Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Atos 8.26-40
Leituras: João 15.1-8 e 1 João 4.7-21
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 5º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 10/05/2009
1. Introdução
A videira (a igreja) produz os frutos que só nascem e crescem se estiverem ligados ao tronco (Jesus). Essa é uma ligação conectada pelos ramos (do Espírito). A videira espalha-se sem que o viticultor consiga controlar seus limites (expansão missionária). O evangelho, assim como a videira, vai até os confins do mundo (a terra de Méroe).
O amor de Deus manifesta-se em nós (pelo Espírito), porque ele nos amou primeiro. Se amamos a Deus, ele permanece em nós e nós nele. Vinculado a esse amor que nos permite o amor fraternal (que nos amemos uns aos outros), o Espírito revela-se em nós e o temor já não existe mais. O amor é a seiva que alimenta os ramos (a igreja) e permite a expansão da igreja (a partir da obra missionária de Filipe) para pessoas (etíope) e lugares impensáveis (reino de Méroe).
Um caminho cortava a Palestina, partindo de Jerusalém em direção ao sudoeste, passava por Belém, Hebrom e juntava-se à estrada principal para o Egito, em Gaza. Tratava-se de uma rota importante, por onde transitava a metade do mundo conhecido. Após a lapidação de Estevão (At 7.54-60), estabelece-se, em Jerusalém, uma grande perseguição aos cristãos (At 8.1-3). A igreja cristã nasce e espalha-se mediante o sofrimento de seus principais atores, lembrando a célebre frase de Tertuliano: “O sangue dos mártires é a semente da igreja”. Nesse movimento de fuga, Filipe teria fugido para a Samaria, onde pregara o evangelho (At 8.4-8).
2. Exegese
V. 26-28 – Apresentação dos personagens
Filipe é um personagem conhecido no evangelho. Não se trata do apóstolo de Jesus (Mt 10.3), mas de um dos diáconos escolhidos para servir as mesas (At 6.5). É um evangelista itinerante, que se fixa em Cesaréia. Trata-se de uma região marcada pela cultura grega. O capítulo 8 de Atos dos Apóstolos sintetiza a ação missionária de Filipe com sua presença em Samaria (v. 4-8); depois dos v. 26-40, Filipe é mencionado apenas mais uma vez no Novo Testamento (At 21.8), quando Paulo desce de Tiro a Cesaréia, de onde parte depois para Jerusalém com alguns discípulos da igreja de Filipe. Sabe-se por esse texto que Filipe possui quatro filhas profetisas. No início, é um mensageiro que manifesta a Filipe sua missão; trata-se de um “anjo do Senhor”, que fala com ele (Mt 1.20; 2.19; Lc 2.9; At 5.19; 12.7,23). Posteriormente, esse mensageiro toma a forma de “Espírito” (v. 29, 39). A ordem de levantar (anístemi) corresponde ao mesmo verbo usado para “ressuscitar”. A tradução de Almeida fala: “Dispõe-te e vai para a banda do Sul”, mas o termo aqui traduzido corresponde a “meio-dia” (hora em que o sol está forte e, portanto, os caminhos ficam desertos).
O eunuco1 é um etíope. Provavelmente não era um prosélito, mas alguém que “temia o Senhor”. Era um servo de uma rainha guerreira, cuja dinastia matrilinear era denominada “Candace”, que detinha o poder na região de Méroe, sul do Egito. O nome próprio da rainha deveria ser Amanitére. Trata-se de um dos poucos textos do Novo Testamento que faz referência a uma mulher que tem poder e autoridade. É bom considerar que a Etiópia, que aparece nesse texto, não corresponde ao território resultante da expansão da Abissínia – a Etiópia que conhecemos atualmente. Na verdade, essa Etiópia significava “o país dos caras queimadas”; a região identificada aqui corresponde à Núbia ou ao Sudão egípcio. Os habitantes da Etiópia (Sl 68.31; Is 18.7; Sf 3.9) haviam tomado conhecimento do javismo a partir dos séc. VI e V a.C., quando havia uma colônia militar judia em Elefantina. Segundo a informação do texto, ele era um alto funcionário da rainha, responsável pelo tesouro do reino, e era eunuco – um homem que não tinha livre acesso ao culto judaico (Dt 23.1). Essa prática de subir a Jerusalém para o culto ou para encontrar-se com Jesus é comum no primeiro século (Jo 12.20). O anúncio do evangelho ao eunuco segue uma estrutura de chegada do evangelho às pessoas excluídas dos meios judaicos: aproximação, pregação, conversão; sacramento e arrebatamento (Lc 24.13-31).
V. 29-35 – Pregação de Filipe
Chama a atenção para a cena criada por Lucas: o eunuco traz consigo a Escritura, e Filipe é o portador do Espírito. Desse encontro da Escritura com o Espírito nasce a possibilidade da nova vida. A pregação de Filipe consiste no núcleo do texto e trata-se de bem mais do que de uma mera explicação de Isaías 53.7,8, numa interpretação tradicional da comunidade cristã nascente: João 1.29, 36; 1 Coríntios 5.7; 1 Pedro 1.19; Apocalipse 5.12. Jesus é identificado como o servo sofredor de Isaías, porque sua morte redimiu o pecado da humanidade: Atos 3.13; Lucas 4.17-20. A fórmula que o texto segue é a de pergunta e resposta – uma fórmula pedagógica já adotada por Lucas 24.13-27. A consequência disso é a vontade do eunuco de se batizar. A ordem é do anjo do Senhor, que posteriormente aparece como Espírito. Após o diálogo inicial, é o eunuco quem convida Filipe para subir no carro (v. 31).
V. 38 – Ministração do sacramento
Assim como em Lucas 24.30, aqui também acontece a ministração de um sacramento. Enquanto em Lucas se trata da Santa Ceia, aqui o foco é o batismo do eunuco. O texto repete a fórmula da tradição cristã desde o batismo do próprio Jesus: com água (Mt 3.16; Mc 1.8; Jo 1.33; 3.5; At 10.47). Essa fórmula batismal deve ter sido uma adição posterior dos manuscritos ocidentais. O batismo acontece após o eunuco declarar sua fé em Jesus. O texto refere-se a uma prática comum no final do primeiro século: descer às águas (mergulho) como sinal da morte em Cristo para o pecado e subir (emergir) como sinal da ressurreição, da nova vida (Rm 6.3-14). Mais uma vez, percebe-se a iniciativa do eunuco de descer às águas (v. 38). Esse sacramento é ministrado nas cercanias de Bet Sur, segundo a tradição – cerca de hora e meia ao norte de Hebrom. É notável que Filipe realiza nesse ato a profecia de Isaías 56.1-8, quando os gentios e eunucos que guardam as leis do Senhor são recebidos no culto da reconstrução de Jerusalém. A igreja nascente representa uma nova reconstrução da cidade santa (Ap 21.2).
V. 39 – Separação dos personagens
Assim como o anjo do Senhor comunica a missão a Filipe, agora o mensageiro denominado de “Espírito do Senhor” arrebata-o da presença do eunuco. Segundo a descrição do texto, não há nenhum espanto no eunuco por causa desse arrebatamento – parece já ser algo esperado. É notável que a fórmula de arrebatamento se repita em diversos textos (At 22.17; 27.15; 2 Co 12.2,4; Ap 1.10; 4.2; 12.5); a presença do Espírito (de Deus) provoca um ato misterioso de ausência física.
Quanto ao eunuco, esse continua seu caminho de volta à Etiópia. Dessa forma, fica estabelecida a presença do cristianismo na chamada “Etiópia”. Considerando apenas o livro de Atos, esse é o primeiro sinal de expansão do evangelho para fora das terras da Palestina.
V. 40 – Conclusão
O texto encerra com o prosseguimento de uma viagem missionária de Filipe, que passa por Azoto e finalmente se estabelece em Cesaréia (At 21.8).
3. Meditação
A comunidade dos que criam reunia-se ao redor dos apóstolos e daqueles discípulos que se agregaram a ela. Pode-se dizer que se tratava do “resto” que sobrara a partir dos episódios da morte e ressurreição de Jesus Cristo. A igreja cristã nascera a partir do derramamento do Espírito Santo sobre a comunidade de Jerusalém (At 2.1-4). Era a igreja de Jerusalém, dirigida pelos apóstolos, que tinham uma experiência significativa de comunhão (At 2.42-47). Os batizados, as curas e as pregações faziam parte do cotidiano dessa experiência (At 2.37-41; 3.1-10; 11-26). Essa relativa liberdade dos discípulos começa a ser limitada quando os sacerdotes do Templo e os saduceus percebem que o “crucificado” estava de volta à comunidade dos crentes: têm início as perseguições. Pedro é preso e tem que se explicar diante do Sinédrio (At 4.1-22), e a igreja ora e continua a partilhar uma experiência de fé e comunhão (At 4.23-36). Aparecem os primeiros problemas internos da comunidade: a mentira de Ananias e Safira (At 5.1-11); novas prisões (At 5.17-32); a reivindicação dos helenistas (At 6.1-7). Um raio de esperança nasce com a defesa de Gamaliel, mas que resulta em açoites e proibições (At 5.33-42). As perseguições se acirram e culminam com a defesa e o apedrejamento de Estevão em praça pública (At 6.8-7.60). O resultado dessa perseguição à igreja foi a primeira diáspora da comunidade (At 8.4).
Por estranho que pareça, essa sequência de dificuldades enseja as primeiras missões cristãs mundo afora. São os helenistas, aqueles cujas viúvas estavam sendo esquecidas na distribuição diária (At 6.1-7), que sublimam a perseguição e lançam a evangelização. Primeiro de Samaria, a terra rejeitada pelos judeus (At 8.4-8), onde Filipe planta as primeiras sementes do evangelho, que posteriormente são ratificadas por Pedro e João (At 8.14-25). Segue- se a missão para o sudoeste com a viagem de Filipe para Gaza (At 8.26-40).
A ordem que Filipe recebe corresponde ao mistério da ressurreição: “Levanta-te (dispõe-te, ergue-te, ressuscita) e vai pela estrada que desce de Jerusalém à Gaza2 ”. Sacudido pela recepção do evangelho em Samaria, Filipe agora é desafiado a uma missão internacional. O medo das perseguições, prisões e mortes necessitava ressuscitar mediante a coragem de ir muito mais longe. As experiências que haviam se concentrado na conversão de judeus e prosélitos avançam agora para estrangeiros de fora da Palestina. Se antes se endereçava aos “circuncidados”, agora abrange também aquele que era rejeitado nos cultos judaicos: o eunuco. Filipe descobre que ele é portador do Espírito Santo, mas que o conhecimento das promessas de Deus não está circunscrito aos judeus (aos cristãos de Jerusalém): o etíope trazia um exemplar do Antigo Testamento, o qual lia enquanto viajava.
O núcleo da mensagem do evangelho é que Jesus Cristo fora humilhado e não havia recebido a devida justiça, mas pela ressurreição havia se tornado o Messias de Deus. O eunuco (adorador de Javé), que antes era rejeitado pelo culto judaico, agora podia tornar-se herdeiro das bênçãos divinas pela aceitação da graça de Cristo. A pregação de Filipe é tão incisiva, que o próprio etíope o questiona: “Que impede que seja eu batizado?”. A graça de Cristo excede as limitações e barreiras institucionais. O Espírito Santo não reconhece as normativas humanas, e o mistério da ressurreição não rompe apenas com o túmulo de José de Arimatéia: rompe com as determinações.
Precisamos refletir sobre a liberdade do Espírito e a prisão das instituições. É verdade que os movimentos não se sustentam pela liberdade, mas é também verdade que as prisões institucionais acabam por “mortificar” a liberdade do Espírito. Assim, nossa reflexão necessita ser dinâmica e constante: nunca se assentar sobre as normativas institucionais e nunca desconhecer a necessidade da disciplina. O equilíbrio entre disciplina e liberdade necessita estar diante dos olhos de todas as pessoas que se envolvem com o evangelho: autoridades, pastores e pastoras, evangelistas, diáconos e diaconisas etc. Quando uma instituição determina que esse ou aquele grupo não deve ter acesso à igreja, precisamos fazer um exercício de análise de fundamentos e perceber pelo testemunho das Escrituras e do Espírito (ambos juntos, e nunca um isoladamente) se as normas estão adequadas à liberdade do Espírito e ao testemunho das Escrituras. Andando sobre um tênue limite, com seriedade e temor, avançaremos com coragem pelo caminho de Jerusalém à Gaza.
4. Imagens para a prédica
Taças com bolinhas
Prepare três taças transparentes sobre o púlpito (ou mesa), cada uma delas contendo bolinhas de gude. Cada taça deve conter bolinhas de uma mesma cor (uma taça com bolinhas azuis, outra com bolinhas verdes, outra com bolinhas pretas etc.). Ao lado deixe uma tigela transparente vazia, com capacidade suficiente para o conteúdo das três taças. Em determinado momento da prédica (na conclusão, por exemplo), misture o conteúdo das três taças na tigela, salientando como a mistura das cores proporciona uma visão mais bela pela diversidade de cores (é importante mostrar a tigela contra um fundo claro – parede, vestes, paramentos). Saliente que a diversidade reflete melhor o amor de Deus.
Ramos cortados
Antes do culto, corte um ramo de uma planta que murcha com facilidade e traga-o para o púlpito (ou mesa). Ao encerrar a sua prédica (sobre Jo 15.1-8), mostre para a congregação como fica o ramo que é separado de seu tronco. Quando não estamos ligados a Cristo (e a seu corpo – a comunidade), acabamos murchos no Espírito.
5. Subsídios litúrgicos
Litania: O Senhor é senhor de todas as pessoas.
D: Santo Deus, Senhor de nossas vidas, permite olhar para as pessoas que nos cercam com amor verdadeiro, de tal sorte que possamos ver o teu Ser Eterno refletindo em suas faces.
P: Que a tua face, Senhor, seja percebida por nós na multiplicidade de tua criação!
D: Bendito Deus, que o estrangeiro, o negro, o índio, o branco e qualquer pessoa integrante de outras etnias sejam acolhidos em nosso coração com o reconhecimento de que todos os seres humanos são irmãos.
P: Que a tua face, Senhor, seja percebida por nós na multiplicidade de tua criação!
conhece em profundidade, vejamos o ser humano carente de teu amor e desejoso de tua graça, a despeito das diferenças que nos distanciam.
P: Que a tua face, Senhor, seja percebida por nós na multiplicidade de tua criação!
D: Amado Deus, ao encontrarmos a diversidade de tua criação refletida no modo de vida de cada pessoa, possamos perceber, acima de tudo, o teu carinho para com cada uma delas.
P: Que a tua face, Senhor, seja percebida por nós na multiplicidade de tua criação!
D: Senhor Eterno, faz-nos instrumentos de tua graça para com todas as pessoas que se acercarem de nós ou das quais venhamos a nos acercar.
P: Que a tua face, Senhor, seja percebida por nós na multiplicidade de tua criação!
Oração eucarística:
Bendito Deus, pela graça de Cristo nos ligaste à igreja como o ramo se liga à videira. Que o teu Espírito nos alimente cotidianamente, proporcionando vigor espiritual. Que no amor de Cristo nos sintamos incluídos, de tal sorte que as pessoas possam identificar a tua face em nós. Sobretudo, Senhor, que essa graça e esse amor derramados sobre cada um de nós possam ser compartilhados com quem não te conhece com profundidade e se vincule a Cristo, a videira verdadeira. Sobretudo, que na mesa da comunhão possamos nos sentir um em ti e tu em nós. Amém.
Bibliografia
COMBLIN, José. Comentário bíblico: Atos dos Apóstolos, v. I: 1-12. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1988. WIKENHAUSER, Alfred. Los hechos de los apostoles. Barcelona: Herder, 1967.
Notas:
1 Nada comprova que esse “eunuco” seja um homem emasculado, como os chefes de harém da antigüi- dade; no primeiro século, eunuco poderia significar apenas “ministro”.
2 Bíblia de Jerusalém (8.26).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).