Quando acontece missão?
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Atos 16.9-15
Leituras: João 14.23-29 e Salmo 67
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 26 de maio de 2019
1. Introdução
Tento imaginar como os discípulos de Jesus viveram esse tempo que compreende o período entre o Domingo da Páscoa e o Domingo de Pentecostes! Quantos sentimentos se misturaram nesses dias: ansiedade, medo, frustração, surpresa, alegria. É nesse período que Jesus se apresenta aos discípulos como o Senhor ressurreto, caminha com eles, partilha o pão com eles, fortalece-os em sua fé, assegura o seu amor – apesar de traições e abandono da parte dos discípulos.
Como comunidade de Jesus, caminhamos com sentimentos e expectativas semelhantes: acabamos de celebrar a Páscoa e nos encaminhamos para o Domingo de Pentecostes. Nesse meio tempo, sentimentos ambíguos marcam nossa caminhada. Por um lado, experimentamos a alegria da ressurreição; de outro lado, vivemos uma certa insegurança e expectativa pelo que virá.
A prédica e as leituras bíblicas deste domingo querem nos ajudar a ser comunidade. Somos comunidade frágil. Não somos perfeitos. Vivemos da graça e da misericórdia do Senhor para conosco. Somos comunidade do Senhor que se encontra no seguimento a Jesus, no caminho do discipulado. Recebemos o Espírito Santo (Jo 14) e somos empoderados para ser testemunhas que comunicam o evangelho a todas as pessoas (At 16), de modo que em toda a terra sejam conhecidos os teus caminhos, a tua salvação (Sl 67).
Assim, a prédica deste domingo evidencia o tema central da igreja neste mundo: a missão! A missão é a identidade da própria igreja. A missão de Deus é a nossa paixão!
2. Exegese
2.1 – Primeiras impressões
• Chama minha atenção que o texto inicia dizendo que durante a noite Paulo teve uma visão (v. 9). Isso soa um pouco estranho. Lembrei-me de algumas noites em que não consigo dormir e muitos pensamentos povoam a minha mente.
• Na visão, alguém pede por ajuda. Lembrei-me dos muitos pedidos de ajuda (humanitária) que me alcançam todos os dias. De que tipo de ajuda trata o texto?
Paulo é uma pessoa iminentemente prática. Ele não hesita e, imediatamente, se coloca a caminho da Macedônia – hoje Europa (v. 10).
• A missão de Paulo na Europa não acontece de forma espetacular. Paulo e seus companheiros encontram algumas mulheres na periferia da cidade. Paulo tinha visto um homem macedônio, mas agora ele encontra uma mulher da cidade de Lídia.
• Lídia é a personagem principal do texto. Ela é apresentada como uma mulher emancipada, livre, que gerencia seu próprio negócio e é bem–sucedida – economicamente falando. Segundo o relato de Atos, é a primeira pessoa na Europa a tornar-se cristã (v. 14).
• Tento me imaginar a reação de Paulo e de seus colaboradores quando são convidados por uma mulher a se hospedarem em sua casa. Que tipo de barreiras ou preconceitos foram superados? Na casa de Lídia irá se formar uma comunidade cristã, possivelmente liderada por ela (v. 15)!
• Lídia e toda a sua casa foram batizados (v. 15). Seria esse texto um subsídio para legitimar o batismo de crianças? (Muitas igrejas cristãs não aceitam o batismo de crianças como válido).
• O texto destaca que o Senhor abriu o coração de Lídia, e esta abriu a sua casa. Isso tem implicações missiológicas.
2.2 – Observações exegéticas
2.2.1 – Contexto
Paulo encontra-se na sua segunda viagem missionária (At 15.36 – 18.22), provavelmente pelo ano 49/50 d.C. Ele está acompanhado de Silas (At 15.40), Timóteo (At 16.1-3; 1Ts 1.1) e Lucas – o autor do livro de Atos (At 16.10). Paulo e seus colaboradores haviam tentado anunciar o evangelho no norte da Ásia Menor, e também no sul, na direção do mar Negro (Bitínia), mas, surpreendentemente, o relato de Lucas afirma que haviam sido impedidos pelo Espírito Santo (At 16.6-7). Segundo o relato de Lucas, é nessa viagem que pela primeira vez o evangelho será anunciado em solo europeu, embora muito provavelmente ele já tenha alcançado a Europa antes dessa viagem de Paulo – por exemplo, em Roma. O evangelho será anunciado na Europa graças a uma visão noturna de Paulo (v. 9). A primeira cidade onde o evangelho será anunciado será a cidade de Filipos At 16.11-40). Nossa perícope descreverá a visão de Paulo, a viagem a Filipos e a primeira iniciativa missionária nessa cidade. Na cidade de Filipos surgirá uma comunidade cristã, pela qual Paulo nutrirá grande afeto (Fp 2.25; 4.1,10,14-18; 2Co 11.8ss).
2.2.2 – Análise de detalhes
V. 9 – Visão (do grego horama). O termo pode ser traduzido como rosto, visão, o que foi visto. A mesma palavra é encontrada outras vezes no livro de Atos (7.31; 10.17,19; 11.5; 12.9). O termo designa visões sobrenaturais enquanto se está acordado ou quando se está dormindo (Bauer, 1988). A palavra também é encontrada para designar o mesmo fenômeno em religiões não cristãs. Ainda que não seja possível descrever em detalhes como se dá essa visão, fica evidente que aquele que recebe a visão reconhece Deus falando através dela. Na visão se encontra um homem, reconhecido como sendo um macedônio, provavelmente pela sua vestimenta.
V. 10 – O macedônio expressa um pedido de ajuda (cf. Mt 15.25; Mc 9.22). O pedido implica o reconhecimento de não poder/conseguir resolver o problema por si mesmo. O pedido por ajuda é feito em nome de todos os macedônios/europeus. O pedido do macedônio é inegavelmente interpretado numa perspectiva espiritual, ou seja, a ajuda a ser dada é o anúncio do evangelho. Portanto a ida de Paulo e seus colaboradores para a Europa não foi algo engendrado ou planejado por eles, mas ordenado por Deus.
V. 11 – De forma tópica, Lucas descreve a viagem à Macedônia: com um navio eles viajam de Trôade para a ilha de Samotrácia, onde passaram a noite. No segundo dia, viajam até a cidade portuária de Neápolis. De lá, provavelmente a pé, seguindo a via Egnacia, por cerca de 15 km, chegaram a Filipos. Para fazer o mesmo trajeto, mas em sentido contrário, Paulo precisou de cinco dias (At 20.6).
V. 12 – A cidade de Filipos deriva seu nome do rei e conquistador macedônio Filipe II, pai de Alexandre, o Grande. Ele conquistou a cidade grega em 356 a.C., deu à cidade seu nome, ampliou e fortaleceu a cidade, e com o ouro extraído das minas que se encontravam nas imediações de Filipos financiava suas guerras. Mais tarde, a cidade cultivou estreitas relações com Roma, a ponto de ser caracterizada como “cidade mais romana do que Roma”. Isso explica as dificuldades que a comunidade cristã encontrou nessa cidade (Fp 1.27-30; 2.15; At 16.19-23; 2Co 7.5; 8.2).
V. 13 – Depois de alguns dias na cidade, Paulo e seus colaboradores – segundo seu costume (At 17.1-4) – reúnem-se no dia de sábado para anunciar o evangelho aos judeus (Rm 1.16; 2.9ss). Provavelmente, todo o perímetro urbano da cidade era consagrado às divindades romanas, de modo que não se encontrava nenhuma sinagoga na cidade. Ao sul, numa distância de dois km da cidade, passava o rio Gangites. Às margens desse rio, Paulo e seus colaboradores encontrarão um grupo de mulheres que ouvirá o anúncio do evangelho.
V. 14 – Lídia pode ser um nome próprio, porém, mais provavelmente, designa a origem da mulher. Lídia era da cidade de Tiatira, que se situava na região da Lídia, na Ásia Menor. Portanto ela não é europeia, mas alguém que migrou para a Europa. Ela é uma mulher que negocia roupas de luxo. A púrpura – tecido nobre, caro, de cor vermelha – era típica na cidade de Tiatira. Lídia negociava e vendia esse tecido em Filipos e, provavelmente, era uma mulher rica. O texto testemunha que ela era uma mulher temente a Deus. Dessa forma eram designados os gentios – pessoas que não eram judeus de nascimento, mas que assumiram para si a fé judaica (cf. At 10.1ss; 17.4,17; 18.7), sem contudo se converterem integralmente ao judaísmo. Pessoas designadas como tementes não eram obrigadas a observar todos os rituais de purificação e alimentação, por exemplo. Lídia ouve, escuta o que Paulo lhe diz. Mas Deus é aquele que lhe abre o coração, de modo que ela compreende o que lhe está sendo dito e crê. Deus é aquele que abre o caminho ao evangelho. Deus abre o coração e os ouvintes compreendem (Mc 7.34; Lc 24.32).
V. 15 – Lídia crê e é batizada. Provavelmente, o batismo aconteceu no rio Gangites. Não somente Lídia, mas toda a sua casa foi batizada. Casa não designa uma construção, em primeiro lugar, mas a família ampliada, o grupo social, cultural e religioso do qual faziam parte escravos, empregados e todos os que viviam na casa. Uma vez que o coração de Lídia foi aberto, ela abre a sua casa e pratica a hospitalidade (1Pe 4.9ss). Com sua hospitalidade para com Paulo e seus cooperadores e mais tarde com os muitos irmãos e irmãs na fé (v. 40), Lídia dá testemunho da mudança que aconteceu no centro de sua existência. Sua casa aberta vai se constituir na primeira célula da igreja em Filipos, da igreja na Europa.
3. Reflexão teológica com vistas à prédica
3.1 – O início da perícope é ambientado na noite. É noite não apenas em seu sentido literal, mas também num sentido emocional/espiritual. Paulo e seus companheiros tinham iniciado sua viagem cheios de planos e expectativas. Mas agora eles estão confusos. Primeiro, eles planejaram adentrar na província da Ásia, mas o Espírito Santo os impediu (v. 6). Depois, tentaram se dirigir à Bitínia, em direção ao mar Negro, mas também esse plano foi impedido pelo Espírito Santo (v. 7). Que fazer? Missionários fracassam em seus projetos missionários, são missionários sem uma missão. Seus planos se desfizeram como bolhas de sabão! Ficou noite! A prédica poderia fazer referência e trazer exemplos de planos que fracassaram: planos pessoais, planos que foram sonhados como comunidade, mas que por alguma razão acabaram não se concretizando.
Ao mesmo tempo, a perícope destaca que nossos fracassos são transformados em vitórias pela intervenção de Deus, que muda nossos planos, é verdade, mas não nos deixa sem uma porta aberta. Paulo não tinha planos de ir para a Macedônia. Mas ele teve a sensibilidade de perceber que Deus o estava dirigindo para outra direção daquela que ele inicialmente tinha planejado. Essa também é a tarefa da comunidade cristã: ser sensível às portas abertas que Deus coloca para ela. Na maioria das vezes, portas abertas para a comunicação do evangelho se constituem ou se evidenciam a partir de necessidades reais que as pessoas vivenciam e experimentam. Quais, onde se encontram portas abertas que a comunidade cristã local poderia adentrar? Quem são os que expressam pedidos de ajuda no âmbito de nossas comunidades?
3.2 – Na cidade de Filipos, na Europa, vive uma mulher chamada Lídia. Ela é profissionalmente bem-sucedida. Ela vive na colônia romana de Filipos como estrangeira. Ela é uma migrante da Ásia Menor. A religião que lhe foi mediada pelos pais não respondia mais aos seus anseios mais profundos. Também todo o panteão de divindades romanas na cidade de Filipos não lhe satisfaz. Na sua busca religiosa, ela conheceu a fé judaica e se reúne com outras mulheres para orar. Ela é uma mulher temente a Deus.
Como na cidade de Filipos não há espaço nem tolerância para que ela expresse a sua fé, ela é obrigada a reunir-se com suas amigas na periferia da cidade. Lá ela tem um encontro com Paulo. Não é um encontro casual, mas um encontro dirigido por Deus. Com Lídia, uma mulher, uma migrante, inicia a história da evangelização na Europa, conforme o testemunho do livro de Atos. Lídia ouve o que Paulo compartilha com ela. E Deus abre seu coração. Compreender o sentido do evangelho sempre é fruto do agir soberano de Deus na vida do ser humano. Crer é dádiva de Deus ao ser humano.
3.3 – Ao coração aberto segue uma casa aberta. Lídia experimentou a graça de Deus e age de forma graciosa para com as pessoas com as quais convive. Ela coloca seus dons a serviço da missão e evangelização. O mesmo vale para nós: comunidade cristã surge e cresce quando a fé é compartilhada e quando agimos a partir da fé. Gálatas 3.28 talvez expresse o que pode ter acontecido na casa de Lídia.
4. Tema e estrutura da prédica
Uma sugestão de tema e estrutura para a prédica:
Tema: Quando acontece missão?
1) Missão acontece quando uma porta se abre.
2) Missão acontece quando um coração se abre.
3) Missão acontece quando uma casa se abre.
5. Imagens para a prédica
Antes de iniciar o culto, os confirmandos e as confirmandas poderiam receber a comunidade com bolhas de sabão. Ao mesmo tempo, há uma música de fundo e, enquanto as bolhas de sabão são sopradas, outros confirmandos/as recitam alternadamente frases que expressem sonhos, desejos: “Eu desejo…”; “Como seria bom se…”. Quando estiver na hora de iniciar o culto, a música silencia e alguém fala (de modo que todos possam ouvir): “Sonhos podem acabar! Sonhos às vezes não passam de bolhas de sabão. Quando é que sonhos se tornam realidade?”. Essa dinâmica pode introduzir a prédica e conectar com os sonhos de Paulo e seus cooperadores, que, num primeiro momento, eram como bolhas de sabão: seus sonhos se desfizeram.
Outra possibilidade é fazer uma enquete com pessoas que vivem no entorno da comunidade, procurando ouvir pedidos de ajuda e perceber portas abertas para a comunidade testemunhar a sua fé. Perguntar e perceber problemas sociais: como vivem os idosos, quem são pessoas solitárias, quais os desafios que a escola enfrenta, como as pessoas vivem seu luto, há migrantes vivendo entre nós? Os resultados da enquete poderiam ser apresentados na prédica para a comunidade e servir de motivação para um viver missional da comunidade.
6. Subsídios litúrgicos
A oração após a prédica poderia:
• lembrar a inspiração que Paulo e Lídia deixam para a comunidade local e os planos frustrados de Paulo que se tornaram uma história de esperança para Lídia;
• motivar a confiança na providência divina – Deus conduz a nossa vida;
• pedir que Deus sempre conceda sensibilidade para perceber portas abertas para o testemunho do evangelho;
• pedir para que Deus também abra nossos corações, crie em nós a fé e nos possibilite agir em amor, colocando nossos dons a serviço da missão;
• interceder pelas políticas públicas, pelos migrantes em nosso país e nossa cidade, também pela situação dos refugiados em outros países.
Bibliografia
BAUER, Walter. Griechisch-deutsches Wörterbuch: zu den Schriften des Neuen Testaments und der frühchristlichen Literatur. 6. ed. Berlin: De Gruyter, 1988.
TRAUTWEIN, Thorsten. Zuversicht und Stärke. Holzgerlingen: Hänsler, 2014. 6. Reihe, Heft 2.
WEILAND, Werner. Zufersicht und Stärke. Holzgerlingen: Hänsler, 1996. 6. Reihe, Heft 2.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).