Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: 1 João 5.9-13
Leituras: Salmo 1 e João 17.1a,6-19
Autoria: Renato Küntzer
Data Litúrgica: 7° Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 16/05/2021
João 17.1a,6-19 é parte de uma oração de intercessão feita por Jesus ao “Pai”, na qual Jesus reconhece que “chegou a hora” da revelação da natureza divina do Filho e de sua relação com o Pai. A oração de Jesus é, ao mesmo tempo, a síntese mais completa e elevada da cristologia e eclesiologia joanina. E a minha natureza divina se revela por meio daqueles que me deste […]. Eles continuam no mundo […] guardo-os para que sejam um, assim como tu e eu somos um. Jesus se entrega completamente ao Pai e pede que “eles” também sejam completamente do Pai, pois foram enviados ao mundo. Eles são os discípulos, aqueles que me deste, que continuam no mundo, dos que tomei conta e nenhum se perdeu, que tem o coração cheio de alegria e o mundo ficou com ódio deles.
O Salmo 1 é a porta de entrada e o convite à leitura da coletânea de salmos que segue. Afirma quem é feliz, onde está o prazer, a água da vida, os frutos no tempo certo, onde tudo é bem-sucedido por considerar o projeto de Deus. Enquanto isso os injustos e a injustiça não têm consistência.
Há um aspecto que faz com que a Primeira Carta de João seja diferente das cartas de Paulo. Ela é escrita não para uma comunidade ou leitores específicos e com problemas pontuais, mas a um público mais amplo e genérico. Sua origem provavelmente deve ser buscada em Éfeso, na província da Ásia, atual Turquia, por volta do ano 100. Seu objetivo é auxiliar as comunidades joaninas a retomarem o testemunho da afirmação de fé que Deus se fez humano em Jesus Cristo (1Jo 1.1-3).
Em meio a essas comunidades pequenas e fragilizadas surge um conflito, que estava provocando divisões internas. Havia controvérsias entre membros das comunidades quanto ao testemunho de como viver a comunhão com Deus e com Jesus. Começava-se a colocar em dúvida a historicidade da vida, paixão e morte de Jesus e a importância disso para a vivência da fé. Havia uma corrente que afirmava que o corpo de Cristo era uma ilusão e que sua crucificação teria sido só aparente. Não conseguiam aceitar um Deus encarnado e muito menos crucificado. Afirmavam que a revelação de Deus e a salvação viriam pelo conhecimento e especulação intelectual e revelações espirituais elevadas. Assim é necessário que o autor afirme às comunidades que o verdadeiro conhecimento de Deus se dá por meio da encarnação de Jesus Cristo e da prática do amor aos irmãos e irmãs de maneira concreta com gestos e ações de amor (1Jo 3.17-18).
v. 9a – Se aceitamos o testemunho dos homens,
com maior razão aceitamos o testemunho de Deus
v. 9b – E o testemunho de que falamos é de Deus;
ele nos deixou um testemunho do seu Filho
v. 10a – Quem acredita no Filho de Deus
tem esse testemunho dentro de si mesmo.
v. 10b – Quem não acredita em Deus, faz dele um mentiroso,
porque não acredita no testemunho que ele deu
em favor do seu Filho.
v. 11 – E o testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna
e esta vida está em seu Filho
v. 12 – Quem tem o Filho, tem a vida,
quem não tem o Filho, não tem a vida.
v. 13 – Escrevo tudo isso para que vocês que acreditam no nome do Filho de Deus
estejam certos de que têm a vida.
A partir desse pequeno arranjo do texto dá para começar a perceber algumas informações.
O tema é dar testemunho. No v. 9 aparecem as expressões “testemunho dos homens” e “testemunho de Deus”. Aponta-se para um conflito com um grupo de oposição. Um grupo tinha o testemunho dos homens, e outro, o testemunho de Deus. Diante do conflito, a comunidade próxima ao autor da carta se identifica como quem tem o testemunho de Deus. Por isso se recorre ao uso de um genitivo, que vem de Deus ou desde Deus. O outro grupo, dos adversários, que estava rompendo com a comunidade ou estava em oposição a ela, tinha o testemunho dos homens. O uso novamente de um genitivo, denotando origem, procedência, mostra que o testemunho tinha origem nos homens. O v. 9 termina a primeira parte afirmando que o testemunho de Deus é maior que o dos homens.
O autor afirma que o seu testemunho, ao qual a comunidade é fiel, é de Deus. Por isso é de mais valor. Essa afirmação sobre a importância, o valor e a verdade do testemunho está baseada no fato de que “ele nos deixou um testemunho de seu Filho”. Diz que esse é o testemunho de Deus testemunhado a respeito de seu filho.
O v. 10 começa dizendo que aquele que crê no filho de Deus tem o testemunho em si mesmo. Depois diz que aquele que não crê faz de Deus um mentiroso. Para ter o testemunho de Deus, é necessário crer no filho de Deus. O tema central é o verbo crer, crer no Filho de Deus e crer no testemunho. O termo crer ocorre três vezes nesse versículo. Aquele que não crê em Deus nem no testemunho que vem de Deus a respeito de seu filho faz de Deus um mentiroso.
Quem não aceita esse testemunho que vem de Deus e não acredita no testemunho que Deus deu em favor de seu Filho, torna-se mentiroso. Há na comunidade quem ensine e tenha um testemunho mentiroso e falso. Há, em razão de um testemunho envolto na mentira, um conflito. O autor acusa seus adversários de estarem propondo para a comunidade uma cristologia e uma ética totalmente distorcidas. A dificuldade residia na cristologia, pois os dissidentes, preocupados em mostrar a divindade de Jesus, acabaram por menosprezar a sua humanidade. As raízes gnósticas dessa tendência terminam por acentuar uma feição de Jesus exclusivamente espiritual, que por consequência não se interessa mais pelas questões terrenas. Os adversários são acusados de não testemunharem que Deus dá a conhecer o Cristo. O testemunho de Jesus Cristo é o testemunho de que Deus nos deu a vida eterna. Essa confissão e esse testemunho têm consequências que resultam em uma ética e prática de vida comunitária.
Mas o que é de fato esse testemunho? O v. 11 responde a essa pergunta. Aqui está o cerne do testemunho: O testemunho é este: Deus nos deu a vida eterna. Não há nada especulativo ou de uma revelação espiritual elevada em relação ao que seja a vida eterna. É bem simples a afirmação: Esta vida está em seu Filho. Quem tem o Filho, tem a vida e quem não tem o Filho, não tem a vida.
A discussão é acerca de quem tem a vida eterna e de quem não a tem. O testemunho é que essa vida é dádiva de Deus, o que ocorre com o uso do pronome “nos”, “nos deu”, mostrando que a vida eterna foi dada por Deus para o grupo que permaneceu na comunidade. Essa vida está no Filho de Deus. No v. 12 temos a continuação desse discurso, na afirmação de que quem tem o Filho, tem a vida. Desta forma, quem não tem o Filho de Deus, não tem a vida. O grupo que ficou na comunidade é aquele que tem o Filho e, portanto, tem a vida. Os adversários são aqueles que não têm a vida, porque não têm o Filho e não creram no testemunho de Deus, mas no testemunho de homens.
Esse testemunho claro e sem rodeio já se encontra no Evangelho de João 17.3, onde se diz: Ora, a vida eterna é esta: que eles conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e aquele que tu enviaste, Jesus Cristo. Vida eterna é o conhecimento de Deus e esse conhecimento é comunicado por um evento e um gesto na história: o envio e a presença viva e real de Jesus Cristo. A vida pública de Jesus é o verdadeiro testemunho que dá conhecimento de Deus. E a aceitação de que Jesus é o Messias e o Filho de Deus permite a experiência da vida eterna no presente. Já aqui e agora! Estar em comunhão com Deus, testemunhar Jesus Cristo como Filho de Deus e amar os irmãos e as irmãs com gestos e ações de partilha é ter parte na vida eterna.
Em Jesus Cristo está o conhecimento de Deus, porque ele cumpre a missão de Deus e obediência à Palavra com seu agir profético. O amor concreto de Deus manifestado nas ações concretas de Jesus se dá neste mundo. As pessoas cristãs seguidoras de Jesus, a seu exemplo, buscam transformar a realidade histórica. O agir de Deus acontece no concreto da história de seu povo, em particular das pessoas pobres e marginalizadas. O agir solidário de Deus em favor das pessoas mais fracas tem continuidade no agir da comunidade joanina e entre seus discípulos.
Assim como o texto, nossa meditação vai se guiar por dois temas: a urgência a prática do amor como consequência da fé e o enfrentamento do testemunho
da mentira.
O amor e a fé se unem numa perspectiva singular e única, em que o amor se baseia na fé (4.7-21) e a fé se baseia no amor (5.1-13), evidenciando sinais de que a pessoa nasceu de Deus. Ter nascido de Deus pela fé em Jesus Cristo é manter-se firme na confissão de que o Filho de Deus veio para conhecermos o Deus verdadeiro e a vida eterna.
A necessidade dessa afirmação de fé e desse testemunho revela a situação de uma comunidade que se achava ameaçada por falsos ensinamentos. A seriedade do momento (pois a última hora já chegou – 2.18) pede que a comunidade permaneça na verdade. A verdade não está naqueles que ostentam o conhecimento de Deus, que alegam possuir experiências espirituais elevadas, tornando-as isentas do pecado. A verdade não está naqueles que como falsos profetas e anticristos negam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, tal como a comunidade confessa e testemunha. A verdade não está naqueles que rejeitam a plena humanidade de Jesus, que ele veio na carne e que sua obra é indispensável para a fé cristã e salvação.
Percebe-se aqui uma hostilidade à fé cristã, no sentido de desfazer o vínculo indissociável entre fé e amor. Essa hostilidade está presente na falta de compromisso com a prática da justiça (3.7,10), com o amor incondicional a outra pessoa (2.9,11; 3.10ss; 4.20), com a ajuda concreta aos pobres (3.17).
Por isso é urgente e necessário reafirmar perante a comunidade que:
– o testemunho de Deus é verdadeiro;
– o testemunho de Deus é Jesus Cristo;
– quem testemunha Jesus Cristo testemunha a verdade;
– Deus nos deu a vida eterna e essa vida está em seu Filho;
– quem tem o Filho tem a vida, quem não tem o Filho não tem a vida;
– quem acredita no Filho de Deus, esteja certo de que tem a vida.
O testemunho da verdade é urgente e determinante para a existência da comunidade. É uma exortação necessária também para os nossos tempos, quando se fala até em “pós-verdade”. Estamos vivendo em um ambiente no qual se revelam as palavras de falsos profetas e pessoas movidas por “espíritos elevados” de variados conhecimentos. E o testemunho da verdade precisa expor e visibilizar as questões práticas que envolvem o compromisso da fé com o amor: Ora, aquele que possuir recursos deste mundo, e vir a seu irmão padecer necessidade, e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? (3.17). Isso não é mera retórica. Põe o dedo em uma ferida séria da comunidade. Aqui estão sua responsabilidade e sua identidade, quando afirma ser testemunha da verdade. Todas as pessoas necessitam da radical solidariedade e misericórdia de Deus. Todas as pessoas são, em sua condição humana, receptoras indignas da misericórdia de Deus. Não há aqui privilégio, vantagem nem mérito pessoal. Para Deus não há quem tenha mais valor, razão pela qual a outra pessoa possa estar na condição de um objeto do qual se possa dispor ou descartar.
É testemunho da verdade que o amor de Deus enxerga necessidades. O amor necessariamente se solidariza com as pessoas injustiçadas, ajuda as mais fracas, defende as excluídas da vida digna. O amor dá prioridade a quem está em perigo e sofre prejuízo na sua dignidade. O amor de Deus exige como resposta o amor das pessoas entre si. Isso é um alto padrão de conduta humana. Ainda que a pessoa seja justificada pela fé e não por suas boas obras, é inimaginável uma fé que não se torne ativa no amor.
Acrescento a esse subsídio uma citação de Martim Lutero, de sua obra “Da liberdade cristã” (p. 39-40). É uma contribuição ao tema da pregação e contribui com uma perspectiva confessional:
Pois o ser humano não vive somente em função de seu próprio corpo, mas também em relação com as demais pessoas sobre a terra. Essa é a razão pela qual o ser humano não pode prescindir das obras no trato com seus semelhantes; antes, há de falar e agir com eles, ainda que nenhuma dessas obras lhe seja necessária para tornar-se agradável a Deus e ser bem-aventurado. Logo, ao realizar todas essas obras, terá sua mira posta tão somente em servir e ser útil aos demais, sem pensar em outra coisa do que nas necessidades daqueles a cujo serviço deseja colocar–se. Isso, então, se chama de uma vida verdadeiramente cristã; aí a fé porá mãos à obra com prazer e amor, como ensina S. Paulo aos Gálatas [5.6]. Assim ensina também aos Filipenses [2.1ss], os quais tinha instruído que mediante a fé em Cristo já possuíam toda graça e suficiência, acrescentando ainda: “Exorto-vos por toda consolação que tendes em Cristo e por toda consolação que tendes por nosso amor para convosco e ainda por toda comunhão que tendes com todos os cristãos espirituais e que são agradáveis a Deus: alegrai meu coração por completo, em que de agora em diante sejais todos de um mesmo entendimento, evidenciando amor uns para com os outros, servindo-vos mutuamente, e ninguém atentando para si mesmo e para o que é seu, mas para o outro e para o que é a necessidade dele”.
Deus, há algo que chamamos de amor, mas quando usamos essa palavra, tu sabes que se trata de algo mesquinho e banal; é só um egoísmo refinado. Não nos entregamos; somente cobramos e esperamos um retorno vantajoso. Por isso, Senhor, repetidamente te buscamos em vão. Tu não vives nessa compreensão limitada, porque és o amor. Esse teu amor é mais forte que nossa dureza, e ao nos tocar, rompes com a nossa condição.
Jesus Cristo, ensina-nos a amar de uma forma desinteressada. Não por sentir necessidade da retribuição de algum afeto, mas porque as outras pessoas necessitam de amor.
Tu és o amor, e por meio de nós queres que esse amor alcance irmãos e irmãs. Não te pedimos nada exorbitante, somente queremos ser tuas discípulas e teus discípulos, cumprindo teu único mandamento de amar as demais pessoas. Amém.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982. p. 571-585.
LUTERO, Martim. Da liberdade cristã. 9. ed. rev. Trad. Walter Altmann. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. O amor em defesa da vida, a 1ª Carta de João. São Leopoldo: CEBI, 2018.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).