Criar sistemas de cooperação
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Atos 4.32-35
Leituras: Salmo 133 e Marcos 16.12-18
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: 2° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 11/04/2021
1. Os três textos têm tudo a ver
Oh! Como é bom e agradável quando irmãos moram juntos, diz a primeira frase do Salmo 133. Seria mesmo bom e agradável se os irmãos e as irmãs habitassem uma área comum onde fosse possível usufruir em conjunto dos bens naturais e daqueles constituídos culturalmente. Se assim fosse, organizar cooperativas, sindicatos e associações seria atividade gratificante. Se de fato “a união faz a força”, a cooperação, a sindicalização e a associação impulsionariam essa força e dariam vida melhorada a muitas pessoas que ganham “cada um por si” o “pão de cada dia” com “o suor do seu rosto”. Marcos 16.12-18 apresenta Jesus censurando a incredulidade e a dureza de coração dos onze discípulos, que duvidaram do testemunho de dois agricultores a respeito da vida nova que vem da fé na ressurreição. Se não fosse a incredulidade e a dureza de coração, a “multidão dos crentes” teria “um só coração e uma só alma” e ninguém consideraria sua nenhuma das coisas que possuísse e tudo ser-lhes-ia comum, como diz Atos 4.32.
2. A solução se chama cooperação, Teófilo
Não sei se a primeira comunidade cristã em Jerusalém realmente arrebanhou uma multidão (At 4.32) para viver a comunhão de bens. Lutero traduziu o grego plēthos como “Menge”, o que pode significar “o conjunto”, “o ajuntamento”, sem necessariamente referir-se a um número extraordinariamente grande de pessoas. Discutir o número não pode, porém, pretender minimizar o significado do relato de Atos 4.32-35 e muito menos a teologia dos livros do médico Lucas. Falando no final do primeiro século, o autor talvez esteja respondendo à pergunta se vale a pena seguir com a criação de igrejas. Por isso responde dizendo que, lá no início, o próprio Cristo aprovou essa ideia pela ação dos apóstolos. Assim, a mensagem de Lucas é que Cristo quer sim a criação de igrejas pelo mundo todo (At 1.8). A informação de que em um só dia foram batizadas “quase três mil pessoas” (At 2.41) não deixa dúvida de que o trabalho iniciado por Paulo, Pedro e outros deve seguir “agora”, no final do primeiro século, diz Lucas ao Amigo de Deus (Teófilo).
Se levarmos em conta que discípulos seguiram Jesus a partir da Galileia e, depois da morte do mestre, estavam em Jerusalém, precisamos considerar que a comunhão de bens se fazia necessária para manter o movimento de Jesus com essas pessoas, que deixaram tudo e o seguiram (Lc 18.28). De que viveria lá na capital essa gente fora de casa? As pessoas adeptas ao movimento e que eram donas de ktēmata e hyparxeis (At 2.45) – isto é, terrenos com ou sem benfeitorias e outras posses – vendiam algo disso e traziam o resultado aos apóstolos, que o administravam. Isso quer dizer que distribuíam à medida que alguém chegava a ter necessidade. Barnabé foi um dos que vendeu algo (v. 36). E é bom lembrar que já na companhia de Jesus os discípulos mantinham um caixa comum, que era “alimentado” por doações (Lc 8.3) e que um fundo coletivo de recursos não existia sem discussões (Jo 12.6; 13.29).
A vida em grupo com caixa único não foi, portanto, uma prática iniciada com a igreja pós-Ascensão e Pentecostes. Os apóstolos já traziam consigo a experiência dessa prática desde o tempo do discipulado no movimento de Jesus. Também não se tratava de experiência exclusiva do grupo de Jesus. O relato de Lucas mostra uma comunidade agindo de acordo com a Lei, de que não deve haver pobres (Dt 15.4), e também no contexto da ideia difundida no mundo grego de que a “amizade elimina a propriedade”. Aristóteles, por exemplo, ensinava que aos amigos tudo é comum. Platão dizia que a propriedade é fonte de todo o mal. A filosofia cínica, contemporânea do Novo Testamento, dizia que Deus criou todas as coisas para o aproveitamento comum (BRAKEMEIER, 1985, p. 13).
Pesquisas perguntam pela historicidade do relato de Lucas. Estaria ele projetando uma comunidade ideal a partir de alguns casos? Estaria anunciando a concretização do reino de Deus com a volta de Cristo em breve? Estaria valorizando os primórdios para incentivar a missão na segunda geração?
Outra questão é que, numa leitura rápida, pode parecer que, para participar da comunidade, o pretendente devia se desfazer das posses, doar o resultado aos apóstolos e passar a viver da “poupança” comum. Isso foi mais ou menos o que aconteceu na experiência de Qumran, onde os futuros monges entregavam os bens à instituição e passavam a viver na pobreza. O caso de Ananias e Safira (At 5) poderia provar que esse também era o modelo citado por Lucas? A pergunta que Pedro faz a Ananias (v. 4) diz que não. As versões da NTLH e da ARA não são claras como a de Lutero: “Hättest du den Acker nicht behalten können […]?” (Tu não poderias ter ficado com o terreno?). A venda de bens acontecia “à medida que alguém tinha necessidade”. A tragédia de Ananias foi a mentira.
Os apóstolos não administravam uma “poupança gorda” com a soma do dinheiro resultante da venda de propriedades dos admitidos à comunidade. Porém, à medida que aparecia a necessidade, alguém vendia algo e doava o resultado aos apóstolos, que passavam a ter a responsabilidade de aplicar o recurso seguindo a lei de que não deve haver pobre (Dt 15.4).
3. Tem graça cooperar, Bruno?
Bruno Engel Justin, 25 anos, filho de agricultores em Três Forquilhas/RS, um dos fundadores da JECI (Juventude Evangélica da Comunidade de Itati/RS), recém–formado em Administração de Empresas, é presidente da COMAFITT (Cooperativa Mista de Agricultores Familiares de Itati, Três Forquilhas e Terra de Areia). Ele responde à pergunta: qual é a graça de trabalhar num sistema cooperativado?
Entendo que é um paradigma que a gente vive, de um lado, temos a cooperação e, do outro, a competição. A competição tem uma lógica muito perversa. Ela divide a sociedade entre ganhadores e perdedores. O problema disso é que quem ganha acumula vantagem e por isso ganha de novo. Por outro lado, quem perde acumula desvantagens. Quem precisa de emprego e é reprovado numa entrevista, provavelmente vai ter maior dificuldade de ser aprovado numa próxima. Este é o problema da lógica da competição: ela prega que precisamos vencer os outros. E isso não se autorregula. A distância entre ganhador e perdedor aumenta cada vez mais.
O cooperativismo – quando de fato adota o sistema de cooperação e não de empresa competitiva – é uma ferramenta de transformação social. As pessoas envolvidas podem chegar mais longe alcançando objetivos juntos. A COMAFITT se comprometeu com o papel de fazer as pessoas cooperarem entre si. Todos temos objetivos, temos sonhos. Isso pode ser pessoal, mas quando a gente constitui família, passa a ter sonhos como família. Da mesma forma, quando a gente se junta numa organização, passa a ter objetivos comuns nessa organização. Aí nasce a cooperação. A COMAFITT tem uma organização por famílias, os grupos de produção das bananas, das hortaliças, do açúcar mascavo, da produção orgânica. Cada grupo se reúne e discute com as pessoas que estão, digamos, no mesmo ramo. Isso facilita a discussão. Outra coisa importante é a questão da participação, do protagonismo e do empoderamento das pessoas. Assim, fazendo uso da ferramenta da cooperação, as pessoas agricultoras assumiram um papel social. Trata-se de um avanço em relação ao sistema individual de negociação com um atravessador. Esse dizia “tu plantas e o resto deixa comigo”. Nesse resto está todo o processo da constituição do preço, no qual o valor pago ao produtor não se vincula ao custo de produção, mas à conveniência do intermediário. Quando, na cooperativa, essas pessoas assumem o papel de discutir o mercado para a sua produção, isso as coloca em outro nível de valorização e participação. E isso é possível porque estão juntas. Um gargalo importante sempre é a logística. E hoje a COMAFITT, com 270 associados, pode dizer que o agricultor de uma pequena localidade está entregando a sua produção semanalmente em mais de 700 pontos de entrega. O alimento que ele plantou e colheu está chegando a muitas escolas pelo Estado afora. Isso só é possível porque essas famílias se organizaram e maximizaram essa ação. E essa cooperação não termina na cooperativa local. Na continuidade dessa está uma central de cooperativas e a organização em rede. A COMAFITT tem um dispositivo no seu estatuto que delimita o seu território aos municípios de Itati, Terra de Areia e Três Forquilhas. Ela foi pensada para não crescer em termos de território, mas, enquanto organização, justamente fomentar os processos localmente. Ela precisa se dispor a resolver os problemas dos agricultores desses três municípios. Ela pode ajudar agricultores de outros municípios a constituírem a sua própria ferramenta, mas não pode aumentar o seu território. Então o cooperativismo proporciona isso. Ele é uma ferramenta para reduzir desigualdades e distribuir renda. No nosso caso, cada associado é diferente e isso é muito legal porque a cooperativa tem a missão de vender a produção, mas, além disso, tem a missão de enxergar as pessoas. Por trás da produção vendida tem um homem, uma mulher, um jovem, uma criança. Como a gente vai pensar a permanência desse jovem no meio rural? Como a gente vai ajudar na alimentação dessa criança na escola? Tudo isso precisa ser visto. E na questão da diferença entra também a capacidade produtiva de cada família: vamos imaginar que uma família produz 100 caixas de bananas; outra, dez. E nós não temos colocação no mercado para toda essa produção. Então a gente pega 50 caixas daquele que tem 100 e pega toda a produção daquela família que tem dez. Quem vendeu toda a produção ficará contente com a cooperativa e ajudará na discussão de como encaminhar a questão das 50 caixas que sobraram.
A questão da cooperativa em rede é pertinente, porque a COMAFITT, por exemplo, não pode se organizar e sair estado afora atropelando os processos locais. Se tem uma venda de beterraba e cenoura, por exemplo, em Santa Maria, o ideal é a cooperativa local fomentar a produção e a comercialização desse produto numa cadeia curta. Se em Santa Maria não se produzem bananas e aqui no litoral se produz com sobra, então é preciso levar cargas de bananas para lá. Assim uma região complementa outra e quando a cooperativa de Santa Maria sai para entregar seus produtos nas escolas, ela tem agregado mais um produto à sua cesta, que é a banana vinda de mais longe, por meio do transporte de uma cooperativa em rede. Assim acontece a economia de recursos na logística partilhada. Essa é uma prática importante das cooperativas em rede: o transporte de uma cooperativa atravessa o território de outras, coleta produção excedente e a leva para onde está faltando.
4. Imagens para a prédica: possibilidades e limites
Facilmente encontramos na internet imagens conhecidas sobre o valor da união. Se existir o recurso da projeção de imagens, o pregador e a pregadora podem escolher uma dessas imagens como ilustração, eventualmente acompanhada de perguntas como: que possibilidades e limites essa figura expressa? Pelo link abaixo pode ser acessada uma curta história, que pode introduzir a prédica, quando não há o recurso da projeção: .
Imagem conhecida no mundo do cooperativismo. Um dos seus limites é evidentemente a figura do burro. A imagem desse animal, que poderia ser exemplo em uma fala sobre sabedoria, é usada costumeiramente para xingamento de quem é considerado bobo. O termo “burrice” vem à mente quando queremos falar da falta de compreensão de alguém. Os ouvidos podem se trancar pela ideia “está me chamando de burro”. Imagem conhecida no mundo dos movimentos sociais de caráter reivindicatório.
Bastante usada em conexão com a conhecida expressão “povo unido jamais será vencido”. Os pequenos peixes, em regra, vítimas do peixe grande, podem vencer seu predador em um sistema de organização. Pode fechar os ouvidos de quem é antipático ao discurso que compara o peixe grande ao dono dos meios de produção e os peixes pequenos aos operários.
Para não trancar ouvidos, pode-se, quem sabe, abordar a dimensão familiar. Nas famílias ainda temos exemplos entre irmãos, irmãs, pais e mães que, quando um ou uma enfrenta uma necessidade financeira, os outros e outras se organizam e ajudam. Existem casos de alguém se desfazer de uma posse importante para tirar outrem de uma dívida. Entre irmãos e irmãs existe. Entre primos e primas é mais difícil de existir. É possível imaginar algo assim no âmbito da comunidade cristã?
Uma família pode ser composta de pai, mãe, filho e filha. A filha, uma miudinha que a mãe vive forçando a comer algo. O filho, um adolescente insaciável que não para de assaltar a geladeira. Como essa família fará justiça na distribuição dos gastos com o rancho do mês? A família simplesmente vai deixar por isso mesmo. É possível imaginar algo assim no âmbito da comunidade cristã?
Na pregação sobre a vida em comum na comunidade cristã primitiva, sugiro evitar a polarização entre capitalismo e comunismo. Vamos, como o Bruno fez, procurar resposta para a pergunta: onde está a graça de trabalhar num sistema de cooperação? Na comunidade em que você congrega existe alguma forma de cooperação?
Outro tema fascinante, porém, talvez amplo demais para uma pregação, são experiências, no decorrer da história, de organização comunitária com partilha de bens. O leque é amplo, desde Qumran, comunidade de Herrnhut, movimentos messiânicos no Brasil, comunidades alternativas, como Piracanga na Bahia ou as Ecovilas espalhadas pelo Brasil.
O link abaixo leva a um texto replicado pelo IHU-Instituto Humanitas UNISINOS, no contexto da pandemia da Covid-19: “Nesse contexto, 170 acadêmicos holandeses escreveram um manifesto em cinco pontos para a mudança econômica pós-crise da Covid-19, baseado nos princípios do decrescimento”, inicia o artigo. Achei que pode, eventualmente, servir de inspiração para a atualização do texto da pregação.
Lembre-se dos hinos:
LCI 13: “Corações em fé unidos”
LCI 563: “Barnabé”
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. O “Socialismo” da Primeira Cristandade. São Leopoldo: Sinodal. 1985. 58 p.
NEUE CALWER PREDIGTHILFEN. Hrsg. Hans Bornhäuser et alli. Exaudi bis Ende des Kirchenjahres. Calwer Verlag Stuttgart, 1980. Zweiter Jahrgang, Band B, p. 99ss.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).