O dilema da obediência a Deus e às pessoas
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Atos 5.27-32
Leituras: Salmo 150 e João 20.26-31
Autoria: Joel Haroldo Baade e Aline Danielle Stüewe
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 03/04/2016
1. Introdução
As três leituras bíblicas previstas para este dia apresentam, pelo menos aparentemente, temáticas distintas. O texto da prédica, Atos 5.27-32, relata a presença dos apóstolos diante do Sinédrio (Conselho Superior), o mais alto tribunal religioso dos judeus. O Grande Sacerdote indaga os apóstolos a respeito do testemunho de Cristo que havia sido realizado em toda a cidade, o que lhes havia sido expressamente proibido. Diante do Conselho, composto também pelos chefes religiosos e pelos professores da Lei, Pedro expressa a necessidade de obedecer a Deus e não às pessoas; confessa então a sua fé no Cristo que viveu, foi morto e ressuscitou pela ação de Deus, que continua a agir pela ação do seu Santo Espírito.
O Salmo 150 conclama para o louvor a Deus no seu templo, por seu poder e por suas maravilhas. O salmista convida para que todos os instrumentos musicais sejam postos a serviço do louvor a Deus. O Deus que merece todo o louvor é o que ressuscitou Jesus Cristo, conforme confessa Pedro no texto de Atos 5.30: “O Deus de nossos pais ressuscitou a Jesus, a quem vós matastes, pendurando-o num madeiro”.
E, finalmente, o evangelho previsto para o dia, João 20.26-31, relata a aparição de Jesus aos discípulos enquanto estavam reunidos a portas trancadas e a confrontação com Tomé, que precisou tocar as feridas de Cristo para crer. Jesus exalta a atitude de quem não precisa ver para crer.
Assim, propõe-se a relação dos três textos a partir de atitudes que são essenciais à vivência cristã: a fé (Jo 20.26-31), o louvor (Sl 150) e o testemunho (At 5.27-32). Os três elementos são fundamentos da existência cristã e são indissociáveis. Fé sem louvor e testemunho é oca; louvor sem fé e testemunho é mero sentimentalismo; testemunho sem fé e louvor é hipocrisia.
2. Exegese
Atos 5.27-32 integra a primeira parte do livro de Atos dos Apóstolos, na qual se relata o início da Igreja Primitiva (At 1.1-12.25). A partir do capítulo 13, relata-se a missão de Paulo. A primeira parte, por sua vez, está dividida em dois blocos: a) 1.1-8.3, no qual se relata sobre a comunidade de Jerusalém; e b) 8.4-12.25, em que se trata da missão para fora de Jerusalém (SCHNEIDER).
O contexto maior da perícope analisada é, portanto, o desenvolvimento da igreja cristã em Jerusalém. Schneider propõe uma divisão desse bloco em seis partes: 1) antes de Pentecostes (1.1-26); 2) Pentecostes (2.1-47); 3) cura, pregação, prisão e libertação (3.1-4.37); 4) Ananias e Safi ra (5.1-11); 5) crescimento da comunidade e reações (5.12-42); 6) os “helenistas”, Estêvão e a perseguição (6.1-8.3). Assim, o contexto menor da perícope são o desenvolvimento da comunidade cristã em Jerusalém e as reações daí decorrentes (SCHNEIDER). O texto imediatamente anterior (At 5.17-26) relata a prisão dos apóstolos pelos líderes judeus e sua libertação por um anjo, bem como a surpresa e receio das autoridades diante do respaldo dos apóstolos pelo povo da cidade. O texto seguinte relata a intenção dos líderes do conselho judeu de matar os apóstolos e a intervenção de Gamaliel que levou ao castigo e à libertação deles (At 5.33-42). O texto da prédica, assim, relata o diálogo dos apóstolos com os líderes do Conselho Superior, ou Sinédrio, após sua segunda prisão.
Para análise versículo a versículo, foram comparadas as versões Almeida Corrigida Fiel (ACF), Almeida Revista e Atualizada (ARA) e Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH).
V. 27 – O primeiro versículo serve de introdução ao diálogo. ARA prefere usar a transliteração do termo grego Sinédrio quando se refere ao conselho judeu, enquanto as outras versões usam simplesmente “Conselho”. Importa destacar que não se tratava de qualquer conselho, mas simplesmente da maior autoridade judaica em toda a Judeia. Isso pode servir de evidência para a importância da causa de Jesus e dos apóstolos. Uma segunda diferença está na interpretação feita por NTLH quanto à condição dos apóstolos diante do conselho. Na NTLH, diz-se apenas que “o Grande Sacerdote disse”, sendo que nas demais traduções prefere-se “o sumo sacerdote os interrogou”. O texto da NTLH pode levar a entender que a situação dos apóstolos era cômoda e que haviam sido convidados para um diálogo fraterno com os membros do conselho, o que não era o caso; a sua situação era de prisão e possível condenação à morte. Portanto tratava-se realmente de um interrogatório e julgamento. O grande sacerdote ou sumo sacerdote é a autoridade máxima dentro do conselho. Ou seja, o interrogatório dos apóstolos não foi conduzido por subordinados, mas pela liderança judaica responsável por toda a região da Judeia.
V. 28 – Neste versículo, não há diferenças significativas entre as versões analisadas. Trata-se aqui das palavras do sumo sacerdote, inquirindo os apóstolos. Duas questões estão em pauta: a propagação dos ensinamentos de Jesus, o que lhes havia sido proibido segundo o texto, e a acusação de que o conselho tinha sido responsável pela morte de Jesus.
Os versículos seguintes (29-32) apresentam a resposta de Pedro e dos demais apóstolos à pergunta do sumo sacerdote.
V. 29 – O versículo tem duas partes. A primeira é uma introdução à fala, na qual se declara que a resposta que será dada não é exclusivamente de Pedro, mas de todos os apóstolos. A referência explícita a Pedro deve-se a seu papel de liderança. Na segunda parte, encontra-se o ponto alto do texto: a confissão de que importa obedecer a Deus e não às pessoas (NTLH). As versões ACF e ARA preferem o emprego do conceito “homens” como tradução do grego anthropōs, o que não está errado, mas pode ser indicativo de uma visão androcêntrica. O termo grego expressa o gênero humano; assim “as pessoas” expressa melhor o texto original.
A resposta dos apóstolos contrapõe a obediência a Deus, ou o seguimento a Jesus, à obediência às leis humanas, ou do conselho diante do qual se encontravam naquele momento. Assim, não se trata de uma discussão abstrata, mas de uma escolha que ali deveria ser feita pelos apóstolos: continuar a confessar a Jesus ou negar os seus ensinamentos e submeter-se às leis do conselho. Não é a primeira vez que Pedro e João respondem ao Conselho Superior dessa forma. Já em Atos 4.19s, os apóstolos questionam as autoridades religiosas: “Os senhores mesmos julguem diante de Deus: devemos obedecer aos senhores ou a Deus? Pois não podemos deixar de falar daquilo que temos visto e ouvido”.
V. 30 – A diferença entre as versões reside numa inversão feita pela NTLH. Coloca-se primeiro a acusação de que os membros do conselho foram responsáveis pela morte de Jesus e, em seguida, afirma-se que o Deus dos antepassados o ressuscitou. Essa mudança leva a uma mudança de ênfase. O texto grego, ao qual as versões ACF e ARA são mais fiéis, afirma que o Deus dos pais ressuscitou Jesus, o qual havia sido morto pelos que agora interrogavam os apóstolos. Ou seja, trata-se de uma especificação do Deus a quem se deve obediência, referido no v. 29, e não de uma acusação ao conselho em primeiro lugar.
V. 31-32 – Os dois versículos finais do texto não possuem diferenças significas entre as versões analisadas. Confessa-se a Jesus como o que está à direita de Deus, ou seja, que tem autoridade, e isso para que o povo de Israel tenha oportunidade de arrepender-se de seus pecados e receber a remissão/perdão. Já no último versículo, acentua-se o papel dos apóstolos como testemunhas do Cristo, que concede o perdão, mas igualmente se confessa que isso não é resultado de capacidade individual e mérito próprio, e sim fruto da ação do Espírito Santo, concedido pelo próprio Deus aos que fazem a sua vontade. Assim, no final do texto, evidencia-se um tema que é central no livro de Atos, qual seja, a ação do “Espírito Santo como aquele que confere força para o testemunho da palavra e que orienta as decisões e a missão da comunidade: 1.8; 4.8; 6.3; 8.29; 10.19; 10.44-48; 13.2-3; 15.8 e muitos outros” (SCHNEIDER, p. 72).
3. Meditação
Há pessoas que vivem a vida buscando agradar os outros. Quando nos preocupamos excessivamente com o que as outras pessoas pensam a nosso respeito, facilmente esquecemos a quem realmente importa agradar nesta vida: a Deus!
O texto de Atos revela que agradar a Deus significa, muitas vezes, desagradar muitas pessoas. Os apóstolos estavam diante de uma grande decisão: agradar a Deus ou às pessoas? Eles sabiam que, ao optarem por Deus, isso poderia significar a morte, mas, mesmo assim, não tiveram dúvidas ao responder para os líderes religiosos judeus: “Nós devemos obedecer a Deus e não às pessoas”. Obedecer a Deus, agradar a ele e fazer a sua vontade pode significar ir contra interesses pessoais, políticos e sociais. No caso dos discípulos, significou fazer inimigos.
Ministras e ministros religiosos têm a responsabilidade de testemunhar o evangelho, mesmo que isso signifi que desagradar muitas pessoas. Quantos já passaram pela situação de, após uma pregação profética, ser abordados na saída do culto e ouvir: “Hoje a pregação foi muito dura”. A pregação não é um instrumento que serve para massagear o ego dos ouvintes. Ela é a Palavra de Deus sendo anunciada. Infelizmente, cada vez mais as pessoas vão apenas em busca daquilo que querem ouvir. Por isso igrejas que pregam a teologia da prosperidade conquistam tantos ouvintes. Temos a oportunidade de seguir a Jesus, que morreu por defender a justiça, a liberdade e o amor e ressuscitou para nos dar a salvação, mas muitas pessoas preferem seguir o Jesus que o ouvido quer ouvir. Numa pregação, nem sempre as pessoas vão sair felizes com o que ouvem. Não é esse o objetivo. O evangelho mexe conosco, abala as nossas estruturas, faz-nos questionar atitudes e rever a própria vida.
A sociedade preocupa-se excessivamente com a opinião e a vontade das pessoas: “Ah, mas se eu deixar de fazer isso, essa pessoa vai ficar brava; se eu disser isso, posso ser julgado; é melhor não me envolver, já tenho tanto com o que me preocupar…” Preocupar-se com o que as outras pessoas pensam é perigoso, porque isso significa que facilmente esquecemos de fazer a coisa certa e fazemos aquilo que a maioria quer que façamos.
A quem estamos agradando? Às pessoas ou a Deus? O servo de Jesus não pode agradar a Deus e às pessoas, e ainda assim continuar na condição de discípulo dele. Quando agimos assim, estamos simplesmente negando a nossa fé. Nosso viver diário deve ser coerente com o que determina a Palavra de Deus, ainda que isso desagrade muitas pessoas.
4. Imagens para a prédica
O menino e o imperador
Um menino estava sentado junto ao portão que dava acesso à propriedade de seu pai quando Napoleão aproximou-se com seus homens e queria cruzar aquela propriedade, porém o menino o impedia.
Zangado, o imperador gritou com ele:
“Menino, eu sou Napoleão Bonaparte, o imperador. Abra este portão!”
Muito educado, o menino tirou o chapéu e perguntou: “O senhor vai querer que eu desobedeça meu pai? Este portão está fechado, aqui ninguém passa, conforme meu pai determinou!”
Napoleão virou-se para seus generais e disse: “Deem-me mil homens como este, e conquistarei o mundo todo”, e foi por outro caminho (HORT, Mário. O Mensageiro, edição 2005, p. 42).
5. Subsídios litúrgicos
É importante que durante toda a liturgia destaque-se a afirmação de Pedro e dos outros apóstolos: “Importa obedecer a Deus e não às pessoas”.
Confissão de pecados
Querido e amado Deus, confessamos que muitas vezes estamos mais preocupados em agradar as pessoas do que a ti. Confessamos que buscamos agradar as pessoas para obter benefícios e vantagens, mesmo sabendo que para isso precisamos fazer algo que não é da tua vontade. Confessamos que por medo e comodidade deixamos de ser voz profética neste mundo e fazemos aquilo que a maioria faz. Perdoa, Senhor, a nossa falta de compromisso com o evangelho. Perdoa-nos quando, por medo, covardia e comodidade, não testemunhamos em palavras e ações a nossa fé em ti. Perdoa-nos quando não temos coragem de dizer, assim como disseram os apóstolos: “Importa obedecer a Deus e não às pessoas”.
Amém!
Sugestão de hinos
HPD 383 – A Lei do Senhor é perfeita; HPD 194 – Como tu queres, Senhor sou teu; HPD 411 – Se eu tiver Jesus ao lado; HPD 452 – Senhor, eu quero amar-te.
Bibliografia
BIBLEWORKS – Versão 8.0. Norfolk: Bibleworks, 2009.
SCHNEIDER, Nélio. Roteiro para a Leitura da Bíblia. São Leopoldo: Sinodal, 1996.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).