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Somos mais que vencedores

 

Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Romanos 8.26-39
Leituras: 1 Reis 3.5-12 e Mateus 13.31-33,44-52
Autoria: Claiton André Kunz
Data Litúrgica: 8° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/07/2020

 

1. Introdução

Ao escrever a Carta aos Romanos, Paulo devia estar perto do final da sua terceira viagem missionária. Foi nessa ocasião que o apóstolo estava se preparando para voltar a Jerusalém, tendo Roma como seu próximo destino (At 19.21; 20.16). Corinto é o local mais provável onde a carta foi escrita. Quando Lucas nos conta que Paulo passou três meses na Grécia (At 20.3), o mais provável é que o apóstolo tenha ficado em Corinto (2Co 13.1,10). Uma confirmação disso está no fato de que Paulo tenha feito recomendação de uma mulher que vivia em Cencreia, um dos portos de Corinto. Possivelmente foi ela que entregou a carta na igreja em Roma. A data mais provável da redação da Carta aos Romanos é o ano de 57 d.C. Os destinatários são os cristãos de Roma. Alguns dizem que Paulo se refere a dois grupos existentes na igreja em Roma: judeus e gentios. O que interessa para Paulo é que esses grupos aprendam a se aceitar e a se respeitar (15.7ss).

Romanos tem sido há muito a base da espinha dorsal da teologia cristã. A maior parte dos termos técnicos, como justificação, imputação, adoção e santificação, é extraída do vocabulário de Romanos, cuja estrutura de argumentação constitui a coluna vertebral do pensamento cristão. A carta do apóstolo Paulo à igreja em Roma é o documento mais importante da teologia. Ela causou diversas reações nos seus leitores. Agostinho, por exemplo, se converteu por causa dela; Martim Lutero descobriu que a justificação do pecador é por meio da graça etc. A carta de Paulo aos romanos sempre é maior do que as tentativas de interpretá-la. Ela é um testemunho comovente do evangelho de Jesus Cristo.

Essa carta é caracterizada pela sua forma de diálogo: o apóstolo não somente compartilha as suas opiniões, mas envolve os leitores e as leitoras em suas considerações, formulando perguntas que ele imagina que os romanos tinham. A Carta aos Romanos trata do Deus que torna as pessoas justas para que possam viver com ele e de acordo com a sua vontade. A carta afirma que todas as pessoas – judeus e gentios – vivem em contradição com os princípios de Deus. Portanto necessitam de Jesus Cristo, que intervém de forma vicária em suas vidas.

 

2. Exegese

Algumas observações exegéticas do texto de Romanos 8.26-39:

V. 26a – A expressão nos ajuda em nossa fraqueza (synantilambanetai tē astheneiai hēmōn) é um composto notável, que acontece somente aqui e na petição de Marta de que Maria a ajudasse (Lc 10.40). Aqui Paulo descreve o Espírito Santo como se colocando ao nosso lado e, ao mesmo tempo, em nossa fraqueza, antes que seja demasiadamente tarde.

V. 26b – Quando o texto afirma que o Espírito Santo “intercede” por nós, o texto original usa o termo hypertynchanō, no presente do indicativo ativo, denotando uma ação contínua por parte do Espírito. O termo significa pedir ou interceder em favor de alguém. É uma palavra pitoresca que denota a libertação por alguém que “chega casualmente” onde está alguém em perigo e, “em seu favor” intercede com “gemidos inexprimíveis” ou com “suspiros que substituem palavras”. O termo grego alalētos usado aqui denota algo impossível de ser falado.

V. 27 – Quando afirma que o Espírito intercede pelos santos de acordo com a vontade de Deus, temos no original a expressão kata Theon. O Espírito Santo, que em João 14.16 é chamado de outro paraklētos, é aquele que está ao nosso lado, interpretando nossas orações diante de Deus, e, conforme a vontade de Deus, intercede pelos santos.

V. 28 – A palavra grega synergei, que pode ser traduzida como cooperar, dá a ideia de trabalhar junto ou trabalhar com o outro. É desse termo que vem a nossa palavra sinergia.

V. 29 – Quando se atribui a Cristo o termo primogênito, utiliza-se no original o termo prōtotokos. Por primogênito poder-se-ia pensar no Filho de Deus como o “primeiro que foi gerado”, mas isso criaria um sério problema em nossa cristologia e doutrina da Trindade. Por isso é preciso entender que prototokos não está relacionado com “ser gerado” (que seria o caso de prōtogenēs), mas com a prioridade e a supremacia de Cristo, assim como também em Colossenses  1.15.

V. 30 – Para “glorificou” Paulo usa edoksasen, no aoristo. O aoristo fala de Deus que vê o fim desde o início, e em seus decretos e propósitos todos os eventos futuros são abrangidos.

V. 31 – Que diremos, pois, diante destas coisas? (no grego, pros tauta). Desde o versículo 12 em diante, Paulo está apresentando as razões para a certeza da santificação final dos filhos de Deus. Em forma de perguntas retóricas, ele arremata: Se Deus é por nós, quem será contra nós? Não há ninguém que pode ser comparado com Deus. Chamam a atenção as preposições gregas usadas na expressão por nós (hyper) e contra nós (kata). Hyper denota “sobre”, enquanto kata denota “abaixo ou contra”.

V. 32 – Aquele que não poupou vem da expressão original ouk epheisato, na forma aoristo médio de feidomai, um verbo antigo utilizado na Septuaginta para o sacrifício de Isaque em Gênesis 22.16.

V. 33 – Paulo utiliza o verbo egkalesei para falar da acusação contra os escolhidos de Deus. O verbo egkaleo é um termo antigo e significa “apresentar-se como acusador (termo legal)” numa causa diante do tribunal ou “acusar”. O termo é usado no NT em Atos 19.40; 23.29 e 26.2. Neste caso em Romanos, Satanás é o grande acusador dos santos. Entretanto, ele terá que enfrentar o Grande Juiz, Deus, que é quem justifica seus filhos, de acordo com o seu plano de justificação (3.21-31).

V. 34 – O verbo katatrinōn é traduzido por “condenará”. A pergunta é: quem é capaz de se apresentar diante de Deus, com calúnias ou mesmo acusações verdadeiras, porquanto temos um advogado no Tribunal de Deus (1 João 2.1), que está à direita de Deus, e que intercede por nós. Nosso advogado pagou com seu sangue a dívida dos nossos pecados. A dívida está paga e nós estamos livres (8.1).

V. 35 – O verbo chōrisei traz a ideia de espaço. A pergunta é se alguém pode interpor uma distância entre o amor de Cristo e nós? Poderia alguém induzir a Cristo a deixar de amar-nos? Paulo então troca a figura quem (tis) por o que (ti), mencionando circunstâncias que não podem induzir a Cristo a nos amar menos.

V. 36 – Enfrentamos a morte todos os dias. O verbo grego thanatoumetha está no presente do indicativo na voz passiva, trazendo a ideia de um martírio contínuo, como em 1 Coríntios 15.31.

V. 37 – O verso 37 inicia com a conjunção alla (mas, porém), deixando claro que não seremos separados. Para “mais que vencedores” encontramos no original a palavra hypernikōmen, que pode ser traduzida por vencer ou conquistar. Aparece somente aqui no NT. A preposição hyper intensifica o verbo, dando a ideia de que “estamos tendo uma gloriosa vitória”.

V. 38 – pepeismai gar, um particípio perfeito passivo, pode ser traduzido por “estou convencido”. As circunstâncias mencionadas são aquelas que as pessoas temem (vida, morte, anjos, demônios, presente, futuro ou quaisquer poderes), para não deixar nada omisso.

V. 39 – dynēsetai hemas chōrizai pode ser traduzido por “nada é capaz de separar”, ou nada tem a capacidade de separar. Está no aoristo do infinitivo voz ativa do verbo chorizo (mesmo verbo que no verso 35). O amor de Deus, que está em Cristo Jesus, é vencedor sobre todas as forças possíveis, desencadeadas em oposição.

 

3. Meditação

Há segurança para a salvação?

Os primeiros capítulos da Carta aos Romanos poderiam ser estruturados da seguinte maneira:

a) a condenação (cap. 1 – 3): judeus, gentios, na verdade, todos (3.23) estão perdidos;

b) a justificação (cap. 4 – 5): justificados, pois, pela fé temos paz com Deus (5.1);

c) a santificação (cap. 6 – 8): princípios, aplicação e o poder da santificação.

Em todos esses capítulos, o apóstolo Paulo faz uma série de perguntas retóricas, como se estivesse debatendo com alguém. Paulo lança a pergunta e ele mesmo propõe a resposta. No capítulo 8, de forma geral, poderíamos fazer alguns resumos dessas perguntas:

– Há saída para o pecado (8.1-11)? Sim, é preciso estar em Cristo (em quem já não há condenação) e viver no Espírito.

– Há saída para o sofrimento (8.18-25)? Sim, precisamos ter esperança, paciência e dependência.

– Há segurança para a salvação (8.26-39)? É claro que existe. Mas em que está baseada essa segurança, se passamos por fraquezas (v. 26), nem sequer sabemos orar (v. 26) e muitas coisas ao nosso redor parecem conspirar contra nós (v. 28)? Paulo então passa a argumentar:

a) Temos segurança da salvação, porque Deus é por nós (v. 31-32). A pergunta retórica do verso 31 é quem poderá vir contra nós, se Deus é por nós? Se Deus não poupou nem o seu próprio Filho para proporcionar a salvação ao ser humano, não cuidaria de nós também em todos os sentidos, lutando por nós e por nossas vidas? O caso de Jó, no Antigo Testamento, poderia ser colocado como um exemplo disso. Em 1 João 5.18, vemos que aquele é nascido de Deus, o próprio Deus o protege e o Maligno não o atinge.

O mais interessante é que essa segurança não nos é dada pelo nosso esforço, pelos nossos méritos, mas é “de graça!”, conforme o verso 32.

Poderíamos ainda inverter a pergunta: por um lado, se Deus é por nós, quem será contra nós?, mas, por outro lado, se Deus é contra nós, quem será por nós?

b) Temos segurança da salvação, porque ninguém pode nos acusar (v. 33-34). A pergunta de Paulo é quem fará alguma acusação contra os escolhidos de Deus? Se é Deus quem os justifica, ninguém terá condições de acusá-los de qualquer coisa. A parábola do fariseu e do publicano (Lc 18.9-14) constitui um
belo exemplo de que a justificação vem da graça e misericórdia divina e não por méritos próprios.

Se já é complicado fazer alguma acusação contra os escolhidos de Deus, seja por calúnia ou mesmo com algum fundo de verdade, Paulo vai mais a fundo e pergunta: Quem os condenará? E a resposta fulminante é: foi Cristo que morreu por nós. E ele não apenas morreu, mas também ressuscitou, e está à direita de Deus, intercedendo por nós.

Em 1 João 2.1-2, percebemos que temos um intercessor, na verdade, um advogado junto ao Pai para nos defender, que é o próprio Jesus Cristo. A palavra que está no original é paraklētos, ou seja, aquele que foi chamado para estar ao nosso lado, para nos defender. Se é Jesus que vai nos defender junto ao Pai, quem poderia nos condenar?

c) Temos segurança da salvação, porque nada pode nos separar do amor de Deus (v. 35-39). A próxima pergunta retórica de Paulo é sobre quem nos separará do amor de Cristo? Seria tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada etc. Paulo sabia muito bem o que era isso, pois constantemente passou por essas lutas, mas Deus jamais o abandonou.

Nos versos 38 e 39, Paulo é ainda mais contundente, quando afirma que nem a morte nem a vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação tem a capacidade de nos separar do amor de Deus.

As expressões gregas “nem… nem” expressam totalidades, e a ideia é que, apesar dessas totalidades, Deus está no controle. Absolutamente nada nem ninguém em qualquer lugar, em qualquer tempo, em qualquer situação, será capaz de nos separar do amor de Deus.

É muito interessante que Paulo sempre fala do amor de Deus e de Cristo como garantia dessa segurança, e não do nosso amor, pois o nosso é sempre instável e limitado. Por tudo isso Paulo afirma que somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou.

 

4. Imagens para a prédica: Saber para Salvação

Um jovem que havia acabado de concluir um curso universitário atravessava um rio em companhia de um pescador crente. O “sábio” rapaz iniciou a conversa indagando se o barqueiro havia estudado gramática e latim. Com a resposta negativa, o universitário respondeu:
– Você perdeu um bom tempo da sua vida!
Logo formulou outra pergunta:
– Sabe alemão e inglês?
– Não – respondeu o “ignorante” barqueiro.
– Pois então perdeu muito mais tempo da sua vida – acrescentou o viajante.
– Conhece história e filosofia?
Quando tentava formular a terceira pergunta, um forte vento inesperadamente arrebatou o barco, que começou a afundar. Os dois foram lançados na água.
Enquanto o rapaz se debatia, o barqueiro lança sua única pergunta:
– O companheiro sabe nadar?
– Não! – foi a resposta num tom de espanto e terror.
– Então você perdeu a vida inteira! – retrucou o pescador, que, estendendo o braço, conseguiu segurar o universitário e salvá-lo do afogamento.

 

Bibliografia

RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. Trad. Gordon Chown e Julio Zabatiero. Santo Paulo: Vida Nova, 1988.
ROBERTSON, Archibald Thomas. Imágenes verbales en el Nuevo Testamento. Barcelona: CLIE, 1989. (Tomo 4 – Las epístolas de Pablo).

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).