I – Vida – uma visão cristã
1. A fé cristã entende a vida a partir da ação criadora de Deus. Sendo Ele o doador da vida, não é possível reduzi-la a uma propriedade privada. A vida é concessão, é presente, é dom de Deus. Porque criada e nutrida por Deus, a vida tem uma profundidade insondável. Esta profundidade misteriosa da vida não permite que ela seja transformada em coisa ou objeto que se possa manipular, vender ou comprar. O bem da vida é uma graça que recebemos, mas da qual não podemos dispor. Porque é indisponível, a vida não pode ser consumida irresponsavelmente nem pode ser descartada levianamente. A vida é um bem sagrado. O testemunho da Escritura aponta para esta sacralidade da vida e nos convida a assumirmos uma atitude de profundo respeito, pois Deus viu que o que criou era “bom”, “muito bom” (Gn 1.10, 12, 18, 21, 25, 31).
2. Contudo, a bondade da criação não reside no fato dela ser boa em si mesma. A bondade da criação repousa sobre o amor transbordante de Deus. Mesmo depois da queda, Deus continua amando sua criação e a tem sob o seu governo. A prova maior deste amor é o fato de Deus ter enviado o seu Filho Jesus Cristo para a salvação de todas as pessoas e para a redenção do universo.
3. O pecado é a real tragédia do ser humano e de toda a criação, que é marcada pela morte. O pecado rompeu definitivamente a relação entre Deus e o ser humano, entre o ser humano e os outros seres da criação e a relação dos seres humanos entre si. Cada qual se transforma no inimigo do seu semelhante. Contudo, Deus e o mundo não são inimigos. O mundo não é propriedade do diabo, mas permanece sendo a boa criação de Deus, ainda que profundamente marcada pelo pecado.
3.1. De fato, há uma fraternidade na tragédia e na esperança entre todos os seres vivos. Na tragédia, porque a criação como um todo sofre a realidade da morte, que também se mostra na destruição dos seres vivos (Rm 8.20, 22-23). Mas há também uma solidariedade na esperança, porque todos aguardam pela realização do Reino de Deus, que significa a superação da morte e do sofrimento (Rm 8.19, 21, 24-25).
3.2. Entretanto, isso não dispensa o cristão de assumir sua tarefa de ser um bom administrador, cuidando da boa criação de Deus (Gn 2.15). Somos chamados à responsabilidade, ou seja, devemos responder pelos nossos atos diante do Deus vivo e verdadeiro. Muitas pessoas cristãs ficam inquietas com as notícias de que a ciência já dispõe de instrumentos técnicos para viabilizar a clonagem de seres humanos. Isso assusta também a opinião pública e muitos cientistas.
3.3. A Igreja de Jesus Cristo tem o seu compromisso de afirmar a dignidade da vida humana. Falar isso somente é possível na medida em que afirmamos que a vida é um dom de Deus. A visão corrente na mídia – de que somente a qualidade de vida é critério para definir a dignidade da vida – parte do pressuposto de que a ausência de dor e de sofrimento é o critério maior para determinar a dignidade da vida humana. O prazer de viver é o imperativo categórico da sociedade de consumo e o sofrimento é considerado uma condição inaceitável.
II – A ciência e sua relação com a vida
4. Obviamente, não podemos deixar de reconhecer que os avanços científicos nos trouxeram benefícios maravilhosos. Hoje dificilmente alguém precisa morrer de tuberculose ou de lepra ou de outra doença infecto-contagiosa, se descoberta nos seus inícios. As mortes prematuras de crianças não são mais a regra, mas tristes exceções. Devemos isto, entre muitas outras conquistas científicas, aos conhecimentos acumulados pela biologia e pela medicina.
5. No entanto, entendemos que a ciência e seus avanços, como tudo o mais em nossa realidade, também vêm acompanhados de riscos e ameaças à própria vida e sua dignidade. Como em todos os âmbitos, tampouco a ciência poderia pretender estar imune à realidade do pecado. O cientista que faz uma nova descoberta não pode saber de antemão qual o uso que outras pessoas, instituições, empresas e governos farão dele. Freqüentemente a pesquisa e seus resultados são comandados pelo objetivo maior de maximizar lucros empresariais. O próprio conhecimento que pode curar pode também, em muitos casos, matar. A ciência que nos deu a energia elétrica ou mesmo a medicina nuclear também nos deu a bomba atômica. O uso de recursos modernos muitas vezes está também determinado por condições sociais e econômicas, dependendo, por exemplo, de que pode pagar por eles. Além disso, os aparelhos que salvam as pessoas da morte também nos colocam diante de decisões difíceis, como, por exemplo: quem decide se os aparelhos de um paciente na UTI devem ser desligados? Ou, inversamente, quais são os critérios de escolha quanto à pessoa enferma que será conectada a um determinado aparelho, se há mais quatro ou cinco pessoas à espera do mesmo aparelho salvador?
6. Hoje a ciência pode até mesmo alterar as informações genéticas que determinam a vida. Descoberto o caminho, há uma compulsão para trilhá-lo. É isso que se faz, por exemplo, ao produzir medicamentos e vacinas, alterando as informações genéticas de bactérias. A recombinação do código genético é uma ferramenta tecnológica extraordinária que pode modificar a vida humana e a dos demais seres da criação. Por meio da mudança genética, plantas podem ser modificadas para que cresçam mais rapidamente, para que produzam mais, para que sejam resistentes às pragas. O mesmo pode e está sendo aplicado aos animais, principalmente os que nos servem de alimento. Rompe-se, assim, com as limitações e as barreiras das diferenças que há entre as espécies. Os cruzamentos das espécies e dos reinos biológicos são hoje possíveis em laboratório. Benefícios advêm dessas descobertas. Mas quais são os riscos e malefícios? Quais os critérios para discernimento? Quais os instrumentos legais para coibir os abusos? Como direcionar os benefícios da pesquisa e da ciência para o conjunto da população? Enfim, como preservar a dignidade da vida?
III – A vida como mercadoria?
7. Uma certa lógica comercial transformou os seres vivos e o próprio ser humano em objeto, cujo valor é regulado pela oferta e pela procura do mercado. O mercado aliado à ciência (e vice-versa) arroga-se o direito de agir como um deus. Entretanto, o mercado somente existe por causa dos recursos naturais. Sem os recursos naturais não há produtos para compra e venda.
8. No entanto, com freqüência o mercado nos ilude. Ele nos diz que não estamos comprando produtos que vieram de recursos naturais. Induz-nos a pensar que compramos algo que tem vida própria, e que nos oferece a promessa de realização, de felicidade. É precisamente esta idéia de que podemos comprar felicidade ao comprar bens de consumo que é profundamente predatória, destruidora do meio ambiente.
9. A ganância alimenta o nosso coração e o consumo engorda os nossos corpos. É necessário ver que a criação foi colocada por Deus para que ela fosse preservada e que fosse responsavelmente utilizada. A utilização dos recursos naturais deve garantir a vida desta e das futuras gerações para que também estas possam viver de forma digna. A possibilidade de manipulação genética vinculada à exploração comercial de seres vivos, por exemplo, sinaliza para uma relação perversa entre ciência, comércio e criação. Aquelas pessoas que deveriam ser as jardineiras, que cuidam do jardim de Deus, se transformaram em predadoras.
10. É necessário, portanto, despertar a consciência de que aquilo que funciona tecnologicamente e é útil para o mercado não é necessariamente justificável sob a perspectiva da ética cristã. Sem o conhecimento respeitoso da vida, os avanços científicos podem esconder um potencial maléfico muito grande. Os avanços científicos não se constituem em um problema meramente técnico, mas sim, antes de tudo, ético.
11. Assim, o enfoque ético deve ter primazia sobre a capacidade técnica de se realizar pesquisas científicas com as informações que determinam a vida. Temos permitido que a ciência, a tecnologia tome decisões em nosso lugar. Porém, os passos que a ciência quer dar não podem ser justificados ou legitimados pela própria ciência. Somente o julgamento ético dos seres humanos é que pode decidir os rumos da ciência.
IV – A redenção da vida: como a bioética pode nos ajudar?
A – A vida digna: uma perspectiva teológica
12. Numa perspectiva teológica a vida tem uma dignidade inviolável, porque provém de Deus. Assim é necessário recuperar o temor diante da vida. Albert Schweitzer, importante teólogo protestante e médico, tinha a consciência de que todas as formas de vida devem ser vistas sob a perspectiva do temor respeitoso. Sob a ótica evangélica, a vida não é propriedade, como quer o mercado, nem objeto, como pode supor a ciência, mas é dádiva de Deus. Este deve ser o ponto de partida para um agir responsável.
13.A Escritura aponta para a nossa responsabilidade diante de Deus, da criação e do ser humano. É necessário garantir a existência da criação para as gerações futuras. Estamos geneticamente e historicamente ligados. Diante disso, a visão de que Deus ama o mundo na sua totalidade nos dá olhos que enxergam o mundo como o nosso próximo. Não somente o ser humano é nosso próximo, mas também os seres da criação o são. Nos relatos dos Evangelhos, Jesus Cristo, o Filho de Deus, é profundamente sensível para com os seres da criação e em especial para com os seres humanos.
B – Bioética: instrumento em prol da vida
14. A bioética prioriza a proteção da vida. Ela é uma disciplina acadêmica e um movimento da sociedade que propõe discutir as questões éticas em virtude dos avanços da ciência. A bioética não se preocupa somente com as questões médicas, mas com a sobrevivência do planeta e com o futuro da humanidade. Além destas preocupações, a bioética também aborda temas como a fome, a discriminação racial, o combate à violência e o combate à destruição do planeta. Para a igreja cristã, estes temas são muito pertinentes, pois a bioética, bem como a fé cristã, é favorável à vida, o bios. Ambos se preocupam com o agir correto e responsável diante da vida em todas as suas formas.
15. A bioética, a partir de uma visão cristã, entende que somos chamados a viver de modo fraterno com o ambiente que nos rodeia, cuidando da água, das florestas, da preservação do solo. Faz-se necessário afirmar, cada vez mais, que a dignidade do ser humano é um bem do qual a igreja, em sua proclamação e ação, não pode abrir mão. A dignidade da vida humana não é propriedade nem conquista, mas é dádiva de Deus. Diferente da visão utilitarista, o imperativo do momento é viver de modo grato e alegre, satisfeito com aquilo que temos. Inversamente, a ganância ilude-se ao pretender, falsamente, preencher o vazio da existência humana. A ganância também é um motor propulsor do desastre ambiental. Assim, para a bioética, o saber é colocado a serviço e para o resgate da dignidade do ser humano e do ambiente em que vive. Saber-nos acolhidos por Deus nos torna solidários com os seres que Deus colocou ao nosso lado para vivermos em comunhão respeitosa com eles.
V – Encaminhamentos práticos
A – Fatos para pensar
– Há denúncias de pesquisas com seres humanos que causam prejuízos físicos e males emocionais nos países pobres. A ganância e as vaidades produzem cobaias humanas. Estas práticas atentam contra a dignidade humana. Há também denúncias de pessoas que foram abusadas em virtude de procedimentos médicos e hospitalares desrespeitosos e irresponsáveis. Neste rol, incluem-se aquelas pesquisas feitas sem garantias de benefícios físicos e sem o consentimento informado do paciente.
– A possibilidade de reprodução da vida em laboratório rompeu com a história da humanidade de que a procriação somente acontecia na união dos gametas masculino e feminino, por meio da união sexual entre um homem e uma mulher. Agora é possível fecundar o óvulo sem a presença do homem. Muito mais ainda, não há mais necessidade do espermatozóide, pois um óvulo pode ser fecundado por um outro óvulo.
– Não é raro ouvir depoimentos de pais que lançaram mão da reprodução medicamente assistida, dizendo que o objetivo seria a busca de uma certa perfeição física do filho ou a escolha do sexo da criança. Também houve o estranho episódio de um casal de surdos que, por encomenda, tiveram um filho surdo. A escolha desses pais pode ser idificada como busca por satisfazer os seus próprios caprichos. Rompe-se com a prerrogativa do casal de procriar, abrigando a criança na família como uma dádiva confiada ao seu cuidado, mas com dignidade própria. A noção de procriação é substituída pela prática da re-produção, como sendo um processo industrial.
– Muitas plantas e animais brasileiros foram patenteados por empresas de países desenvolvidos. O código genético de tribos indígenas brasileiras também foi patenteado por empresas estrangeiras. As empresas se transformam em proprietárias das linhagens genéticas de pessoas, animais e plantas. Essa é uma prática que se chama de biopirataria. Recentemente, o Brasil conseguiu reaver o direito de comercializar os produtos derivados do cupuaçu, que tinha sido patenteado pela Asahi Foods do Japão.
– Os estudiosos alertam que novas doenças estão sendo definidas ou exageradas por especialistas, muitas vezes financiados pelos próprios laboratórios. Os artigos acusam a indústria da venda de doenças – prática na qual se infla o mercado de uma droga convencendo as pessoas de que elas estão doentes e precisam de tratamento médico. Desse modo, necessidades são despertadas para satisfazer as exigências do mercado. Pior: doenças, que as pessoas não têm, são introjetadas nas suas consciências para alimentar um mercado bilionário. A ganância é uma força poderosa que move a indústria farmacológica.
B – Que pode fazer a Igreja?
Em um desses – e muitos outros – desafios nessa área, que podem e devem fazer as igrejas? Em primeiro lugar, cabe-lhes uma responsabilidade pastoral. Elas deverão acompanhar de maneira solidária as pessoas que porventura tenham sido vítimas de processos que violaram sua dignidade, visando o restabelecimento de sua integridade pessoal. Elas também deverão assistir as pessoas que estão defrontadas com situações que demandam sua decisão ética. Numa ética evangélica não lhe farão simplesmente prescrições de como decidir, mas darão orientação e critérios que auxiliem as pessoas no processo de sua própria tomada de decisão, uma orientação centrada no valor da vida como dádiva de Deus e no caráter inviolável de sua dignidade.
Em segundo lugar, as igrejas deverão informar-se constantemente acerca dos avanços científicos, suas possibilidades e implicações, seus benefícios, mas também seus riscos e, mesmo, suas perversões. O bom conhecimento do assunto é pré-requisito para a formação de juízos e para a proposta de alternativas práticas. As igrejas também procurarão disseminar esse conhecimento e a reflexão teológica acerca dele entre seus membros e comunidades. Também cabe às igrejas promover espaços para que se discutam estas questões com os profissionais da saúde, com políticos e pessoas interessadas. Mais e mais hospitais, por exemplo, estão incluindo nas suas comissões éticas também alguém com formação teológica ou responsável pela capelania hospitalar.
A partir desse conhecimento e desse processo de reflexão as igrejas também farão manifestações na esfera pública, posicionando-se em relação a propostas de ordenamento legal da pesquisa e dos avanços científicos, no que afeta a dignidade da vida, bem como em relação a políticas públicas que visam tornar acessível a toda a população as conquistas científicas. Decisões políticas, baseadas na ética, são essenciais para democratizar o acesso aos benefícios da ciência e coibir os abusos que discriminam contingentes populacionais ou violam a dignidade da vida.
Por fim, há que reconhecer que o alcance das ações das igrejas pode ser limitado – ainda assim, significativo – num processo em curso com sua própria dinâmica e também com poderosos interesses envolvidos. Contudo, há uma crescente consciência na sociedade e entre as nações da necessidade da reflexão ética no que concerne à dignidade da vida. E as igrejas devem estar dispostas a contribuir. Por isso, as igrejas, em todos os níveis, desde o local e comunitário até o global e político, devem acrescentar sua voz, junto às da sociedade civil e de todas as instâncias interessadas e envolvidas, no processo de fortalecimento da bioética.
Porto Alegre, 30 de abril de 2008.
Walter Altmann
Pastor Presidente