Aspectos Sociológicos do Matrimônio – Um estudo
Gerd Uwe Kliewer
I — Amor que não termina
Não sei de onde veio a afirmação acima que está no Manual de Ofícios da IECLB, proferida no momento da entrega das alianças. Mas ela reflete uma das normas da sociedade moderna relativa ao matrimônio. Ou deve-se dizer, da ideologia da sociedade moderna relativa ao matrimônio? Seja como for, é padrão social reconhecido por todos, que a gente casa por amor. Nem sempre foi assim, ou melhor, na sua maior parte da história da humanidade não foi assim. Casava-se por motivos políticos ou econômicos, p. ex., para firmar alianças, para juntar terra com terra, bens com bens, estabelecer laços entre clãs, garantir apoio mútuo. E em qualquer caso, para garantir a continuidade da estirpe. Casamento era um assunto sério demais para deixá-lo à mercê das paixões e emoções de dois imaturos. Era assunto de toda a família, um contrato econômico e social entre duas famílias. A mulher bela era valorizada, como também a mulher fértil, a mulher hábil e piedosa, a boa trabalhadora. No contrato, esses requisitos pesavam. Mas o amor entre os cônjuges era de importância reduzida. Podia ser um acessório agradável, mas a sua falta não invalidava o contrato.
Mas a sociedade moderna, nos últimos 200 anos, estabeleceu a norma do amor como base suficiente para o matrimônio. Quaisquer outros motivos são inconfessáveis. Pode alguém casar para usufruir a riqueza do parceiro ou compartilhar a posição social dele; se ele ou ela admitir isto, sofrerá a repreensão de toda a sociedade. Que vem a ser este amor que, supostamente, garante um bom matrimônio? É a atração física, o bom entendimento corporal de um casal? Colocando isto a um casal de noivos, certamente eles insistirão em que o amor deles é muito mais. É o entendimento de duas almas o mentes, o encontro de ideias, sonhos e perspectivas de duas pessoas? Sim, mas não é o suficiente. É o turbilhão de sentimentos, emoções e paixões que arrebata as pessoas e pode, em casos extremos, levá-las até ao suicídio? A experiência mostra que esse turbilhão é temporário.
Mas será que é necessário definir o amor? O importante é que ele exerce a sua função, que pessoas casam movidos pelo amor, mantêm o matrimônio na base do amor, geram e criam filhos, apoiam-se mutuamente. É um conceito, nada mais. Um conceito que tem força de motivar os homens a fazer aquilo que é necessário para a continuidade da sociedade. Aliás, um conceito dúbio. Porque serve tanto para fundamentar o matrimônio quanto para traí-lo.
Mas enquanto o matrimônio dura, o amor serve como justificativa para a sua continuação. Na verdade, porém, são muitos outros fatores, não classificáveis sob a rubrica do amor, que ajudam a mantê-lo: os bens que o casal adquire, os hábitos que desenvolve, as experiências vividas em conjunto, as brigas com terceiros e entre si, o círculo de amigos que cultiva, os filhos que cria e muitos outros. Desde que o controle social exercido pelo sistema de parentesco sobre o matrimônio perdeu a sua força, é a história da vida conjunta do casal, se formada por experiências significativas, que mais ajuda a dar estabilidade ao matrimônio.
O matrimônio mudou em consequência da mudança da função da família na sociedade moderna. A família tipo clã —que integrava toda ordem de relações de parentesco e econômicas e representava um contrato de gerações —deu lugar ao que se convencionou chamar de família nuclear, a família composta pelos pais e filhos somente, sem outros parentes participando da comunhão familiar, às vezes formada só pelo casal ou um dos pais com filhos. A família nuclear subsiste separada da atividade econômica, da educação escolar, inclusive de grande parte do lazer. Com o lar no qual ela vive, ela tornou-se o reduto da privacidade. Fecha-se a interferências de fora, o que a torna vulnerável e frágil quando surgem tensões internas. Os seus integrantes saem desse reduto para trabalhar, estudar, divertir-se. Na verdade, a vida fora do reduto familiar é nada divertida. É a vida dura do dia-a-dia. É difícil realizar-se nela. Mas onde realizar-se então? Mais e mais gente procura esta realização no lar, na família, no matrimônio. Está aí o grande peso que o mundo moderno jogou sobre esta instituição milenar da sociedade humana: a busca da felicidade no matrimônio.
Dos noivos espera-se que sejam felizes. Mas o que é essa felicidade? Seria o mesmo que realizar-se? Na verdade, nem a felicidade dá para definir, ela está na cara. E de fato os noivos irradiam, normalmente, felicidade, conforme os padrões difundidos pelos meios de comunicações de massa. Esta felicidade deve desdobrar-se no dia-a-dia do matrimônio: em forma de apoio e consolo mútuo, intercâmbio intelectual, harmonia das almas, colaboração na construção do lar, na educação dos filhos e, não por último, realização na área sexual. Foram-se os tempos em que a fornicação era justificada pela necessidade de gerar filhos. Hoje, o sexo tornou-se uma brincadeira — praticada geralmente com muita seriedade — na qual a geração de um descendente é um efeito colateral, muitas vezes indesejado. Os casais coabitam para dar e receber prazer, ou expressar o seu amor, a sua união. Desenvolveu-se toda uma ideologia do sexo, que faz com que o homem e a mulher procurem realizar na área sexual grande parte daquilo que entendem por felicidade. Auto-realização sexual, intelectual, psíquica, refúgio das pressões do mundo—realmente uma carga pesada em cima da instituição do matrimônio monogâmico.
II — Fidelidade que não tem fim
Não é de estranhar que muitos matrimônios não resistem a tantas expectativas. Por norma social, o matrimônio é para toda a vida, ainda. A lei diz isto, a igreja reforça e fundamenta teologicamente a indissolubilidade do matrimônio. Já há os casais conscienciosos que se negam, diante das incertezas do futuro, a assumir um compromisso para toda a vida; a norma, pelo menos na IECLB, ainda é que os noivos dão com toda convicção e serenidade o seu sim ao até que a morte vos separe.
Na verdade, grande parte dos matrimônios terminam bem antes da morte de um dos parceiros. E muitos deles, sem que haja separação legal ou divórcio. Não tenho dados exatos, mas nos países chamados desenvolvidos não muito mais que a metade dos matrimônios termina conforme propõe a pergunta dirigida aos nubentes segundo a nossa agenda de Bênção Matrimonial. O divórcio se impôs em praticamente todas as sociedades, e o número de casais que fazem uso da possibilidade de separação legal está crescendo.
Significa isso que as pessoas estão casando irresponsavelmente, que a instituição do matrimônio está em descrédito? Não é assim, respondem os pesquisadores sociais. Antes essa instabilidade dos matrimônios se deve à supervalorização. A instituição do matrimônio na nossa sociedade está sobrecarregada das expectativas de realização pessoal e de compensação já mencionadas acima. Quase sozinha ela deve proporcionar a felicidade da pessoa. E quando esta felicidade não se realiza, o matrimônio quebra. Este fato, aliado à libertação do matrimônio das amarras políticas —de relacionamento entre dois clãs — e econômicas — de construção de um conjunto econômico familiar —, está na origem da maioria dos divórcios. Ou por quê motivo a maioria dos que se divorciam correm para casar-se, ou pelo menos ajuntar-se, de novo? Pretendem, depois da experiência frustrada, fazer outra tentativa de alcançar a felicidade almejada.
As expectativas elevadas fazem com que qualquer desajuste entre os casais ponha o matrimônio em perigo. Se a cama não funciona — afinal, foi declarado o direito ao prazer sexual não só do homem, mas também da mulher—, é motivo suficiente da separação. Desajustes nessa área são motivo frequente para o divórcio, conforme os conselheiros matrimoniais. O parceiro insatisfeito, pelo menos muitos deles, não se contenta mais com aventuras extraconjugais. Quer viver novos amores à luz da sociedade e sob o manto da legalidade. O desejo de divórcio não é sinal de imoralidade, mas antes sinal de que o código moral do matrimônio monogâmico está sendo aceito e que os divorciantes querem reintegrar-se aos padrões da moralidade.
Significa a tendência atual que a sociedade está se desenvolvendo em direção a uma situação de uniões e matrimônios por tempo limitado, ou que a instituição do matrimônio está em decadência? Os fatos não precisam ser interpretados assim. O divórcio é uma instituição tão antiga nas sociedades humanas quanto o matrimônio. Em todas as sociedades também houve grupos que viviam em promiscuidade, e muitas criaram espaços e oportunidades onde a promiscuidade era permitida, sem que isso abalasse a instituição do matrimônio. Talvez seja mais acertado entender a atual onda dlvorclsta como resultado de um processo de adaptação desta instituição mllonar as novas funções na sociedade moderna. Não há necessidade, acham os sociólogos, de entoar o canto do cisne do matrimônio monogâmico.
III — Santa ordem, santa comunhão, serviço santo
Se o matrimônio é uma instituição da sociedade, o que a igreja tem a ver com ele? De fato, o matrimônio, no Brasil, é constituído legalmente por um ato civil. Na igreja só acontece a bênção da união já constituída (deixo de lado aqui a doutrina sacramental católica). Mesmo assim, os membros da IECLB insistem em que casamento de verdade é na igreja e que no cartório se cumpre meramente um requisito legal.
Muitos pastores desconfiam que o pessoal casa na igreja só porque fica bonito. Há igrejas católicas que tiram grande parte da sua renda das taxas cobradas pela realização de casamentos (espero que não haja evangélicos também). Será que as pessoas se disporiam a gastar somas consideráveis — na IECLB assumem o compromisso de tornar-se membros, o que implica em contribuições financeiras — só porque fica bonito? Observando os casais que vêm procurar a Bênção Matrimonial na nossa igreja, e dialogando com eles, constata-se que dão muita importância a este acontecimento, junto com todos os parentes. Vêem o casamento como uma passagem para uma nova situação no seu contexto social, para um novo status, como dizem os sociólogos. Mas passagem de quê para quê? Em primeiro lugar, de uma família para outra. Mais importante, porém, é a passagem para o status de pessoa plena, unida a outra de sexo oposto, com a qual tem o direito de coabitar geograficamente e sexualmente, sob a proteção das leis e normas da sociedade, e gerar descendentes. A convivência sexual, levada até lá meio na clandestinidade, é legitimada ao público. As manifestações de apoio e confirmação que acompanham o ato do casamento não deixam dúvidas de que o status de casado é muito mais valorizado do que o de solteiro, solteirona, viúva, celibatário. Acrescenta-se a essa valorização o fato de que nas comunidades da IECLB o casamento é considerado geralmente como o momento de entrada como membro autônomo e responsável na igreja (isto é, começa a pagar anuidade), o que tem a sua lógica, visto que membros não são indivíduos, mas famílias.
A entrada neste novo status na sociedade é acompanhada de Incertezas, inseguranças e temores, tanto por parte dos que realizam a passagem, quanto por parte dos grupos que estes deixam para trás e o que os recebe. Por isso a sociedade colocou, nestes pontos estratégicos da biografia humana, os ritos de passagem. Estes, via de regra, são administrados pelos especialistas das instituições religiosas. O casamento religioso cabe muito bem nesta categoria (outros ritos de passagem no contexto da IECLB são a confirmação, a ordenação, a instalação num cargo). Seria demais, expor aqui todo o funcionamento do rito de passagem. Basicamente dá para dizer o seguinte: rito de passagem representa e confirma a passagem. A representação é até bem feita na cerimônia da Bênção Matrimonial. O pai entrega a noiva ao noivo, há uma fita que deve ser aberta e passada, os noivos dirigem-se ao lugar santo, o altar. Lá manifestam publicamente a aceitação do seu novo status. A oração e bênção do oficiante confirmam e declaram publicamente que a passagem não está somente em conformidade com a ordem da sociedade, mas também com a ordem divina. O casal volta do altar, já investido do novo status, e é cumprimentado e saudado pelo seu novo grupo de referência, a turma dos casados. Todos têm a sensação de estarem agindo em harmonia com a ordem do cosmos que une Deus e os homens. Parece brincadeira, mas de fato é um ato importante para a constituição e a vivência do matrimônio, e sem dúvida contribui para o seu sucesso e sua estabilidade.
IV — Casa quem quer e quem pode
Se acima foi afirmado que o matrimônio monogâmico ainda não está em perigo de ser erradicado, isto não significa que as suas normas são obedecidas por todos, nem que ele é acessível a todos. No Brasil imperial, os escravos não casavam, nem grande parte das classes baixas. Na Alemanha do século 18 o casamento era condicionado a severas limitações econômicas, assim que só uma minoria estava legalmente casada. Igualmente dá para suspeitar que o matrimônio, assim como as igrejas o concebem e propagam, é vivido somente por uma minoria e restrito a certas camadas sociais. Pois para manter uma família são necessárias certas condições econômicas, não acessíveis a grande parte da população brasileira. O ditado o rico casa, o pobre se ajunta expressa uma verdade que deve preocupar-nos. Compete à sociedade —e à igreja que está atuando nela – a tarefa de criar condições para que as pessoas possam seguir as normas que ela estabelece.
Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia