Proclamar Libertação – Volume 34
Prédica: Atos 9.36-43
Leituras: João 10.22-30 e Apocalipse 7.9-17
Autor: Arteno Ilson Spellmeier
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 25/04/2010
1. Introdução
Atos 9.36-43 raramente é usado como texto de prédica e, pela primeira vez, é proposto como texto de prédica na série Proclamar Libertação. Ele relata: 1º Pedro ressuscita uma mulher caridosa chamada Tabita; 2º Isso acontece em seguimento ao agir dos profetas do Antigo Testamento e do próprio Jesus Cristo (1Rs 17.17ss; 2Rs 4.18ss; Mc 5.35-43); 3º Esse ato de Pedro acontece a partir e em função da missão.
Os textos previstos como leituras bíblicas têm na promessa da ressurreição e na figura do pastor que conhece suas ovelhas pelo nome os seus acentos principais.
Portanto missão que não tem o amor que Deus tem por “suas ovelhas” e a pregação da cruz e ressurreição como seu eixo principal está fora de foco.
2. Exegese
O texto de Atos 9.36ss fazia parte originalmente de uma antiga coletânea de textos sobre milagres e grandes feitos do apóstolo Pedro, transmitidos oralmente pelas primeiras comunidades (cf. At 3.1ss, 5.12ss).
Lucas, o autor de Atos dos Apóstolos, dispõe-o quase como introdução ao relato do encontro de Pedro com Cornélio, que tem um papel importante na história da igreja primitiva. E isso em dois sentidos: uma vez, olhando para frente, para introduzir o texto seguinte, que fala da universalidade da salvação em Cristo; outra vez, olhando para trás, para garantir que se encontrava na tradição do Antigo Testamento e das práticas de Jesus.
Apesar de preparar o relato posterior, Atos 9.36ss tem uma mensagem própria: Ao ressuscitar Tabita, seguidora de Jesus, bondosa e líder da pequena comunidade de Jope, (1) Pedro encontra-se na tradição dos profetas e de Jesus Cristo e (2) ele a ressuscita para a vida plena, abrangendo a história e a eternidade, qualificando o conteúdo da missão da comunidade.
Pois o relato da ressurreição de Tabita tem um paralelo, quase verbal, no relato de Marcos 5.35-43, em que Jesus ressuscita a filha de Jairo. A mensagem é: Jesus continua a agir através de Pedro. Sua ressurreição tem continuidade na ressurreição para a vida de Tabita. A estreita vinculação com a atuação de Jesus está garantida. A práxis atual de Pedro tem sua legitimação na tradição dos milagres de Jesus.
Ao mesmo tempo, o relato da ressurreição de Tabita lembra os relatos de Elias e Eliseu em 1 Reis 17.17-24 e 2 Reis 4.18-37. A estreita vinculação com a atuação dos profetas está garantida. A práxis de Pedro tem a sua legitimação também no Antigo Testamento.
Antes de partir para a apresentação do totalmente novo e revolucionário, que é a universalidade da salvação em Cristo para todos os povos, Lucas olha para trás, assegurando que se encontra na tradição dos profetas e do Jesus histórico.
Pedro encontra-se numa região em que Filipe estava atuando e em que ele já havia fundado inúmeras comunidades (At 8). Pressupõe-se que, enquanto Pedro e outros apóstolos atuavam entre pessoas de origem judaica, Filipe atuava mais entre pessoas de origem helenista. As comunidades muito pequenas certamente se diferenciavam por sua origem, língua e cultura. A ressurreição de Tabita acontece num ambiente judaico-cristão.
Durante um bom tempo, essas comunidades de diferentes origens e tradições provavelmente viviam lado a lado, perseguidas e à procura do significado da mensagem do ressurreto para a sua vida diária. Em Atos 1 a 5, é transmitida a imagem de comunidades coesas e unidades ao redor do Cristo ressuscitado. A partir do capítulo 6 começam a ser expostas as diferenças e contradições existentes nas primeiras comunidades: “Algum tempo depois, o número de judeus seguidores de Jesus aumentou muito, e os que falavam grego começaram a se queixar dos que falavam hebraico” (At 6.1). Foi necessário instituir o ministério da diaconia. Eram difíceis e complexos os desafios culturais, teológicos, eclesiológicos e políticos a ser superados pelas primeiras comunidades cristãs.
• Havia as pessoas de origem judaica que se convertiam a Cristo e que precisavam fazer a releitura de suas tradições e de sua história. Com a conversão essas ganharam um novo sentido e outra prioridade. Necessário era fazer uma releitura das tradições e dos textos sagrados. Uma dessas releituras do Antigo Testamento e da história do povo judeu foi feita de forma magistral por Estêvão em Atos 7. Pois defrontavam-se com muitas perguntas: Quais tradições e valores podemos manter? De que precisamos abrir mão no seguimento a Cristo? A lei, assim como entendida pelos nossos pais, ainda tem o mesmo sentido e peso? Como cristãos precisamos observar as leis judaicas da pureza? A quem é destinada a mensagem da salvação: somente às pessoas de origem judaica ou também às pessoas de outras origens? A partir de que teologia se deve dar resposta a essas perguntas?
As respostas encontradas pelas diferentes comunidades e grupos variavam. A procura pela verdade era difícil, mas se impunha como necessidade incontornável. Acirravam-se as disputas e divergências internas. Tradições antigas eram postas em dúvida, novas tradições precisavam ser criadas.
• Havia as pessoas de outras origens e tradições, por exemplo de fala grega, que se convertiam a Cristo e precisavam fazer a releitura de suas tradições e de seus conceitos de fé e religião. Também elas tinham muitas perguntas: Que importância têm para nós não-judeus o Antigo Testamento e a lei de Moisés? Quais as tradições nossas que podemos manter e quais as tradições judaicas que precisamos respeitar? Quais as leis judaicas que precisamos acatar no seguimento a Jesus Cristo e quais não têm importância alguma? O que pertence ao mundo judaico e o que ao mundo cristão?
Os temas teológicos para responder essas e outras perguntas e, ao mesmo tempo, servir como base para uma teologia comum foram, em grande parte, definidos por Paulo: 1. A cruz e a ressurreição; 2. A graça e a lei; 3. A reconciliação com Deus operada por Cristo e a reconciliação com o mundo criado por Deus; 4. Os dons espirituais e o amor; 5. A igreja como corpo de Cristo…
3. Meditação
A ressurreição de Tabita tem como consequência: 1. A pequena comunidade ganha a sua benfeitora e líder de volta; 2. Ela acontece de acordo com o agir dos profetas e de Jesus, isto é, com a tradição; 3. Muitas pessoas (de origem judaica, provavelmente) creram no Senhor, isto é, a ressurreição levou à missão. “As notícias a respeito disso se espalharam por toda a cidade de Jope, e muitos creram no Senhor” (At 9.42); 4. A compreensão de que assim como a ressurreição de Cristo também a de Tabita era para dentro desta vida, deste mundo, para dentro da história e da realidade.
Como está a missão em nossas comunidades? Como é feita a releitura da tradição e da história dos antepassados? Como essa releitura está ajudando as nossas comunidades a achar respostas para suas perguntas relativas à vida e à fé de hoje? A fé na ressurreição de Cristo e da própria é algo vago, indefinido, desvinculado da vida, ou é fé de que ele ressuscitou para dentro de nossa história e de que a eternidade já tem seu início nela? Essa fé e certeza estão sendo base da vida da comunidade e da sua missão? Ela está “levando Pedro à casa de Simão, um curtidor de couro”, profissão considerada pelos líderes judeus como impura e desonrosa; isto é, como as nossas comunidades se relacionam com pessoas e grupos excluídos e à margem de nossa sociedade?
As comunidades da IECLB, em sua maior parte, tiveram origem na imigração de pessoas de fala alemã, que se organizaram a partir de sua identidade étnica, linguística e cultural, para defender seu modo de ser e seus interesses. Nisso não há nada de errado, desde que não se tenham transformado em simples “associações religiosas”, que têm como meta cuidar exclusivamente das tradições, dos interesses grupais, da língua e da cultura…
Têm elas na fé da ressurreição para a vida sua principal meta e fundamento? Cremos que Jesus Cristo não só se encarnou na realidade e história humnas, mas também ressuscitou para dentro dela e que com isso destruiu o poder da morte, deu poder à vida e rompeu com as fronteiras culturais, étnicas, linguísticas, sociais, políticas, econômicas… Após ressuscitar Tabita e devolvê-la à sua comunidade para continuar a ser líder dela e a ajudar as pessoas, Pedro volta-se para o mundo não-judaico: “Agora eu sei que Deus trata todos igualmente, pois aceita todos os que o respeitam e fazem o que é direito, seja qual for a raça deles” (At 10.34-35). Em Atos 10 encontra-se a base para a missão fora do mundo judaico.
Pessoalmente, estou participando desde 1967 da reflexão e discussão sobre tema da missão dentro da IECLB. Outros colegas certamente estão se ocupando há mais tempo ainda com a temática.
Será que não é tempo demais?
Não terá sido tempo demais se foi tempo de aprendizado, tempo de crescimento em fé e comunhão, tempo de definição de conteúdos e métodos. Não terá sido tempo demais se cada geração procurou os conteúdos e métodos próprios para dar relevância à mensagem da ressurreição para dentro de seu tempo. Foi tempo perdido se cada geração “voltou a inventar a roda”, isto é, se não houve um acúmulo de experiência, partindo do pressuposto de que as experiências anteriores eram sem valor.
4. Imagens para a prédica
Como “na prática, a teoria é outra”, sugiro que reflitam com os membros sobre os fundamentos da fé e sobre a prática da fé.
Cremos que Jesus ressuscitou como Tabita para dentro da vida e história humana, em que o reino de Deus e a eternidade já foram iniciados por Jesus Cristo. Como essa fé se manifesta concretamente na vida pessoal, familiar e comunitária de cada um?
• Comunidades que vivem a partir da fé na ressurreição são comunidades abertas a pessoas de outras origens e que têm outras necessidades. Nossa comunidade é aberta em sua prática e na vida do dia-a-dia às pessoas diferentes, excluí- das, marginalizadas, oprimidas?
• Pessoas que vivem a partir da fé na ressurreição têm compaixão quando pessoas e o mundo criado por Deus sofrem. Os membros se têm solidarizado com o sofrimento das outras pessoas e da natureza?
• Famílias que vivem a partir da fé na ressurreição são famílias que têm sensibilidade para as questões relacionadas com paz e justiça. As nossas famílias têm sido sensíveis a essas questões tanto a nível intrafamiliar como a nível mundial?
• Grupos de comunidade que vivem a partir da fé na ressurreição são grupos que creem na presença do reino de Deus em meio às contradições de seu mundo e dão testemunho de sua fé em palavras e ações para dentro e para fora da própria comunidade. Eles se afogam no assistencialismo (que no fundo não quer mudar nada) ou têm capacidade de escutar a voz das pessoas excluídas?
Comunidades que vivem a partir da fé na ressurreição são comunidades que não negam suas tradições e origens, mas as reinterpretam continuamente para estar a serviço do evangelho.
Comunidades que vivem a partir da fé na ressurreição são comunidades que olham a tradição com muito respeito, mas sabem que é necessário fazer a sua releitura, a fim de que Jesus possa ressuscitar para dentro da nova realidade que deve ser transformada pelo seu evangelho.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia:
L: Deus da vida e do amor: A ressurreição de Jesus Cristo transforma as nossas vidas e nossas relações. Ele entrou em nossa história e em nossa vida. Não estamos mais sozinhos com as nossas dúvidas, incertezas e angústias. Ele tornou possível que todas as pessoas tenham o mesmo valor e estejam unidas em diálogo e fraternidade e que todos os povos e culturas colaborem para a glória do seu reino. Ajuda-nos a entender e praticar isso pela tua palavra. Pedimos isso em nome de Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina, de eternidade a eternidade. Amém!
Confissão de pecados:
Misericordioso Deus: Chegamos perante ti e confessamos a nossa falta de fé e disposição para cooperar com o teu reino e partilhar a experiência da ressurreição. Confessamos nossa omissão em não enfrentar o mal e o sofrimento ao nosso redor. Confessamos a nossa soberba, que nos achamos melhores e mais valiosos do que outras pessoas e culturas. Confessamos nossa arrogância em relação ao próximo, sem perceber suas virtudes. Rejeitamos os que têm outra cultura e outra maneira de pensar. Contribuímos para que povos e etnias ainda sofram discriminações, preconceitos e injustiças. Ajuda-nos a reconhecer as bênçãos que tens comunicado através desses povos e dessas culturas. Ajuda-nos a viver a reconciliação que tu trouxeste ao mundo. Tem, Senhor, piedade!
Intercessão:
Bondoso Deus,
Agradecemos-te pelo novo dia de vida que nos deste.
Agradecemos-te pelo mundo que criaste, pela riqueza em plantas, animais e fenômenos da natureza.
Agradecemos-te por te teres encarnado em nossa cultura, por estares te encarnando na cultura dos povos indígenas e de todos os povos.
Agradecemos-te por vires a nós dessa forma, mesmo que a cultura seja como um vaso frágil e até passageiro.
Agradecemos-te por te encarnares antes de tudo nas culturas mais humildes e desprezadas (como era a cultura judaica do teu tempo) e não nas culturas e pessoas que se julgam superiores.
Agradecemos-te por podermos ser diferentes. Agradecemos-te por não precisarmos ser tudo. Agradecemos-te por podermos ser limitados.
Agradecemos-te por nos complementarmos uns aos outros. Agradecemos-te por nos aceitares em nossa alteridade e limitação. Agradecemos-te por teres ressuscitado para dentro da vida, vida plena e eterna.
Agradecemos-te que também na morte a vida não perde o sentido, porque tu lhe dás uma nova forma e um novo sentido em tua eternidade.
C: Glória a ti, Senhor, graças e louvor!
Rogamos por tuas igrejas, pelo diálogo inter-religioso e pelo movimento ecumênico.
Rogamos por todos aqueles que têm responsabilidade política, econômica, social, pastoral.
Rogamos pelos mais fracos em nossa sociedade, pelas crianças, pelos doentes, pelos depressivos e tristes, pelas pessoas abandonadas, solitárias, sem rumo.
Rogamos por nossas comunidades para que possam, a partir de sua história e tradição, assumir a responsabilidade missionária que lhes cabe na sociedade brasileira.
Rogamos por nossos membros para que venham a ser divulgadores em palavras e testemunho da presença do teu reino, que já está em nosso meio.
Rogamos pelos povos indígenas e por todos os povos originários que há séculos estão sofrendo sob o peso de uma fé cristã pervertida, opressora, destruidora; Rogamos por tua criação, que está sofrendo com os desmandos e a arrogância dos seres humanos: nós, a quem instituíste como cuidadores, nos transformamos em carrascos.
Rogamos, Deus Pai, cuide de nós, para que aprendamos com a pedagogia de Jesus, que se caracteriza pelo olhar amoroso por tua criação, pelo respeito ao outro e à sua cultura, pelo amor desprendido por tuas criaturas, pela opção profética contra todos os projetos de submissão e opressão.
Por isso te pedimos e agradecemos em nome de Jesus Cristo. Ele nos ensinou a orar:
Pai-Nosso
Bênção:
Que Deus toque nossos olhos para que possamos enxergar a sua criação como ele a enxerga.
Que Deus toque nossos ouvidos para que possamos ouvir os lamentos e louvores de sua criação como ele os ouve.
Que Deus toque nossa boca para que possamos levar adiante a sua mensagem e a ele louvar.
Que Deus toque nossas mãos para que as possamos usar para fazer o bem como ele faz.
Que Deus toque nossa vida para que ela venha a ser morada do Espírito Santo.
Que Deus toque nosso coração para que possamos sentir como ele sente.
Bibliografia
BEYER, Hermann Wolfgang. Die Apostelgeschichte. Das Neue Testament Deutsch. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1959.
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos V. I: 1-12. Petrópolis: Vozes, Sinodal, Metodista, 1988.
HAENCHEN, Ernst. Die Apostelgeschichte. Meyers Kritisch-exegetischer Kommentar. Göttingen: Vandenhoeck&Ruprecht, 1977.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).