Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 15.21-28
Leituras: Isaías 56.1,6-8 e Romanos 11.1-2a,29-32
Autoria: Marcia Blasi e Ketlin Lais Schuchardt
Data Litúrgica: 11° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/08/2020
O Evangelho de Mateus se distingue dos demais sinóticos em vários aspectos. Particularmente chama atenção o papel das pessoas estrangeiras na relação com Jesus. O texto indicado para pregação é uma narrativa de um encontro entre Jesus e uma mulher estrangeira, apresentando as tramas da vida cotidiana, a importância das experiências das pessoas, a sabedoria e a fé transformadora da mulher e a universalidade do reino de Deus.
A passagem de Romanos 11.1-2a,29-32 faz menção à infidelidade de Israel e à misericórdia de Deus, reafirmando a inclusão do povo gentio. A partir da pergunta que se desenrola nos capítulos anteriores (9 – 10), sobre a fidelidade de Deus em relação à sua promessa de libertar e salvar o seu povo, o capítulo 11 é a confirmação de que Deus é, sim, fiel à sua promessa de salvação. O texto de Isaías nos fala de um pedido muito especial, um pedido pela manutenção dos direitos e da prática da justiça. Deus reitera sua promessa de salvação e inclui também as pessoas estrangeiras no plano de salvação. Ambas as passagens apresentam um Deus misericordioso, que oportuniza a aproximação, o encontro e a inclusão para viver o seu Reino.
V. 21 – Por conta de conflitos com as autoridades religiosas judaicas sobre a interpretação correta da Lei, especialmente pela controvérsia sobre a transgressão das leis e tradições de pureza e impureza, Jesus saiu da Galileia e partiu para as terras de Tiro e Sidom. Essas terras faziam parte da Fenícia, que pertencia à Síria, na faixa costeira do mar Mediterrâneo, uma região entre a Galileia e o mar. Ele e os discípulos estavam em terras estrangeiras. Os altos impostos cobrados pelas autoridades obrigavam camponeses e camponesas a sobreviver em condições de pobreza e fome. Talvez Jesus tenha optado por essa localidade com o intuito de passar sem chamar muito a atenção, mas a sequência do texto mostra que, mesmo nos lugares mais longínquos e em terras estrangeiras, Jesus já era conhecido.
V. 22 – Veio ao encontro de Jesus, clamando, uma mulher cananeia (o evangelista Marcos afirma a identidade da mulher como siro-fenícia). Trata-se de uma mulher que não pertencia à tradição judaica; era uma gentia. Seu nome não é mencionado, somente sua origem étnica. A mulher roga por sua filha e se refere a Jesus como “filho de Davi”, o que indica que ela conhecia a fama de Jesus, mestre da Galileia, e esperançava no seu poder de curar sua filha.
V. 23 – Em Mateus 8.5-13, Jesus atendeu ao apelo de um gentio, um centurião que pediu pela cura de um rapaz. Em Mateus 8.28-34, Jesus estava em território gentio e exorcizou duas pessoas endemoniadas. Dessa vez foi diferente, Jesus, em sua primeira reação, apenas silenciou. Incomodados e constrangidos com o silêncio de Jesus e os gritos de clamor que não cessavam, os discípulos pediram: Despede-a!.
V. 24 – A resposta de Jesus foi dura: Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel. Segundo algumas pesquisas, Jesus sabia que dedicar-se extensivamente ao povo gentio e samaritano (inimigo do povo judeu) poderia comprometer a aceitação de sua missão messiânica entre o povo judeu, para o qual, segundo as profecias, fora enviado. Imperava nesse tempo a perspectiva de exclusividade de um povo. A mensagem de um reino universal era ainda revolucionária e assustadora demais, ou até mesmo Jesus não se sentia ainda preparado para tal.
V. 25 – Sem desanimar, a mulher fez o que estava ao seu alcance. O sofrimento da filha era grande e ela estava convencida de que era uma oportunidade única de ver sua filha liberta. Talvez tomada por desespero e esperança, medo e confiança, a mulher se ajoelhou diante de Jesus e clamou por socorro. Em sua ação, a mulher demonstrou ser portadora de uma fé notável e transformadora.
V. 26 – Diante da ação da mulher, a resposta de Jesus foi ainda mais dura. Usou uma metáfora ofensiva para convencê-la a deixá-los seguir o caminho sem mais alvoroço. Jesus diz: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorros. Chamar uma pessoa de “cachorro” era um enorme insulto (veja Mt 7.6).
V. 27 – Mesmo com toda humilhação, a mulher assumiu o risco de receber uma resposta ainda mais dura. Ela recriou o discurso e reagiu com seu poder argumentativo: Porém os cachorrinhos comem das migalhas que caem das mesas de seus donos. Mesmo embaixo da mesa os cachorrinhos também participam da abundância da casa. A mulher sabia sua origem e sua condição. Ela não esperava fazer parte do banquete, mas confiava que até as migalhas das bênçãos de Deus eram suficientes para salvar sua filha.
V. 28 – O argumento da mulher convence Jesus então e ela recebe o que pede: Ó mulher, grande é tua fé. Seja feito para contigo como tu desejas.
Nos versículos anteriores ao texto indicado para a pregação, Jesus havia ensinado discípulos, multidão e até alguns fariseus de que o que contamina a pessoa não é o que entra pela sua boca, mas o que sai dela, aquilo que sai do seu coração e se manifesta na vida como homicídio, adultério, roubo, falso testemunho (Mt 15.19). O texto deixa implícito que não é a raça, o gênero, a etnia, as deficiências ou classe social que define a pessoa, mas a maneira como ela vive a sua vida.
A mulher cananeia saúda Jesus com as palavras: Filho de Davi, tem compaixão de mim. Conscientemente ou não, o que a mulher faz é lembrar a ancestralidade comum que tanto Jesus como ela têm, afinal, três mulheres na genealogia de Jesus em Mateus 1.1-16 são mulheres estrangeiras: Raabe, Tamar e Rute. As ancestrais da mulher são ligadas às ancestrais de Jesus. Ao chamar Jesus de Senhor, a mulher demonstra que reconhece o seu poder e compaixão por todas as pessoas que chegam até ele. Ela pede que ele tenha compaixão dela. É um pedido pess al e familiar. O que aflige a filha também a atinge. A mulher apresenta seu pedido e anseia pela cura. O que vem não é o que ela espera.
Difícil imaginar o silêncio de Jesus ao apelo da mulher que acontece logo depois desses ensinamentos. Ela é uma mulher que precisa de ajuda, e o que ele dá é o silêncio. Quando ele fala a resposta é ainda pior. Jesus a compara aos cachorros, animal desprezado pelo povo judeu. Muitas pessoas já tentaram explicar ou abrandar essa atitude de Jesus, mas ela revela a necessidade constante de ouvir e refletir.
A mulher é rápida e ousada. Como muitas mulheres, deve conhecer bem palavras duras e insensíveis. Como mãe de uma criança doente, ela deve ter ouvido muitas acusações e respostas vazias. Para ela já basta! Ela reivindica o direito à vida digna. Ela confessa que há o suficiente para alimentar quem tem fome.
Nesse ponto acontece uma reviravolta na narrativa. Ao assumir que pode ser uma “cachorrinha”, a mulher reivindica seu lugar ao redor da mesa – ou embaixo da mesa. Jesus percebe isso. Provavelmente ela sentia na pele a condição de viver recebendo migalhas, tanto de comida como de dignidade. Ela entendia muito bem a importância de dar prioridade para as crianças, pois ela mesma o estava fazendo, seu objetivo era curar a filha. Foi na sua resposta a Jesus que a mulher transformou a metáfora que excluía numa metáfora de inclusão.
Jesus foi desafiado a repensar suas palavras e atitudes. Ele muda de ideia e não somente cura a filha, mas garante que ao redor da mesa sempre haverá espaço para quem quiser e precisar (veja a meditação da Pa. Vera Weissheimer no PL 32, p. 257).
É interessante que Jesus nunca diz que a filha está curada, mas que será feita a vontade da mulher. A persistência e a fé da mulher mudaram a situação, viraram a mesa. A fé gera persistência e a persistência alimenta a fé. De qualquer maneira, a persistência e a fé são capazes de transformar as pessoas e o mundo.
O mundo vive uma crise humanitária, ambiental, ética e social. A cada dia os meios de comunicação mostram imagens de pessoas tentando atravessar mares em barcos superlotados, atravessar muros e fronteiras. São pessoas migrando em busca de vida, de comida, de segurança, de dignidade. Os riscos para as mulheres geralmente são maiores. Muitas vezes elas são obrigadas a “pagar passagem” com seus próprios corpos.
Ser uma pessoa estrangeira em qualquer lugar, também no Brasil, não é fácil no contexto atual. A cada dia há notícias de atos de violência. A xenofobia, o ódio a pessoas estrangeiras é realidade diária em nosso país e ao redor do mundo.
Inicie a pregação trazendo relatos de acontecimentos recentes. Reflita com a comunidade como é a vida de um povo forçado a migrar por guerras e violência. Sempre é bom lembrar que muitas famílias de imigrantes que vieram da Europa a partir de 1800 vieram por necessidade e buscando vida digna. Não são somente as pessoas de hoje tentando entrar na Europa ou nos EUA que fazem isso. A história humana é uma história de migrações.
Reflita com a comunidade a angústia de acompanhar uma criança doente sem encontrar respostas e não ter a possibilidade de buscar a ajuda necessária. Essa carga muitas vezes é assumida sozinha pelas mulheres. A ação, a insistência e persistência da mulher cananeia podem ser presenciadas a cada dia nas filas nos postos de saúde e emergências dos hospitais.
Lembre-se de mencionar que Jesus foi desafiado por uma mulher estrangeira, mas, na verdade, ele também é estrangeiro quando é procurado pela mulher. Ele está em Tiro e Sidom. Esse fato muitas vezes passa despercebido. Mesmo assim, a mulher o saúda com respeito e reconhece que ele é o Messias anunciado ao povo judeu e pede ajuda. Pela sua fé insistente, sua perspicácia e ousadia, Jesus abre seu ministério para todas as pessoas que precisam dele.
A graça e o amor de Deus se manifestam onde menos esperamos. Mesmo que a acolhida a pessoas estrangeiras possa causar medo e insegurança, ela pode também trazer a oportunidade de conhecer novas culturas e tradições. Mudar conceitos, ideias e pensamentos não precisa significar perdas. Mudar de ideia amplia horizontes, e Jesus não teve medo de fazer isso.
Já não é possível ter mesas fartas e desperdício enquanto milhares vivem embaixo das mesas brigando pelas migalhas que caem. Que assim como a mulher cananeia, reconheçamos nosso lugar como filhas e filhos de Deus e ousemos propor outro modelo de vida digna para todas as pessoas. O encontro entre Jesus e a mulher cananeia foi transformador tanto para a mulher como para Jesus. Que seja assim também na nossa vida.
LCI 605 (Momento novo).
LCI 155 (Deus é meu amparo).
Deus de amor, agradecemos por nos reunires como tua família. Ao redor do mundo, muitos filhos e muitas filhas tuas clamam por auxílio. Há doenças que não entendemos. Há angústias e dores de todos os tipos. Há pessoas espalhando ódio e rancor. No meio de tudo isso, nós confiamos na tua promessa de não nos deixar sós. Ajuda-nos a testemunhar teu amor, acolhendo as pessoas aflitas com compaixão. Isso te pedimos por Jesus Cristo, teu Filho amado. Amém.
LCI 56 (Pelas dores deste mundo, ó Senhor).
Que a insistência, a perseverança e a coragem para argumentar brotem e floresçam em ti, para que tuas decisões possam ser ouvidas e tuas necessidades respeitadas.
Que tua boca profira palavras de bênção e tua voz seja ouvida quando se faz necessário clamar, gritar e denunciar.
Que o silêncio e o medo sejam afastados de ti, para que novos diálogos e possibilidades de se relacionar façam parte da tua caminhada.
Que tuas experiências cotidianas não sejam de migalhas de felicidade, migalhas de dignidade, migalhas amor e migalhas de justiça. Mas que, como um farto banquete, as alegrias preencham tua casa e tua vida.
Que a fé e ousadia da mulher cananeia nos inspirem na luta por justiça social, no combate à pobreza, à violência, e nos animem a manter vivas a esperança e universalidade do reino prometido. Que assim nos abençoe o trino Deus. Amém.
Vão em paz e acolham irmãs e irmãos com alegria.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1982. 6 v.
REIMER, Ivoni Richter. “Não temais… Ide ver… e anunciai: mulheres no Evangelho de Mateus. RIBLA. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, n. 27,
1997. p. 149-166.
WEISSHEIMER, Vera. Mateus 15.21-28. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 2007. v. 32, p. 255-258.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).