgência¨ é o nome que se usa na cristandade medieval para designar a diminuição ou substituição de penas impostas pela Igreja às pessoas que haviam confessado sua culpa e que deveriam realizar penitência. Nos dias de Lutero estava em uso uma prática, bastante discutida, segundo a qual os castigos penitenciais podiam ser substituídos por pagamentos em dinheiro. No confessionário, Lutero ficou sabendo dessa prática, pois agricultores haviam vendido suas propriedades para poderem alcançar tal perdão, dando ouvidos aos vendedores de indulgência, os quais anunciavam que a indulgência papal não só daria remissão para os castigos impostos pela Igreja, mas também para todo pecado que viesse a ser cometido no futuro. Lutero diz que não foi por iniciativa própria que entrou nessa discussão:
Sem o meu conhecimento fui jogado por Deus no serviço do Evangelho. Se tivesse previsto o que agora experimentei, de modo algum ter-me-ia deixado empurrar para tanto. Mas a sabedoria de Deus é maior que a dos seres humanos. Ele simplesmente me ofuscou assim como se ofusca um cavalo que se quer montar na pista. Por isso, (…) quando comecei, disse a nosso Senhor Deus com grande seriedade e de todo o coração em minha cela: se quisesse começar alguma brincadeira comigo, que o fizesse sozinho e que me preservasse para que eu não misturasse a mim, isso é, minha própria sabedoria. Essa oração ele ouviu poderosamente. Que ele continue a conceder graça! (WA TR 1,1206.)
Lutero entende, pois, sua luta pelo Evangelho como obra de Deus e não como mérito próprio. Acerca de sua discussão com Tetzer, um pregador de indulgências dominicano, um dos seus comensais anotou o seguinte:
Naquela época, Tetzel trouxe a indulgência a Jüteborg, pois o príncipe-eleitor não o queria admitir aqui (em seu território). Ali, muito povo ouviu o Tetzel e levou para casa o que ouvia, mais ou menos o seguinte: se alguém tivesse violentado a Virgem Maria, minha indulgência o auxiliaria, e: tenho comigo mais plenos-poderes do que os que tinham Paulo e Pedro! Abalado por tais discursos ímpios, o doutor começou a desaconselhar a indulgência ao povo, foi para casa refletir, revolveu livros, interrogou juristas, vendo, porém, que na indulgência nada havia de sadio e confiável. Por isso, fez teses: ¨Nosso Senhor e Mestre¨, etc. Não fez isso para atacar o papa, mas para fazer frente ao palavrório blasfemo dos charlatães. (WA TR 5,5349.)
A sorte estava lançada. Lutero não quis romper com o papa. Quem lê as 95 teses, de 1517, nota que ele está longe disso. mas as coisas saíram diferentes. Adversários da Ordem Dominicana denunciaram-no em Roma. Para outros, a autoridade da igreja estava sendo questionada por Lutero. Em 1518, ele teve que apresentar-se ante o representante do papa, Caetano, em Augsburgo. O certo teria sido que ele fosse a Roma, mas seus amigos o desaconselharam. O próprio príncipe-eleitor, Frederico o Sábio, não permitiu que viajasse e conseguiu que Lutero fosse ouvido na Alemanha. rodos se recordavam que no século anterior João Hus fora queimado em Constança, depois de se apresentar ao papa. Lutero foi com medo para Augsburgo. Sua figura é muito humana. É errôneo querer-se vê-lo sempre como pessoa destemida:
Na viagem tive o sentimento: agora tenho que morrer. E imaginei-me a fogueira pronta, e disse muitas vezes: Ah, que vergonha hei de ser para meus queridos pais! De tal maneira me amedrontava a carne. E o duque Frederico mandou-me a pé para Augsburgo, acompanhado por um irmão; deu-me 20 florins vermelhos na bolsa. (WA TA 2,2668 b.)
Na conversa com o cardeal Caetano, Lutero não negou o que havia afirmado. Quando este o ameaçou, dizendo que ninguém o iria proteger, e lhe perguntou: ¨Onde vais ficar?¨, querendo dizer que nem sequer morada teria, Lutero respondeu: ¨Sob o céu.¨ (WA TR 3,3857.)
Como era a aparência exterior de Lutero nesse encontro com Caetano? Temos uma palavra do cardeal a esse respeito: ¨Esse frei tem olhos fundos; é por isso que também tem fantasias tão estranhas na cabeça.¨ (WA TR 2,2327.) Na época, Lutero era magro, esquelético. Voltou para Wittenberg, quase sem proteção. Nos meses seguintes teve que se defender de ataques, dar aulas, pregar. Em 1520 seriam publicados quatro de seus livros básicos: Da liberdade cristã, Do cativeiro babilônico da Igreja, Das boas obras, À nobreza cristã de nação alemã, acerca do melhoramento do estamento cristão.
Em 1521 teve que se apresentar ante o imperador Carlos V, na cidade de Worms. Em dezembro de 1520 recebera a bula de ameaça de excomunhão, queimando-a numa reunião com estudantes, ante um dos portões da cidade de Wittenberg. Rompia com Roma. Em janeiro de 1521 foi excomungado. O papa declarava-o fora da Igreja. Agora, em Worms, deveria ser declarado fora do Estado, isto é, perderia seus direitos de cidadania e seria declarado livre como um passarinho. Quem o encontrasse, poderia matá-lo, sem ser julgado pelo crime. Foi o que aconteceu. O imperador, que lhe dera um salvo conduto até Worms, deu-lhe outro para voltar a Wittenberg. No caminho, pessoas ligadas ao príncipe Frederico ¨seqüestraram-no¨, levando-o para o castelo de Wartburg. Ali, Lutero experimentou solidão. Suas angústias apresentam-nos um aspecto muito humano de sua vida. Não podia conversar com ninguém, para não ser descoberta sua identidade. Teve que deixar desaparecer sua tonsura, a barba cresceu e passou a adotar o nome de cavaleiro Jorge. Nesse período em que experimentou angústia, solidão e tentação, Lutero traduz o Novo Testamento, interpreta o Cântico de Maria, escreve sobre os votos monásticos. O tempo todo, porém, sente-se acossado pelo diabo. Aos amigos e estudantes, ele contará mais tarde:
Muitas vezes Satanás me atormentou com suas aparições naquele castelo, no qual por certo tempo fui mantido preso. Tomava as nozes de sobre a mesa e jogava-as ininterruptamente contra o forro, a noite toda. (WA TR 3,2885.)
Em meu cativeiro, em [meu] Patmos, lá no alto no castelo no reino dos pássaros fui, diversas vezes, atormentado [pelo diabo]. Resisti-lhe na fé e enfrentei-o com a palavra: Deus é meu, aquele que criou o ser humano, e todas as coisas ‘oram postas [por Deus] sob os seus pés. Se tens um poder sobre isso, tenta-o! (WA TR 3,3814.)
Na solidão, interpretando o Cântico de Maria, Lutero formulou uma bela passagem, na qual podemos ver como ele percebe, sente e fala de Deus:
Os olhos de Deus só olham para a profundidade e não para a altura. (…) Pois como ele é o Supremo e não há nada acima dele, não pode olhar para cima de si; ele também não pode olhar para os seus lados, porque ninguém lhe é igual. Por isso, ele tem que, necessariamente, olhar para si e para [o que está] abaixo de si, e quanto mais abaixo dele alguém estiver, melhor ele o verá. No entanto, os olhos do mundo e dos seres humanos fazem o contrário: só olham acima de si e querem orientar-se apenas para cima, como lemos em Pv 30.13: ¨É um povo cujos olhos olham para as alturas, e suas sobrancelhas estão voltadas para o alto!¨ („ . .) Em contraposição, ninguém quer olhar para as profundezas, onde há pobreza, desonra, necessidade, aflição e medo; ar, todo o mundo afasta os olhos. (…) Onde, porém, se experimenta que ele é um Deus que olha para as profundezas e que auxilia apenas os pobres, desprezados, miseráveis, lastimáveis, abandonados e àqueles que nada são, ar a gente passa a amá-lo de tal maneira que o coração derrama de alegria, saltita e pula por causa da grande misericórdia que alcançou em Deus. (…) Por isso, ele lançou seu único e mais amado filho Cristo nas profundezas de toda a miséria e evidenciou nele de maneira toda especial qual o alvo de seu ver, agir e auxiliar, sua maneira de ser, sua deliberação e vontade. (WA 7, 547-8.)
Deus é sempre o Deus que vem em busca do ser humano, para encontrá-lo ali onde ele se encontra. Quando o ser humano tenta encontrar a Deus, subindo até ele, vai haver desencontro, pois Deus não vai estar ¨em cima¨, ele vai estar ¨em baixo¨. Por isso, o único lugar onde podemos ser encontrados por Deus é ¨em baixo¨, nas profundezas, na miséria. É ali que Deus assume o que nós somos e temos para que nós possamos ter o que é dele: ele assume nosso pecado e culpa, nós recebemos a bem-aventurança; ele se faz pecado, para que nós possamos ser justificados. A isso Lutero chama de ¨troca maravilhosa¨.
Cristo é Deus e homem, mas jamais cometeu pecado. Sua justiça é invencível, eterna e onipotente. Ao apropriar-se Cristo do pecado da alma crente em virtude do anel de bodas, isto é, por sua fé, é como se Cristo mesmo houvesse cometido o pecado; resulta dar que os pecados são absorvidos por Cristo e permanecem nele, pois não há pecado capaz de resistir à invencível justiça de Cristo. Deste modo a alma se vê limpa de todos os pecados, em virtude da aliança de bodas, ou seja, a alma é libertada pela fé e dotada com a justiça eterna de seu esposo, Jesus Cristo. Não é acaso um lar feliz, que Jesus Cristo, o noivo rico, nobre e justo, se case com uma insignificante rameira, pobre, desprezada e má, tirando-a desta forma de todo o mal e adornando-a com toda espécie de bens?3
A partir dessa ¨troca maravilhosa¨, o cristão, mesmo continuando nessa vida, mesmo enfrentando dificuldades, sabe que é de Cristo e tem o que Cristo lhe conferiu: a bem-aventurança. Consequentemente, ele não precisa mais ficar se preocupando com o céu, pois este já lhe foi dado. Sua preocupação vai se voltar para essa terra, criação de Deus, e para as criaturas de Deus. O cristo não precisa mais de boas obras para ¨se salvar¨, mas faz, agora, boas obras de salvação do mundo e das criaturas. Em um mundo em que o diabo está à solta, o cristão faz parte da vanguarda de Deus que luta para que esse mundo continue a ser a boa criação de Deus.
O poder do diabo e do anticristo é que estão impedindo aquilo que serve para o melhoramento da cristandade. Por isso não se deve obedecer-lhe, e sim resistir com corpo e bens e com tudo que pudermos.4
A esta atividade cristã para o melhoramento do mundo, Lutero denominou de ¨sacerdócio real de todos os crentes¨. Este sacerdócio é exercido em todos os campos da vida humana. Não é por acaso que Lutero cunhou a palavra alemã Beruf, a qual nós temos que traduzir com duas palavras: ¨vocação-profissão¨. Minha profissão é a vocação de Deus: Deus foi quem me chamou para o lugar de trabalho em que me encontro. Neste trabalho desempenho minha função de sacerdote, na luta contra o diabo. Por isso, não existem mais profissões-vocações sagradas ou profanas. Tudo é sagrado, porque vem de Deus a pessoa que age num determinado lugar.
Até agora, as pessoas que procuravam por salvação fugiam das vocações profanas, para entrar em um convento. Pais que temiam por sua salvação encaminhavam filhos aos conventos, para que estes orassem por eles após a sua morte. Foi isso o que aconteceu, por exemplo, com Catarina von Bora, que mais tarde viria a se tornar esposa de Lutero.
4. DEPOIS DE WARTBURG
Ao deixar o castelo de Wartburg, em março de 1522, e retomar para Wittenberg, onde teve que apaziguar os ânimos exaltados daqueles que pretendiam uma reforma mais rápida e radical da Igreja, Lutero viu-se confrontado com inúmeras questões. Desde 1523 voltou a lecionar. Neste mesmo ano elaborou uma ordem evangélica para o culto. Nos anos seguintes, 1524 e 1525, viu-se envolvido com a Guerra dos Camponeses. Suas posições neste caso são bastante discutíveis. Temos diante de nós um Lutero que vai perdendo o controle do movimento reformatório e que, por vezes, esbraveja. O período é também tempo de incessante produção literária.
No ano de 1525, mais precisamente a 13 de junho, Lutero contrai matrimônio com Catarina von Bora. Inicia-se aqui um período na vida de Lutero no qual podemos talvez experimentá-lo em seu lado mais humano, como esposo e pai.
Perguntemo-nos como chegou a ocorrer esse casamento e como ele foi no dia-a-dia. Para responder a essa pergunta é necessário que falemos um pouco sobre Catarina von Bora.
Acima afirmamos que uma das principais descobertas de Lutero foi a de que não valemos perante Deus pelo que fazemos, mas peio que ele fez por nós. Motivados por essa descoberta, muitos dos amigos de Lutero, clérigos e monges começaram a casar. O próprio Lutero concordava que o voto do celibato podia ser rompido, mas não pensava em casar. Estava sobrecarregado com tarefas na Universidade de Wittenberg. Além disso, era pobre, a ponto de não poder pensar em sustentar uma família. Temia que um eventual casamento viesse a trazer maus comentários para o movimento reformatório. Era um homem proscrito; quando fosse apanhado seria morto. Como ligar, nessa situação, sua vida à de uma mulher, que teria que partilhar a sua situação?
Para os amigos, no entanto, estes argumentos não eram suficientemente sólidos. Instavam-no sempre de novo a que assumisse a vida em família. Seus argumentos, no entanto, não o convenciam. Em 1525, Lutero visitou seus pais em Mansfeld, e nessa ocasião o velho João Lutero voltou a instá-lo a que casasse, pois desejava descendentes de seu filho mais velho. Se nos lembrarmos da cena da ordenação de Lutero e de seu diálogo com o pai, haveremos de concordar que o reformador estava em dívida para com o seu pai. Parece-me que foi a insistência do pai que levou Lutero a se decidir pelo casamento. A escolhida foi, como sabemos, a ex-monja Catarina von Bora.
Catarina era filha de cavaleiros arruinados que, por não terem condições de proporcionar à filha um dote e estudos, determinaram que seguisse a vida religiosa, confiando-a, aos 9 anos de idade, em 1508, às monjas de Cistér, em Nimbschen. Pensavam os pais que neste convento ela obteria os céus, com uma vida de santidade, para si e para os próprios pais. Pensava-se naquele tempo que a oração de uma monja piedosa, que oferecia sua intercessão por seu pai, mãe ou irmãos, era poderosa, atingindo de maneira especial os ouvidos do Pai celeste. Em uma idade em que crianças brincam, cantam, fazem travessuras, Catarina foi ensinada a caminhar modestamente, a baixar a cabeça, a desistir de todas as alegrias ¨mundanas¨ e a viver em silêncio, a não ter amigas. Catarina não teve bonecas. Passou sua infância, sua adolescência e os primeiros anos de vida adulta no convento.
Também ali, no convento, a ventania que se esboçava em toda a Alemanha não deixou de fazer-se sentir. Fato é que lá pelas tantas algumas monjas já não mais invocavam a Virgem Santíssima para que pusesse fim às atividades do monje rebelde. Duas irmãs monjas, cujo irmão Wolfgang von Zeschau era prior do convento agostiniano em Grimma, encarregaram-se de fazer circular entre as monjas amigas escritos do monge herege, Lutero. Entre esses escritos encontrava-se Da liberdade cristã, onde se lia:
Toda obra que não tenha por fim servir aos demais e sofrer sua vontade (sempre que não se obrigue a ir contra Deus), não será uma boa obra cristã. Por isto suspeito que são poucos os conventos, altares, seminários, igrejas, missas, legados, verdadeiramente cristãos (…). Temo que com isto cada qual procure só para si, pensando expiar seus pecados e conseguir a salvação.5
Para as monjas que liam essas palavras, desmoronavam muitos ideais. Elas que criam estar servindo a Cristo, estavam servindo a si mesmas. E aquela imagem de um lar que sempre de novo haviam afastado de suas consciências não era algo condenável: uma casa na qual vivessem com o esposo, cuidando de filhos, servindo a Deus na vida diária, pois é no serviço aos filhos que pais servem a Deus. Poderiam elas sonhar com essa vida? Não tinham elas prometido ser eternamente noivas de Cristo? Poderia essa promessa ser rompida? A resposta foi encontrada em um outro escrito de Lutero: Dos votos monásticos. Ali, Lutero vai afirmar que buscamos nossa justificação tão-somente na fé. Quando monges e celibatários buscam sua justificação em obras e abstinências,
seguem um falso caminho. As promessas que se fizeram quando se desconhecia a verdade não podem prender ninguém. Caso tivéssemos conhecido a verdade, não teríamos feito tais promessas, sabendo que a salvação eterna e a justificação não obtemos por seu intermédio. Votos eternos são contra a liberdade que Cristo nos conquistou e, por isso, condenáveis6.
Nove foram, então, as monjas que se dispuseram a abandonar o convento. A decisão que tomaram não foi fácil, A ¨monja fugida¨ era uma das pessoas mais desprezadas na sociedade de então. Não era mais ¨gente decente¨. Escreveram a pais e parentes, pedindo seu auxílio; não obtiveram resposta. Resolveram, então, escrever ao próprio Lutero. Este, que não deixava de atender qualquer pedido a ele dirigido, conseguiu que um comerciante de Torgau, Leonardo Koppe, em uma de suas viagens ao convento de Nimbschen, auxiliasse as monjas a fugir. Isso aconteceu na noite do sábado de aleluia, 5 de abril de 1525.
A 8 de abril de 1523, Lutero escreveu a um amigo:
Ontem hospedei em minha casa nove monjas do convento de Nimbschen, as quais fugiram de seu cativeiro! Entre elas encontram-se duas von Zeschau e uma von Staupitz! (WA Br 3, 53.)
O que fazer com as monjas? Lutero era pobre qual rato de igreja. Escreveu aos familiares das monjas, mas não obteve resposta. Junto aos moradores de VVittenberg foi mais bem sucedido, pois conseguiu colocar as ex-monjas em casas de família. Catarina von Bora veio a residir na casa de mestre Felipe Reichenbach. Ali ficou conhecendo as lides de um lar.
Lutero procurou maridos para as monjas. Catarina conhecera um estudante de Nürenberg; a família deste, no entanto, posicionara-se contra o casamento com a ex-monja. Lutero procurou por outros pretendentes; houve recusa da parte de Catarina. Lutero viu nisso mera teimosia feminina e mandou dizê-lo por intermédio de um amigo. Ela, então, mandou dizer que se o pretendente fosse Lutero, ela o aceitaria. Lutero tinha, então, 42 anos.
O casamento deu-se a 13 de junho de 1525. O antigo convento agostiniano de Wittenberg, onde Lutero viera a morar como jovem monge e professor universitário, veio a se tornar o lar do casal. Seu lar, exteriormente, nada tinha de agradável. Era uma construção inacabada, projetada para abrigar 40 monges. Agora, veio a se tornar um lar sem qualquer luxo. Quatorze anos mais tarde, Lutero faria uma confissão:
Se há 14 anos tivesse querido casar, na ocasião teria escolhido a mulher de Basílio, Ave von Schönfeld. Não Unha queda pela minha; sempre tive a desconfiança de que fosse orgulhosa, mas Deus quis assim que eu tivesse misericórdia da abandonada. Pela graça de Deus foi-me destinado um matrimônio sobremaneira feliz. Tenho uma esposa fiel, segundo o provérbio de Salomão: ¨O coração de seu esposo pode nela confiar.¨ Ela não me desaponta. Ah, querido Deus, o matrimônio não é uma coisa natural ou carnal, mas é uma dádiva de Deus, a vida mais doce, mais casta, acima de todo o celibato. No entanto, se sair mal, é o inferno. Mesmo que, geralmente, todas elas entendam a arte de prender seus maridos com choro, mentiras e insinuações, e saibam torcer a coisa muito bem, verdade é que quando estas três partes: fé, filhos e sacramento, persistem no matrimônio, tudo se arranja da maneira mais feliz. (WA TR 4,4786.)
Para o ex-monge que vivera 42 anos de vida celibatária, o matrimônio, no início, foi coisa muito estranha:
O primeiro ano de matrimônio faz com que a gente [o marido] tenha pensamentos singulares. Quando está sentado à mesa, pensa: antigamente estavas só, agora a dois; ao acordar na cama, vê um par de tranças deitadas a seu lado, coisa que antigamente não via. (WA TR 3,3178 b.)
O matrimônio de Lutero e Catarina não foi aquilo que possamos designar de um romance de amor. No entanto, o amor foi surgindo paulatinamente naquele lar de Wittenberg. Em 1531, Lutero afirmaria:
Não trocaria minha Käthe pela França e por Veneza de brinde. Primeiro, porque foi Deus quem ma deu e me deu a ela; depois, porque experimento muitas vezes que outras mulheres têm mais defeitos que minha Käthe (mesmo que também tenha alguns, opõem-se-lhes virtudes muito maiores); terceiro, porque ela preserva a fé do matrimônio, que é fidelidade e honra. Assim, inversamente, também a mulher deveria pensar a respeito do marido. (WA TR 1,49.)
Num ponto, o matrimônio de Lutero e Catarina não foi diferente dos demais; também eles experimentaram instantes de tensão e de desentendimento na vida matrimonial. Um de seus comensais anotou o seguinte:
¨Se posso agüentar a ira do diabo, do pecado e da consciência, também agüento uma ira da Catarina von Bora. Com reclamações ninguém há de conseguir alguma coisa junto a mim.¨ Foi o que disse, quando certa vez havia brigado com sua mulher por causa de uma coisa de nada. (WA TR 1,255.)
Ao fado de Catarina, Lutero aprendeu a perceber que a fidelidade matrimonial é dádiva de Deus. Notamos isso em uma outra colocação de sua parte:
Se alguém tem graça e paz no matrimônio, isso é urna dádiva que mais se aproxima do conhecimento do Evangelho. Encontramos muitos casais sem amor, que não se preocupam com os filhos nem se amam; esses já não são seres humanos. Esta é a maior graça: ter um consorte fiel, ao qual se pode confiar tudo, com o qual se pode gerar filhos. Deus empurra muitos para o matrimônio, sem perguntá-los, e age bem. Käthe, tens um bom esposo, que te ama; és uma imperatriz. Reconhece-o e agradece a Deus por isso! (WA TR 1,1110.)
Esta e outras palavras do reformador, que já pudemos citar, mostram-nos como conta com a presença de Deus no matrimônio. Em um conselho que deu a Veit Dietrich (1506-1549), seu secretário e, durante muitos anos, comensal, Lutero mostra ainda a importância da oração para a vida matrimonial:
No estado matrimonial há estas três partes: o desejo natural pelo sexo, depois o gerar filhos e descendência, além disso o morar debaixo do mesmo teto e a fidelidade mútua. E, mesmo assim, o diabo pode destroçá-lo de tal maneira que em nenhum lugar se encontre ódio mais amargo. Isso procede do fato de começarmos todas as coisas sem oração e com arrogância. Se uma pessoa jovem e piedosa quer casar, deve dizer: à Deus, concede graça para tanto! Mas isso não acontece. (…) Começam tudo com arrogância. (…) Por isso, querido Mestre Veit, fazei como eu! Quando quis casar com minha Kãthe, roguei-lhe seriamente; fazei isso também! Jamais lhe pedistes com seriedade. (WA TA 1,185.)
As palavras de Lutero que vimos até aqui mostram-nos que em seu lar se vivia a partir da confiança em Deus. Um ano após o seu matrimônio, Lutero escrevia a seu amigo Espalatino:
Sim, minha formidável esposa, minha querida mulher, deu-me, com a bênção de Deus, um filhinho, Joãozinho Lutero. Pela maravilhosa graça de Deus tornei-me pai! (WA Br 4,89.)
Nascera o primogênito. Em muitas cartas, Lutero iria escrever a amigos, dizendo que a criança é um ¨homem voraz e bebedor (de leite)¨. Até o primeiro dente aparece em uma carta:
Meu Joãozinho vos saúda, está no mês do primeiro dente, começa a balbuciar ¨papa¨ e briga e resmunga como todo o mundo. (…) O fruto e a alegria do matrimônio, do qual o papa e seu mundo não foram dignos. (WA Br 4,151.)
Seu filho é, agora, a coisa mais importante do mundo. A 10 de dezembro de 1527, Joãozinho ganharia uma irmã de nome Elisabete, pequena planta que vai ser tirada da família em agosto do ano seguinte. Lutero e Catarina choram:
Faleceu-me minha filhinha Elisabete. Meu coração está doente e quase feminino, tanto me lamento. Outrora não pude crer que o coração de um pai pudesse vir a amolecer de tal maneira em relação a seus filhos. (WA Br 4,511.)
A dor seria superada pelo nascimento de outra menina, talvez a mais amada das crianças de Lutero, Madalena, nascida a 4 de maio de 1529, e para a qual Lutero mais tarde comporia o hino natalino ¨Eu venho a vós dos altos céus…¨. Dela, Lutero escreveria: ¨Ela se assemelha muitíssimo ao irmão, Joãozinho, na boca, olhos e nariz.¨ Dois anos mais tarde, nasceria, a 9 de novembro de 1531, mais um menino: Martim. Observando, certo dia, como Catarina tentava colocar as fraldas no menino e este se debatia, Lutero comentou: ¨Grita e defende-te! O papa também me amarrou, mas agora estou livre!¨ A 28 de janeiro de 1533 nasceria Paulo e no Natal de 1534 mais uma menina que receberia o nome da mãe do reformador: Margarete. A casa estava cheia de vida e de alegria. Em 1532, Lutero diria em uma de suas conversas:
Sou mais rico que todos os teólogos papistas em todo o mundo, pois estou contente. Além disso tenho três crianças legítimas; isso nenhum teólogo papista tem. (WA TR 2,2579.)
Os filhos ficaram sendo para Lutero ¨pregadores¨ de Deus. Deles é que vinham as lições para o professor universitário. Um exemplo: observou, certo dia, as crianças em torno da mesa, sobre a qual havia pêssegos, maçãs e peras. Viu seus olhos brilhando, aguardando a hora em que a mãe fizesse a distribuição, e comentou: ¨Quem se alegra com a esperança tem aqui um belo retrato. Como seria bom, se pudéssemos esperar pelo dia final com tal esperança.¨
No Salmo 2.11, Lutero leu as palavras: ¨Alegrai-vos com tremor¨ e não as conseguia entender. Quem treme não pode estar alegre e quem se alegra não treme. Joãozinho brincava em seu quarto de trabalho e cantava a plenos pulmões, sem pensar que poderia estar atrapalhando os estudos do pai. Este pediu de maneira algo brusca que ficasse quieto, mas o menino continuou a cantar, mais baixo, é verdade, fitando o pai com olhos inquiridores, como se quisesse perguntar: ¨Assim dá pra continuar, nó? Assim não incomodo!¨ Aí Lutero entendeu o Salmo: ¨Assim é que sempre devemos ter a Deus diante dos olhos — com alegria e tremor.¨
Quando as crianças já estavam maiores, Lutero orava com elas, cedo, os Dez Mandamentos, o Credo, o Pai Nosso e um Salmo. Aos domingos reunia, em torno da mesa, a esposa, os filhos, os estudantes hóspedes e quem mais se encontrasse na casa para o estudo da Palavra. Mais tarde, ao saberem ler, as crianças tinham que ler, após a oração de mesa, um trecho da Escritura.
Lugar de destaque tinha nessa casa a alegria. No amplo pátio do antigo convento, os meninos andavam em seus cavalinhos de pau, as meninas brincavam com bonecas. No pomar havia ameixas apanhadas pelo pai e dadas aos filhos. Lutero chegou, inclusive, a montar uma cancha de boião para brincar com as crianças. Mas, se houve uma coisa com que Lutero presenteou sua esposa e seus filhos, essa foi a música. A ¨Senhora Música¨ sempre foi o seu maior consolo. Sabia tocar o alaúde e cantava com alegria e prazer os hinos que compunha. Nessa casa surgiram hinos como ¨Eu venho a vós dos altos céus, trazendo anúncio bom de Deus…¨
Com o tempo, outros hóspedes passaram a morar no antigo convento: estudantes, a ¨Muhme Lene¨ (uma parenta de Catarina, também egressa do convento de Nimbschen), e 11 filhos de criação. Para todos, Catarina obtinha (é essa a palavra) o alimento necessário. Plantava e colhia o que plantava. Lutero não conseguia explicar o equilíbrio orçamentário: segundo as suas contas, as despesas eram maiores que a receita. Por trás de tudo estava a sabedoria de Catarina. Pois Lutero não sabia poupar, principalmente em se tratando do próximo: para o próximo sempre tinha algumas moedas. O monge que jamais se preocupara com o dia de amanhã não conseguiu fazer sua essa preocupação ao criar uma família. Quando Muhme Lene se aproximou dele, em certa ocasião, tendo em seus braços um dos filhos de Catarina e Lutero, este abençoou a criança, dizendo:
Vai e sê piedoso. Não te deixarei dinheiro, mas um Deus rico. Esse não deixará que te falte algo. Sê tão-somente piedoso! Que Deus te ajudei (WA TR 3,2848 b.)
Tal confiança em Deus é graça.
Do amor do reformador em relação aos seus filhos dá testemunho uma carta dirigida ao filho João:
Graça e paz em Cristo, meu querido filhinho. Gosto de ver que estás estudando bastante e orando aplicadamente. Continua assim, meu filhinho, e prossegue; quando voltar para casa, levar-te-ei um belo presente. Conheço um lindo e delicioso jardim, em que há muitas crianças que vestem roupas douradas e juntam bonitas maçãs sob as árvores, além de peras, cerejas, ameixas; cantam, correm e são alegres. Também têm lindos pequenos cavalinhos com arreios dourados e selas prateadas. Perguntei o homem, a quem pertence o jardim, de quem eram as crianças. Ele, então, disse: São as crianças que gostam de orar, estudar e são piedosas. AÍ eu falei: Bom senhor, também tenho um filho, seu nome é Joãozinho Lutero, será que ele também pode entrar no jardim para que também possa comer tão belas maçãs e peras e montar tão belos cavalinhos e brincar com as crianças? O homem respondeu: Se gostar de orar, estudar e se é piedoso, também pode entrar no jardim; Lippus e Jost também. E quando todos se reunirem, também receberão flautas, tambores, alaúdes e muitas harpas, dançarão e darão tiros com pequenas bestas.
E mostrou-me ali um bonito gramado, preparado para danças; ali estavam penduradas flautas de ouro, tambores e finas bestas de prata. Mas ainda era cedo e as crianças não haviam almoçado. Por isso não pude esperar pela dança e falei ao homem: Ah, bom senhor, vou embora e quero escrever logo isso a meu querido filho Joãozinho, a fim de que ele ore aplicadamente e aprenda bem e seja piedoso, para que também possa vir a esse jardim. No entanto, ele tem uma tia Lene e essa tem que vir com ele. Ar o homem disse: De acordo, vai e escreve isso a ele. Por isso, querido filho Joãozinho, estuda e ora confiado e dize-o também a Lippus e a Jost para que também estudem e orem. E assim vocês poderão ir juntos ao jardim. Confio-te a Deus todo-poderoso. Saúda tia Lene e dá-lhe um beijo da minha parte. Ano 1530.
Teu querido pai Marfim Lutero. (WA Br 5,377-8.)
Todo o mundo da criança está nesta carta. Ela não irá só ao jardim. Seus amigos estarão com ela, a tia querida não está excluída.
Todo o amor e toda a dor que um pai pode sentir por seus filhos estão expressos no relato que fala da morte da filha Madalena Lutero. Em 1542, Lutero escreveu uma carta ao reitor Krodel, em Torgau:
Ocultai, por favor, a meu filho João o que aqui vos escrevo. Minha filhinha Madalena está nas últimas e em breve nos deixará, indo para o verdadeiro pai no céu, caso Deus não tiver determinado outra coisa. Mas ela própria deseja tanto ver o irmão que tenho que mandar um carro até lá. Eles se amavam muito. Talvez a sua vinda lhe traga melhora. Faço o que posso para que mais tarde minha consciência não me acuse de haver negligenciado algo. Dizei-lhe, pois, sem lhe dar motivo, que venha imediatamente no carro para cá. Ele retornará quando Leninha tiver adormecido ou quando tiver sido devolvida à vida. Vivei no Senhor! Dizei-lhe que se trata de algo que lhe deve ser confiado às escondidas! (WA Br 10,147.)
Aqui há tristeza por causa da morte e preocupação pela dor que a notícia causará ao coração do menino. Há o coração paterno que é movido pela última esperança E, mesmo assim, há a perspicácia do homem vivido.
Quando João Lutero chegou à casa paterna, os pais se encontravam junto ao leito da moribunda. Sabemos que alguns anos antes Lutero e Catarina haviam discutido a respeito da narrativa de Gênesis 22. Na ocasião Catarina opinara: ¨Não posso crer que Deus peça que alguém mate o próprio filho!¨ E Lutero respondera: ¨Não sabes que Deus sacrificou seu próprio filho e o entregou à morte por nossa causa? Imagina o que ele deu!¨ (WA TR 1,522.) Agora, Deus exigia deles o maior sacrifício que Deus pode exigir de pais: a mais amada das crianças, a que mais se lhes assemelhava. Por que?
O quadro que nos foi legado dessa cena é uma das maiores pérolas e um dos maiores consolos que nos foram transmitidos. Milhares de pais tiraram do leito de morte da filhinha de Lutero e de Catarina o consolo para a sua própria situação de dor. Ali encontramos a mais profunda dor e humilde confiança. Choro e consolo a um só tempo. Luta com um coração desesperançoso e consolo através da graça que fortalece o coração no maior desespero. O pai Lutero acompanha Jesus ao Jardim das Oliveiras e aprende a beber o cálice. Por outro lado, transforma-se no cura d’almas que prepara a própria filha para a morte, com carinho e fé: ¨Madaleninha, minha filha, gostarias de permanecer com teu pai! Vais também com alegria para aquele Pai?¨ E a menina respondeu: ¨Sim, querido pai, como Deus quiser!¨ (WA TR 5,189.) São as únicas palavras de Madalena que conhecemos. Tinha 12 anos. Na manhã de 20 de setembro, Madalena morria nos braços do pai. Estando a criança a expirar, Lutero ajoelhou-se e orou, pedindo que Deus a redimisse.
Dias depois, Lutero escrevia ao amigo Justo Jonas:
Deves saber que minha querida filha Madalena renasceu para o eterno reino de Cristo. Minha mulher e eu deveríamos agradecer e alegrar-nos por um fim tão feliz e uma morte tão bem-aventurada. Mas o poder do amor natural é tão grande que não o podemos fazer sem soluçar e sem gemer o coração, sim sem partir o coração. Pois a piedosa, obediente filha que jamais nos incomodou, seu olhar, suas palavras, todo o seu ser, assim como foi na vida e na morte, estão por demais no fundo do coração, que mesmo Cristo não o consegue apagar totalmente como deveria ser. Ela tinha um temperamento doce e ensolarado e era amada por todos. Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo que a chamou, escolheu e glorificou! (WA Br 10,149s.)
No túmulo de Madalena, Lutero mandou talhar as palavras:
Aqui eu durmo, Leninha,
filhinha do doutor Lutero,
descanso com todos os santos
em minha caminha.
Eu que nasci em pecado,
estaria para sempre perdida.
Mas agora vivo e estou bem,
Senhor Cristo, redimida com teu sangue. (WA TR 5,186s.)
Na vida dos pais Lutero e Catarina descobrimos o consolo, a esperança e a confiança que provêm da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.
5. DOENÇAS E MORTE
A vida de Lutero também foi acompanhada por muitas doenças. Sabemos que sofreu muito em virtude de cálculos renais, é provável que tenha tido a gota, teve disenteria, sofria de sinusite, inflamação de ouvidos. Do que mais, no entanto, se queixa são as constantes dores de cabeça. Sabemos também que na velhice sofreu de angina pectoris.
Lutero faleceu em Eisleben, sua cidade natal, a 18 de fevereiro de 1546. Mesmo doente fora para lá, para resolver uma briga entre os condes de Mansfeld. Por ordem de João Frederico, príncipe-eleitor da Saxônia, seu corpo foi trasladado de Mansfeld para Wittenberg, onde foi sepultado na igreja do castelo.
Entre os pertences de Lutero, entre suas anotações dos últimos dias, encontrou-se a seguinte anotação, datada de 16 de fevereiro de 1546:
Ninguém consegue entender a Virgílio nas Bucólicas e nas Geórgicas, a não ser que tenha sido pastor ou agricultor por cinco anos.
Ninguém compreenderá Cícero em suas cartas (assim penso eu), a não ser que tenha se movimentado por 40 anos em um importante Estado.
Ninguém pense haver experimentado suficientemente as Sagradas Escrituras, a não ser que tenha dirigido as igrejas por cem anos com os profetas.
Por isso, trata-se de uma coisa grande e maravilhosa
primeiro, no que toca a João Batista,
segundo, no que toca a Cristo,
terceiro, no que toca aos apóstolos.
Não intentes a Eneida divina, mas inclina-te profundamente, adorando, ante seus vestígios. Somos mendigos. Esta é a verdade. (WA 48,241.)
Para que estas colocações não terminem em resignação, uma palavra de Lutero:
Deus quer que sejamos alegres, e odeia a tristeza. Se nos quisesse tristes, não nos daria o sol, a lua e os outros prazeres terrenos, todos os quais concede para a alegria. Se assim não fora, criaria trevas e não permitiria que o sol continuasse a nascer e que o verão voltasse. (WA TR 1,124.)
Notas
1 Cf. DREHER, Martin N. Temer e amar a Deus e confiar nele acima de todas as coisas. In: org. Reflexões em torno de Lutero. v. 2. São Leopoldo, Sinodal, 1984, p. 147-51.
2 Cf. BOEHMER, Heinrich. Der junge Luther. 3. ed. Leipzig, Köhler & Amelang, 1939, p. 17.
3 LUTERO, Martim. Da liberdade cristã. 3. ed. São Leopoldo, Sinodal, 1979, p. 20.
4 LUTERO, Martinho. À nobreza cristã de nação alemã a respeito do melhoramento do estado cristão. In: COMISSÃO INTERLUTERANA DE LITERATURA, ed. Pelo Evangelho de Cristo; obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Porto Alegre, Concórdia; São Leopoldo, Sinodal, 1984, p. 87.
5 LUTERO, Martim. Da liberdade cristã. 3.ed. São Leopoldo, Sinodal, 1979, p. 46.
6 Cf. De votis monasticis M. Lutheri iudicium. WA 8,573-669.
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