Proclamar Libertação – Volume: 46
Prédica: 1 Coríntios 15.12-20
Leituras: Jeremias 17.5-10 e Lucas 6.17-26
Autoria: Ricardo Brosowski
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 13/02/2022
Falar de ressurreição fora da Páscoa e longe do Dia de Finados parece estranho. Mas é domingo! É o dia do Senhor! Desse modo, é tempo sempre oportuno para fundamentar um dos sustentáculos da fé.
Nossos textos paralelos são: do AT, o texto de Jeremias 17.5-10, onde encontramos algumas fórmulas de sabedoria interessantes: Maldito o homem que confia no homem (v. 5); Bendito o homem que se fia no Senhor (v. 7) e O coração humano é falso, enganador e doente (v. 9). E, do NT, o texto do Evangelho de Lucas 6.17-26, que nos traz ensinamentos e curas feitos por Jesus, complementados com um discurso sobre bem-aventuranças. Contudo, não apenas bem-aventuranças, mas alguns “ais” bem amargos.
De qualquer modo, podemos observar uma incompletude humana nos textos. E nessa incompletude estão a frustração e a desgraça de uma vida que pensa apenas no aqui e agora. Existe sempre uma falência daquilo que aparenta ser esperança advinda das mãos humanas: confiar nas próprias forças humanas, no próprio coração, na riqueza, na alegria terrena, nos elogios que inebriam.
A esperança humana é sempre extra-humana, sempre de fora. Desse modo, todas as vezes que utilizamos a lógica humana para tentar compreender Deus e sua obra, falhamos! Os textos bíblicos para este 6º Domingo após Epifania nos mostram isso. Compreender essa contradição e também a incapacidade humana de entendimento é questão de vida ou morte.
Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras (1Co 15.3-4).
Capital da província da Acaia, Corinto era uma cidade com ares cosmopolitas. Refundada em 44 a.C., havia sido destruída pouco mais de um século antes. A comunidade cristã dali surge em torno da metade do primeiro século d.C. A cultura da cidade, que é diversa e receptiva, também se percebe dentro da comunidade. A comunidade era formada por cristãos advindos do mundo judaico e gentílico, por pobres e ricos. Enfim uma comunidade normal.
Podemos dizer que o capítulo 15 é o ponto alto de toda essa carta. Schnelle (2010, p. 274-275) afirma que “Paulo desenvolve aqui, a partir do credo da Sexta-Feira Santa e da Páscoa, os eventos finais na parúsia do Senhor”. É interessante notar que há uma ordem lógica nesse capítulo (v. 3-5): Morreu, como dizem as Escrituras; foi sepultado; ressuscitou, como dizem as Escrituras; apareceu a alguns discípulos. A morte seguida de sepultamento é algo corriqueiro. Agora, existe uma enorme anormalidade na ressurreição e reaparecimento aos outros. Contudo, negar a ressurreição de Jesus possui implicações para a vida de uma comunidade.
V. 12-13: A fé cristã estabelece toda a sua tradição sobre a premissa básica da ressurreição de Cristo Jesus dentre os mortos. Alguns adversários de Paulo afirmavam o contrário. Paulo utiliza-se de uma argumentação lógica que quer apontar justamente para a necessidade de não poder existir uma contradição desse porte. Ora, se não existe ressurreição dos mortos, Cristo não ressuscitou. Pode-se pensar quase num silogismo:
– É proclamado que Cristo foi ressuscitado dos mortos (Premissa 1)
– Não existe ressurreição dos mortos (Premissa 2)
– Então a conclusão óbvia é que Cristo não pode ter ressuscitado e a proclamação é de conteúdo mentiroso.
V. 14-15: Afirmar a não ressurreição traz implicações importantes para a vida: a pregação e a fé tornam-se vazias. A pregação e a fé ainda podem existir, mas sem a ressurreição, elas se tornaram vazias de conteúdo, vãs, tolas e nulas. Quando se nega a ressurreição, a letra da canção “Alagados” dos Paralamas do Sucesso pode fazer sentido: “A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê”. Mais ou menos assim são a fé e a pregação cristã sem a ressurreição. Além disso, há um juízo mentiroso contra Deus. Existe um caráter de blasfêmia em afirmar contra Deus, que ele fez uma coisa que ele não fez.
V. 16: Seguindo a lógica dos v. 12-13, Boor (2004, p. 244) afirma que, nesse versículo, em especial, Paulo aponta para a insensatez de seus opositores: “Simplesmente não se pode negar a ressurreição dos mortos e confessar a ressurreição de Jesus numa mesma frase”.
V. 17-19: Além do vazio da pregação e da fé quando se exclui a ressurreição, Paulo ainda aponta para uma consequência que atinge o ser humano em cheio. Além se serem vazias a fé e a pregação: “Ainda permaneceis em vossos pecados”. Não há um elixir contra o pecado, que o faz desaparecer. Existe um mediador que assume a culpa de nosso pecado. Nesse ponto vemos que existe algo muito relacional. “Todo o fardo de nosso pecado ainda pesa sobre mim se a gélida morte de Jesus não puder mais me oferecer essa graça redentora” (Boor, 2004, p. 244).
Desse modo, não apenas os que creem agora, como aqueles que creram e já dormem estão perdidos. Se a esperança de vida eterna e vida após a morte é desfeita pela não efetivação da ressurreição, nada resta. Se em Cristo, ao morrer, as pessoas depositavam sua fé e esperança de um novo viver, não pode ocorrer por não haver ressurreição dos mortos, então a única coisa que pode sobrar aos que ainda tentam vislumbrar alguma esperança é o desespero diante da caminhada que leva ao nada. Se nada resta além da desesperança, então o ser humano é digno apenas de pena. O conceito de desesperança que se tem em mente é a ideia de uma “doença” própria do ser humano quando percebe que não consegue realizar-se a si mesmo, nem mesmo possui algo que possa se firmar para realizar em suas relações e desejos. Isso ocorre pela finitude, insuficiência e desequilíbrio. Desesperança é a vivência da morte do eu – isso na imanência e na transcendência.
V. 20 – Esse versículo, na maior parte das Bíblias, se apresenta numa perícope separada. O que podemos perceber aqui é que Paulo expressa em seu escrito a ideia de que a realidade não pode ser compreendida pelos pensamentos humanos. Pelo contrário, a realidade está além daquilo que o ser humano consegue compreender como sendo verdadeiro pelos seus sentidos e sua racionalidade. Jesus Cristo é o primeiro a ressuscitar para nunca mais morrer. A ressurreição humana está fiada nessa certeza.
O termo básico dessa perícope é ressurreição (anastasis). Não apenas um ressurgir da alma imortal mediante a morte do corpo carnal, mas uma ressurreição completa. Os credos antigos afirmam isto: Credo apostólico: “creio… na ressurreição do corpo e na vida eterna!”. Credo Niceno: “Confesso… e espero a ressurreição dos mortos e a vida eterna!”. Credo Atanasiano: “À sua chegada todos os homens devem ressuscitar com seus corpos e vão prestar contas de seus próprios atos”.
A ressurreição mexe com a igreja até hoje. Ainda hoje existem tendências de espiritualização que desprezam o corpo. Também há uma valorização do corpo tão grande, no aqui e agora, que se esquece da ressurreição. Em ambos os casos há uma descaracterização da fé na ressurreição.
A ideia de que a morte é certa alimenta o medo humano como nenhum outro tema. Faz-se de tudo para evitar a morte. Existe uma tentativa de negar a existência da morte (recomenda-se a leitura do livro “Negação da morte”, de Ernest Becker). A ideia de evitar a morte se dá, em boa medida, pelo desconhecimento do que ela é e do que ocorre durante e após ela. Vemos que a tentativa de negar a mortalidade é algo que está em voga no cotidiano humano. Contudo, essa negação se dá em tentativas de vida eterna no aqui e agora. Academias cheias, remédios cada dia mais avançados, cremes de rejuvenescimento, criogênese etc.
Nesse contexto, o maior atrativo que a igreja cristã pode oferecer à sociedade é a ideia de ressurreição. A esperança da ressurreição baseia-se no conteúdo da obra de Jesus Cristo: se ele ressuscitou, é certo que também ressuscitaremos. Isso encontrou algumas oposições do mundo judaico-helênico.
No mundo grego era comum a concepção de que o corpo morreria e a alma ficaria livre para efetivar a participação no eterno. Marco Aurélio (filósofo e imperador romano do séc. II), por exemplo, dizia que “a morte liberta a nossa alma, pois o corpo é sua prisão”. Platão, em seu diálogo “Fedon”, que narra as últimas horas de vida de Sócrates, trata do tema imortalidade da alma, e talvez a pergunta que baseia todo o escrito gira em torno do destino da alma após a morte. Para Platão, a alma subsiste à morte corporal. Inclusive a alma já existia antes mesmo do nascimento, o que vêm a fazer parte de seu mundo das ideias e da possibilidade do conhecimento como reminiscência. Percebe-se uma apreciação pela alma e um desprezo ao corpo.
Essa dicotomia é combatida por Paulo. O ser humano inteiro morre (corpo e alma) e inteiro ressuscita. Essa mensagem de ressurreição do corpo, como a cristandade confessa, serve de consolo para aqueles que perderam alguém (talvez em tempos de Covid-19, como o que vivenciamos agora, a palavra da ressurreição ganhe contornos ainda mais importantes).
Porém, quando falamos sobre a ressurreição e sua realidade, em muitos momentos, pode parecer que essa mensagem esteja meio distante da realidade em que vivemos. A mesma dificuldade que os gregos tinham para compreender o todo da ressurreição, aqueles que vivenciam o dia de hoje também têm, justamente pela realidade caótica que a morte coloca em frente ao ser humano cotidianamente.
Joseph Ratzinger (2011, p. 217-218), escreve em sua obra “Jesus de Nazaré”, que, mesmo que se abstenha a ideia de ressurreição de toda a tradição e ética humanas, a fé cristã ainda terá muito a contribuir na visão sobre Deus e sobre o ser humano, sobre como as coisas são e como deveriam ser. Contudo a fé cristã está morta, é apenas mais uma filosofia de vida, quando suprimimos a ideia de ressurreição. Jesus se torna uma personagem falida e que, mesmo com sua grandeza, permanece numa dimensão puramente humana. E quando isso ocorre, a sua mensagem é apenas considerada quando convence o ouvinte, quando sua mensagem é aprovada pela racionalidade limitada pessoal humana, ou pior, quando a mensagem é útil para alguém.
Interessante notar, nesse momento, que o apóstolo Paulo faz uma relação entre a ressurreição de Jesus e a libertação dos pecados. Desse modo, sempre se deve dizer que negar a ressurreição é tornar a fé e a pregação cristãs nulas e vazias. Esse vazio leva o ser humano a uma completa apatia, tédio generalizado e uma alienação daquilo que deveria ser a vivência cristã no dia a dia.
Devemos sempre lembrar que na fé cristã o ser humano é visto como uma unidade. Quando confessamos que cremos na ressurreição do corpo, estamos reafirmando a ideia da unidade humana. Não podemos crer, como os gregos, que o corpo é mau e a alma é boa. Com isso precisamos afirmar que ao morrer morre a totalidade humana, e que ao ressuscitar, ressuscita a totalidade humana. A ressurreição de Jesus Cristo, que fundamenta esperançosamente a de todos os humanos, não é uma ressurreição paranormal, ou de uma centelha divina que se unirá ao eterno. Mas sim uma ressurreição total, com corpo e tudo. A ressurreição é uma realidade que abarca o ser humano por inteiro.
Abrir mão da ressurreição de Jesus Cristo é abrir mão da história da salvação como um todo. Afinal de contas, Cristo venceu a morte, bendita a nossa sorte. Um novo dia nos alumia. A fé cristã não pode ser apenas uma filosofia de vida. Ela é uma certeza que contradiz a razão humana, e nessa louca contradição oferece salvação.
“Conhecer a Cristo significa conhecer seus benefícios” (F. Melanchthon). Ainda não se vivencia o período da Paixão e Páscoa, embora o texto de nossa perícope seja tradicionalmente usado para a Páscoa. No período da Epifania também lembramos a pessoa de Jesus Cristo. Por isso pode ser cabível a pergunta: Quem é Cristo? Quais são esses seus benefícios?
Muito se tem falado de Jesus Cristo na atualidade. E em um mundo onde não se tem mais clareza sobre quem foi Jesus ou qual foi sua obra, perguntar sobre quem foi Jesus Cristo, buscando retomar das Escrituras os seus maiores benefícios pode ser algo extremamente esclarecedor.
Pode-se começar expondo algumas afirmações absurdas feitas hoje em dia sobre a pessoa de Jesus (existem inúmeras na internet – frases escritas ou até mesmo em vídeos). Ou, caso o pregador tenha um pouco mais de coragem – e dependendo do contexto, pode-se perguntar para a própria comunidade reunida: quem é Jesus? Respostas muito interessantes – quiçá assustadoras, podem surgir. A partir dessas respostas pode-se estruturar uma pregação que aponte para os benefícios de Jesus Cristo oferecidos a nós como: a esperança, o perdão dos pecados e a ressurreição completa do ser humano.
Confissão de pecados: é importante que seja lembrado que a ressurreição de Cristo é a consumação do perdão dos nossos pecados. Se Cristo não houvesse ressuscitado, ainda estaríamos perdidos em nossos pecados. Esse pode ser um momento interessante para o reconhecimento da fraqueza humana, não apenas em pensamento impuro, palavra e ação, mas também fraqueza de compreensão do que Cristo fez. Sempre podemos pedir perdão por não compreendermos a completude dos benefícios que a obra de Cristo nos gera.
BOOR, Werner de. Carta aos Coríntios. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2004.
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: Da entrada em Jerusalém até a Ressurreição. São Paulo: Planeta, 2011.
SCHNELLE, Udo. Paulo: Vida e Pensamento. Santo André: Academia Cristã, 2010.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).