Vida partilhada: um sonho possível?
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Atos 2.42-47
Leituras: João 10.1-10 e 1 Pedro 2.19-25
Autoria: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 4° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 03/05/2020
1. Introdução
Ao buscar referências bibliográficas para escrever este subsídio, deparei–me com a publicação no PL XI, para o 7º Domingo após Trindade, escrita pelo P. Bertoldo Weber, disponível no Portal Luteranos (http://www.luteranos.com.br/conteudo/atos-2-41a-42-47). Faço menção dessa publicação pela sua importância e atualidade. Mesmo que tenha sido escrito no século passado, em 1985, recomendo sua leitura.
O livro de Atos, provavelmente escrito no final do primeiro século pelo autor do Evangelho de Lucas, nos relata o caminhar das primeiras comunidades até os confins da terra. Por alguns, ele é chamado de “Evangelho do Espírito”, pois conta que o Espírito Santo prometido fez nascer a igreja e a impulsionou para o testemunho de Cristo para todos os povos. Esse testemunho corajoso e aberto transformou vidas, relações e estruturas sociais, que se chocaram frontalmente com interesses econômicos, políticos e religiosos vigentes.
Tanto pelas descrições do modo de vida comunitário, bem como pelo empenho apostólico, encontramos em Atos um jeito de ser igreja um tanto utópico, diante da nossa experiência de ser e viver comunidade. Porém essa reflexão pode ser desafiadora para todas as comunidades, a fim de redescobrir sua própria identidade e seu desafio missionário.
2. Exegese
Os primeiros 12 capítulos do livro de Atos tratam da divulgação da Palavra em Jerusalém e na Palestina. Nossa perícope se insere na descrição do modo de vida da comunidade primitiva de Jerusalém (1 – 5). Conforme Gottfried Brakemeier, “trata-se de sumários, isto é, de unidades literárias que têm a forma de resumos formulados por Lucas com base em algumas breves notícias históricas que a ele vieram da tradição” (BRAKEMEIER, 1985). As características da primeira comunidade podem ser descritas assim, conforme o texto:
a) perseveravam na doutrina dos apóstolos;
b) cultivavam a comunhão entre os irmãos e as irmãs, também de bens;
c) partiam o pão (Santa Ceia) nas casas;
d) a oração era prática assídua;
e) testemunhavam os sinais e as maravilhas feitos pelos apóstolos.
As primeiras comunidades cristãs constituíam o grupo dos seguidores de Jesus (At 1.15), de lideranças reconhecidas (At 1.13), uma comunidade que realiza suas reuniões (At 1.15ss; 2.1; 12.12) e faz no mesmo lugar sua oração cotidiana (At 2.46), vive em comunhão (4.32) praticando a fé, a unidade e a partilha de bens (At 2.44ss; 4.32; 4.34-37), de sorte a merecer a estima de todo o povo (At 2.47). As primeiras comunidades cristãs não se fecham em si mesmas, mas abrem-se à universalidade do testemunho do anúncio da Boa-Nova de Jesus Cristo morto e ressuscitado (At 2.10; 15.21).
O evangelista Lucas idealiza as primeiras comunidades cristãs partindo do plano de Deus no Antigo Testamento. As características delas se formam seguindo os ensinamentos propostos pelos apóstolos, na tentativa de viver segundo os ensinamentos e a prática de Jesus.
Perseverar na doutrina dos apóstolos é mais do que permanecer fiel à pregação dos fatos ocorridos em Jerusalém. Jesus é o eixo central da vida deles. Sem Jesus ressuscitado, a vida perderia todo o sentido. Perseverar significa ocupar-se dedicadamente e colocar seus ensinamentos em prática no dia a dia. A palavra remete à ação e esta confirma a palavra.
Conforme Eduard Lohse, o conteúdo da mensagem contém uma cristologia simples:
Deus legitimou Jesus através de seus feitos milagrosos (2.22). Não obstante os judeus
o rejeitaram e o pregaram na cruz (2.23), ao passo que Pilatos queria libertá-lo
(3.13). Na morte de Jesus cumpriu-se a morte e ressurreição do Messias pronunciadas
no AT. Pela ressurreição Deus o exaltou e o empossou à sua direita (2.36; 5.31;
13.23). Desse modo ele se tornou kyrios e sōtēr, de sorte que em seu nome todo o
mundo alcança a salvação (4.12). Para que se possa receber a salvação, são necessários
arrependimento e conversão (2.36; 3.19) bem como o batismo (2.38). Quem
pertence a Jesus será salvo no juízo vindouro (10.42) […]”(LOHSE, 1972, p. 169).
Lutero afirmou que é na pregação da Palavra, na comunhão, no partir do pão e na oração que se reconhece a igreja de Cristo. Da tradição judaica, os seguidores e seguidoras de Jesus trouxeram consigo o aprendizado da oração no templo. De Cristo, aprenderam a partilha do pão, não apenas como uma celebração simbólica, o pão eucarístico, mas como uma refeição comum, na qual o pão sobre a mesa é o pão que sustenta a vida e precisa estar na mesa de todos. Aparece então pela primeira vez a palavra omothymadon (literalmente, mesma alma, unânimes), que nesse texto vai exprimir a união das pessoas cristãs, chamada de koinonia/comunhão.
A comunhão evidencia-se na partilha de bens, pois à medida que alguém tinha necessidade, eles vendiam suas propriedades e distribuíam entre todos (2.45). Pesquisadores falam em uma comunhão de consumo, já que o que tinham era partilhado. Não há relatos de uma comunhão de produção. Desta forma, não podemos falar em um sistema econômico comunista, pois o que se percebe são ações baseadas na espontaneidade amorosa presente na comunhão de irmãos e irmãs na fé.
Para os discípulos e as discípulas de Jesus, a forma como viviam era consequência do evangelho. A comunhão verdadeira não é apenas espiritual, mas assume todos os aspectos da vida, inclusive os bens materiais. Muitos vieram da alileia, onde eram pescadores. Abandonaram sua base de sustentação econômica e se fixaram em Jerusalém. Ali necessitaram das doações voluntárias dos irmãos e irmãs que tinham posses. Privados do seu meio de produção, e por causa da demora da parúsia, passaram a ter necessidade de ajuda. Apesar do texto não fazer referência, é sabido que os primeiros cristãos aguardavam a volta gloriosa do Senhor, como ele havia prometido, e para eles isso seria em breve. Assim, o tempo era necessário para a missão de levar o evangelho a todos os povos.
Certamente a comunhão e a partilha experimentadas não foram perfeitas nem sem problemas. Baseavam-se no cumprimento de Deuteronômio 15.4, onde a vontade de Deus expressa que não deve haver pobres no meio do seu povo. Porém o relato de Atos 5.1ss revela que Ananias e Safira venderam sua propriedade e retiveram uma parte do dinheiro para seu uso. A não observância do compromisso comunitário põe por terra a estrutura econômica. A condenação ao casal não se dá pelo fato de terem retido parte, mas sim por terem mentido para enganar a comunidade. A mentira é um ato diabólico que equivale a mentir ao próprio Espírito Santo, incorrendo naquele pecado sem perdão.
A partilha põe fim à discriminação social. Com isso se vence a paralisia da indigência. O critério da partilha é muito objetivo: é a necessidade de cada um (Êx 16; Jo 6.1-5). Essa necessidade decreta a lei da vida comunitária (Dt 15.4; Lc 1.53; Sl 107.9) A exigência de se suprir as necessidades humanas é um direito somente possível em uma sociedade que coloca o bem-estar de todos acima do individual. Desigualdades significam o rompimento da aliança com Deus. Weber afirmou: “[…] em cima de toda a propriedade privada pesa uma hipoteca social” (WEBER, 1985, p. 286).
Brakemeier escreve que, na visão de Lucas, a comunidade primitiva está em sintonia com um tradicional sonho grego, quando em Atos 4.34a são assumidos os termos que fazem alusão às palavras de Aristóteles: “aos amigos tudo é comum”. Muitos filósofos gregos esboçam a utopia da posse coletiva dos bens como o ideal para uma sociedade igualitária, fraterna, educada nas virtudes. Platão afirmava que a propriedade privada é a fonte de todos os males. Aristóteles admite a propriedade particular tão somente quando estiver a serviço do bem comum. Assemelham-se entre eles o desejo de libertar as pessoas da gula e tirania exercida pelas posses (pelo amor ao dinheiro).
Na visão bíblica, temos a denúncia contundente dos profetas sobre o acúmulo das posses. A memória bíblica deixa claro que a terra pertence a Deus e tudo o que nela contém (Sl 24.1). Ao ser humano cabe a responsabilidade de administrar os bens da terra, a fim de garantir a vida digna a todos. O abuso da justa distribuição dos bens coloca as pessoas sob o juízo divino.
3. Meditação
À primeira vista, nosso texto traz um retrato da comunidade que temos como sonho ou utopia. Apresenta-nos um grupo unido e orante. As pessoas que creram em Cristo eram fiéis à escuta da palavra de Deus, na celebração da eucaristia e nos encontros de oração nas casas, na partilha e na ajuda a quem precisasse.
A estrutura da igreja primitiva estava sempre em função dos deveres essenciais que eram: anunciar a palavra de Deus, animar a comunidade, assistir os pobres. A certeza da presença do Espírito Santo era identificada pelos sinais e prodígios feitos pelos apóstolos, que os animava e fortalecia.
Percebemos que essa maneira de viver comunidade colocava por terra os valores vigentes da sociedade, defendidos pelo Templo e suas lideranças judaicas. Sem Templo, vai se formar um povo reconciliado alegre, simples, com consciência de que são a “Casa de Deus”, e isso ninguém lhes pode arrancar. Lucas retoma o projeto igualitário e fraterno de Cristo. Esse novo estilo de vida atrai a simpatia de muitos; o movimento cresce com gente de todas as partes do mundo.
A vida unânime e partilhada mudaria o rumo da sociedade. A partir de Jesus ressuscitado e presente é restaurada a prática de uma sociedade dentro do projeto de Deus, anunciada pelos profetas. São curadas as relações sociais e vencida a paralisia da indigência, da exclusão.
Se pudéssemos resumir em poucas palavras as características dessa comunidade ideal, que crescia dia a dia em número de pessoas, que iam sendo acolhidas e salvas, diríamos:
– Os primeiros cristãos eram fiéis na doutrina dos apóstolos, na escuta da palavra de Deus, nos encontros de oração nas casas e no culto (At 2.42).
– Os primeiros cristãos tinham tudo em comum: comunhão de pão na eucaristia, comunhão de bens, para que não houvesse indigência e necessitados.
– Tinham temor e louvor a Deus, alegria e singeleza de coração, experiência partilhada de liderança. Na igreja das casas, provavelmente, mulheres eram líderes e encontravam o seu espaço.
Somente esses três tópicos já podem dar grandes subsídios para a reflexão. Queremos nossas comunidades assim também, com pessoas fiéis, com clareza doutrinária, atentas ao estudo da Palavra, presentes nos cultos e nos encontros em casas. Até aí tudo bem. Podemos investir em cursos, encontros, formação bíblica e confessional. Diversificamos os horários dos cultos. Moldamos os cultos com temáticas atraentes, nos esforçamos para que as celebrações sejam acolhedoras e bem preparadas. Criamos grupos de reflexão e oração que se encontram nas casas, nos bairros. Assim a igreja está mais próxima, presente na vida das pessoas. Ok! Mas precisamos perguntar: a Palavra refletida tem se tornado palpável e real na solidariedade e na partilha material?
A comunhão do pão que se reflete na comunhão dos bens para que não haja pobres e necessitados representa o espinho na carne para todos nós. Até onde vão nosso despojamento e nosso engajamento cristão para que o sistema político e econômico de desgraça não domine nosso ser, fazer e desejar?
Estamos acostumados com a prática das doações e campanhas de roupas, calçados, materiais de construção, ação entre amigos e amigas, almoços e jantares em favor de pessoas ou instituições.De certa forma, exercitamos a comunhão de consumo para com irmãos e irmãs na fé que passam por dificuldades. Mas bem sabemos que a cada dia, mais e mais a exploração e a miséria estão crescendo, pois os pedintes estão batendo à nossa porta, e nossos próprios parentes estão de- sempregados ou tendo que se tornar “autônomos”, já que perderam seus direitos trabalhistas e hoje lhes resta vender sua força de trabalho sem uma perspectiva de aposentadoria digna.
A igreja em Atos é enviada ao mundo. Jesus não quer uma comunidade de iguais, mas sim de pessoas que servem umas às outras com seus diferentes dons. Também nossas comunidades, por vezes, perderam essa dimensão. Estão fechadas em si mesmas, trabalhando apenas para sua sustentação, esquecendo do envio que Jesus deu ao subir ao céu.
Vivemos tempos em que o individualismo impera. A solidariedade foi subs- tituída pela meritocracia. As mídias afastam-nos da realidade de vida das pessoas. As relações familiares estão enfraquecidas. Penso que o partir do pão de casa em casa com alegria e singeleza de coração é um passo que ainda precisamos dar. Pois nas casas a compaixão se manifesta, a empatia acontece, as mãos se encontram, e a verdadeira solidariedade brota. Mas também é nas casas, na realidade da vida que somos confrontados com as grandes cruzes que pesam sobre as pessoas. É ali que Deus está. E o Espírito
Santo nos anima e inspira para ações diaconais que transfor- mam vidas e desestabilizam os poderes de morte que aí estão.
Brakemeier pergunta: “Será possível, pois, alcançar o objetivo de erradicar pobreza e necessidade sem engajamento sócio-político? Pergunta-se pelo tipo de serviço exigido pelo evangelho e pela situação concreta” (BRAKEMEIER, 1985, p. 6).
Não podemos implantar o modelo utópico da comunidade primitiva. Mas podemos reafirmar nossos fundamentos da fé e nos deixar conduzir pelo Espírito de Deus, que quer o cuidado e a partilha dos bens da terra, numa comunhão fraterna entre povos e pessoas. Ainda nos lembramos das reflexões sobre o Tema do Ano de 2018 e 2019: Igreja. Economia. Política. A economia precisa cuidar da organização e da justa distribuição dos meios que sustentam a vida. A política necessita ordenar as relações de convivência e deve proteger a vida.
Nossa tarefa como igreja cristã é buscar por uma sociedade mais adequada ao projeto de Deus. Para que isso aconteça, sabemos que precisamos mudar a forma de ser igreja, voltando-nos à fonte do evangelho e às primeiras comuni- dades. A igreja não é estanque, precisa estar atenta às mudanças na sociedade, à economia, à política, mantendo-se fiel a Jesus Cristo e ao Espírito Santo. As primeiras comunidades são inspiração para nós. Elas foram crescendo, descobrindo e aperfeiçoando sua caminhada, não sem erros e dificuldades internas e externas. Mas testemunharam a Palavra até os tempos de hão de pessoas pecadoras, mas justificadas pela graça de Deus.
4. Imagens para a prédica
As únicas relações que ainda permanecem um pouco mais sólidas em nossos tempos são as da pequena família, que cuida de mim ou aquela de quem eu cuido. Também entre irmãos e irmãs, primos e primas, tios e tias, as relações estão enfraquecendo. Podemos partir dessa imagem da família para lembrar o que nos une. Algumas refeições, comemorações esporádicas ou situações de sofrimento, doença, sepultamento acontecem. Isso ainda faz com que as pessoas se encontrem. Então podemos perguntar: o que nos une como famílias? Apenas os laços de sangue? Ainda oramos uns pelos outros? Temos nos encontrado em comunidade? E o sentimento de cuidado e amor de uns para com os outros como está? Será que esse cuidado também passa pelas dificuldades materiais e financeiras? Então, se já estamos tendo tantas dificuldades com aquelas pessoas tão próximas de nós, como tem sido, na prática, nosso cuidado e solidariedade com as pessoas “de fora”? Como nossa comunidade tem colocado em prática a diaconia que quer transformar vidas?
Um grupo escolar, certa vez, foi fazer um piquenique às margens de um rio. O que não esperavam é que a correnteza estivesse um pouco mais forte do que o normal. Enquanto se divertiam jogando bola, avistaram uma criança descendo rio abaixo, dando a nítida impressão de que estava se afogando. Prontamente, dois professores entraram no rio para salvá-la. Neste mesmo tempo, mais duas crianças desciam levadas pela correnteza. Agora, eram duas pessoas no rio para salvar três crianças. Porém mais uma apareceu na curva do rio e a situação se tornou caótica. Nisso, um dos professores saiu da água. O outro perguntou aflito:
– O que estás fazendo? Por que não me ajudas a salvar as crianças?
O professor, correndo rio acima, apenas responde gritando:
– Preciso ir ver o que está fazendo com que essas crianças estão sendo jogadas no rio.
Nossa tendência é agir nas consequências de sistemas econômicos e sociais excludentes, que penalizam os mais pobres ou fragilizados. Porém o sistema permanece e somos moldados por ele. Como comunidades, precisamos deixar o Espírito de Deus agir e nos empoderar para encontrar maneiras de modificar o que aí está.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. O “socialismo” da Primeira Cristandade. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
CASONATTO, Odalberto Domingos. A origem das primeiras comunidades cristãs nos Atos dos Apóstolos. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2019.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1972.
WEBER, Bertoldo. 7º Domingo após Trindade: Atos 2.41a,42-47. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1985. v. XI, p. 284-290.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).