Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Lucas 9.51-62
Leituras: 1 Reis 19.15-16,19-21 e Gálatas 5.1,13-25
Autoria: Geraldo Graf
Data Litúrgica: 3º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30 de junho de 2019
O Evangelho de Lucas foi escrito na segunda metade do primeiro século do cristianismo, entre 75 e 95 d.C. O autor – Lucas – era médico (Cl 4.14) e acompanhou o apóstolo Paulo em suas viagens missionárias. Provavelmente, era um gentio convertido ao cristianismo. Ele se inspirou no Evangelho de Marcos e usou com o evangelista Mateus a Fonte Q. Ele dedicou o evangelho a Teófilo – amigo/amado de Deus –, o que pode ser entendido como uma alusão a todos os que aceitam o evangelho, tornando-se amigos de Deus. Lucas escreveu a partir de testemunhos e fontes “cuidadosamente investigados” (Lc 1.3), procurando assim convencer seus leitores da veracidade dos fatos e chamar pessoas ao discipulado. O evangelho inicia e termina no templo (Lucas 1.9; 24.53), indicando a importância de um local em que Deus se comunica com a humanidade.
Lucas queria que seu testemunho fosse lido por um público gentio, e apresentou Jesus Cristo como Salvador tanto de judeus como de gentios, Salvador de toda a humanidade. Ele queria que aqueles que lessem seu testemunho tivessem a certeza (Lc 1.4) sobre o Filho de Deus, sua paixão, morte e ressurreição.
Lucas elaborou uma teologia da história, que tem suas raízes no passado, chega ao auge em Jesus Cristo, continua na igreja pela ação do Espírito Santo (Atos dos Apóstolos) e se consuma na parúsia. O caminho de Jesus Cristo é tempo da realização da parúsia (Hoje se cumpriu… – Lc 4.21), que se tornará completa na sua vinda definitiva.
Lucas focou muito no valor que Jesus Cristo deu aos grupos desprezados pela sociedade: mulheres, estrangeiros, pobres, doentes e pecadores. Jesus demonstrou muito amor por aqueles que não eram considerados dignos pela sociedade.
O texto de Lucas 9.51-62 abre o bloco do relato de viagem para Jerusalém (Lucas 9.51 – 18.14) e aborda três aspectos, que têm o discipulado como tema central:
v. 51: a decisão de ir para Jerusalém;
v. 52-56: os samaritanos não acolhem Jesus;
v. 57-62: três diálogos em torno do discipulado.
Todo o texto trata exclusivamente dos discípulos e do discipulado. Todos os acontecimentos e diálogos devem ser lidos e interpretados tendo como pano de fundo o caminho de Cristo em direção à cruz e os desafios do discipulado decorrentes disso. Também aqueles que não acolhem o Salvador são atingidos pela misericórdia do Senhor, embora os discípulos ainda não o compreendam. O juízo final decidirá sobre justos e injustos. Até lá é tempo de anunciar, de levar o evangelho a todas as pessoas. O discipulado requer decisões imediatas e radicais.
Ida a Jerusalém – Jesus decidiu ir a Jerusalém. Não se tratava de um passeio turístico ou de uma peregrinação religiosa. Jesus sabia o que o esperava: a cruz, mas também a ressurreição e a glória de Deus. No caminho, ele e seus discípulos procuraram hospedar-se em uma vila samaritana, onde seriam rejeitados – justamente por se dirigirem a Jerusalém (v. 53). Alguns discípulos antecederam Jesus na busca e preparação da hospedagem. Essa era uma prática de Jesus (Lc 22.7ss). Esta tarefa cabe aos cristãos de todos os tempos: ir às pessoas e motivá–las a acolher Jesus Cristo em suas casas, em suas famílias, em suas vidas. Não se anuncia um Jesus a caminho de um passeio, mas a caminho da cruz. Esse é um aspecto central tanto para quem anuncia como para quem acolhe. Disso depende o discipulado. Também é importante observar que o anúncio do Cristo crucificado (1Co 1.23) geralmente não “chega bem” aos ouvidos e corações de muitas pessoas. “Eu aceito Jesus, mas…”; “Eu sigo Jesus, desde que…”. Esses são os desafios do discipulado.
O v. 51 relata a “intrépida resolução” de Jesus ir a Jerusalém. Esse aspecto é fundamental para compreender a reação dele quando Tiago e João, os “filhos do trovão”, propuseram uma ação extrema contra os samaritanos que não acolheram Jesus. Os dois queriam que Jesus fizesse descer fogo do céu para consumi-los (2Rs 1.9-16).
Os samaritanos eram vizinhos odiados dos judeus por causa de diferenças étnicas e religiosas. Contudo, Jesus atreveu-se a pedir-lhes hospedagem. Negar pousada para alguém era extremamente deselegante e ofensivo em Israel (Gn 19.1-3; Mt 25.35-36). Essa atitude ofendia a Deus, pois a hospitalidade era um mandamento divino para o povo que havia sido migrante em terra estrangeira (Lv 19.33-34). Fechar o coração e negar acolhida ao Filho de Deus era infração gravíssima.
Diante da recusa, Jesus continuou seu caminho, pois nada e ninguém poderiam detê-lo do seu firme propósito de ir a Jerusalém. O foco de Jesus, nesse caminho, era chamar e preparar discípulos e anunciar o reino de Deus. Por isso Jesus não usou seu poder divino para castigar os samaritanos que o rejeitaram. Pelo contrário, todas as ações de Jesus sempre tiveram o propósito de ajudar, curar e libertar as pessoas oprimidas. Jesus veio ao mundo para manifestar o amor de Deus, não a sua ira (Mt 13.24-30). Essa é uma profunda exortação para aqueles que se dispõem a seguir Jesus nos dias atuais, para que não julguem e condenem quem não se enquadra em seus conceitos. Este é um dos desafios do discipulado: amar e não odiar os inimigos (Mt 5.43). Jesus veio ao mundo e se colocou a caminho para chamar pessoas ao discipulado. E essas, por sua vez, seriam preparadas e enviadas para fazer discípulos de todas as nações, espalhando assim o amor de Deus. Nessa missão não se encaixam preconceitos.
O caminho a Jerusalém é um convite ao discipulado. Na contramão de toda e qualquer teologia da glória ou da prosperidade, esse caminho passa pela cruz. Mas não se detém nela. Objetivo e alvo do caminho de Jesus Cristo é a Páscoa. É um caminho para a vida e não para a morte.
Os três diálogos – Em seguida, acontecem três rápidos diálogos sobre o discipulado. A intenção do texto não é apenas oferecer um relato sobre o encontro de Jesus com três postulantes ao discipulado, mas oferecer uma reflexão sobre nós mesmos, sobre nossa vocação e nossa disposição para segui-lo, mesmo sabendo que é caminho que passa pela cruz, que exige decisões e prioridades.
A fama de Jesus havia se espalhado e muitas pessoas ficaram curiosas sobre o jeito de Jesus ensinar. Gostariam de se tornar suas alunas e acompanhá-lo em suas “aventuras”. Outras pensavam que o caminho para Jerusalém seria a manifestação do poder de Deus e a reconstituição da glória de Israel como nos tempos do rei Davi. Já outras não queriam abrir mão de suas prioridades, e seguir Jesus somente nos momentos de folga (cristãos de domingo). Por isso, precipitadamente e sem maior reflexão, pessoas se dispuseram a seguir Jesus, certamente pensando nas vantagens imediatas e materiais dessa decisão. Esse também pode ser o nosso risco quando movidos unicamente pela emoção, por impulsos ou por interesses pessoais, impensadamente respondemos: “Jesus, eu te seguirei para onde quer que fores – desde que não seja para a cruz!”. Nos três diálogos, destacam-se exigências quanto ao discipulado:
1. desapego das coisas e das pessoas;
2. não retardar a decisão com desculpas;
3. não se apegar ao passado.
A primeira pessoa vem até Jesus com a expectativa de fazer uma experiência de vida alternativa, de ter um mestre, mas sem compromisso nem sacrifícios. E Jesus o chama ao desapego. Jesus deixa claro que o discipulado não é um simples passeio. Raposas e pássaros estarão em melhor situação do que aqueles que se dispõem a segui-lo. Quem quiser se tornar um discípulo de Jesus precisa pesar tudo isso antes de aceitar o chamado. Toda e qualquer precipitação pode ter consequências negativas na atuação do discipulado. O apóstolo Pedro é um exemplo disso (Jo 13.37; 18.17). No entanto, fica evidente que quem quiser se decidir pelo discipulado precisa ter claro o que isso significa e o que implica, justamente para ter credibilidade e poder enfrentar as próprias fraquezas, não confiando somente em si mesmo.
A segunda pessoa recebe um chamado para a vida. “Sim. Aceito. Mas primeiro quero sepultar meu pai”. A resposta de Jesus não é um impedimento de se cumprir o quarto mandamento. O sepultamento é uma das sete obras da misericórdia. Na época, sepultar um ente querido era uma tarefa sagrada, até mais sagrada do que ler as Escrituras e cumprir os mandamentos. Ao dizer deixa os mortos enterrarem seus próprios mortos, Jesus não contradiz essa tarefa. Ele aponta para a necessidade de definir prioridades. Seguir Cristo é prioridade absoluta. Tendo definido a prioridade, não há impedimento de se expressar amor e solidariedade às pessoas enlutadas, já como expressão do discipulado, que aponta para o Ressuscitado. Essa palavra de Jesus nos provoca a examinar o que nos impede de aceitar o seu discipulado. Seguir Jesus significa, em meio à realidade da morte, anunciar a vida nova e eterna.
A terceira pessoa recebe um chamado para o futuro. Ela é criticada porque se apega a compromissos familiares, que lhe são mais importantes. Ela aceita o convite de Jesus, mas ainda se sente atrelada ao passado. “Sim, aceito. Mas…”. Com isso ela protela tudo o que deveria acontecer imediatamente. Jesus responde usando o exemplo do agricultor que ara a terra. Ao pôr a mão no arado, ele não pode olhar para trás, com o risco de sair do sulco e perder o alvo que está à sua frente. Conhecemos exemplos de quem olhou para trás. Na Bíblia, temos a história da esposa de Ló (Gn 19.26). Ao olhar para trás, virou estátua de sal. Na mitologia grega, temos a história de Orpheu que, ao resgatar sua amada Eurídice do mundo dos mortos, olhou para trás e a perdeu definitivamente. O compromisso com Jesus aponta para o futuro. Por isso é preciso olhar para frente. O Cristo que vai à nossa frente é a nossa referência. No discipulado, nossos olhos devem permanecer fixos nele.
Compromisso – A crítica de Jesus se refere ao “olhar para trás”, para tudo que prende e atrapalha o discipulado. Ao receber a comunicação de envio, certo candidato ao ministério declarou: “Eu aceito ser enviado para qualquer lugar, desde que não seja mais do que 500 km da casa de meus pais!”; “Eu aceito seguir Jesus, desde que isso não interfira nos meus projetos particulares, desde que não me obrigue a abrir mão daquilo que eu considero importante na minha vida”. Discipulado tem a ver com desapego, com definição de prioridades. Seguir Cristo com nossos dons, tempo e capacidades deve ser nossa prioridade número um. Para tanto, é preciso abrir mão de muitas coisas que ocupam nosso tempo e desviam nossa atenção. Além disso, precisamos nos dispor a assumir sacrifícios e renúncias no seguimento de Cristo – tomar nossas cruzes e não olhar para trás. Seguir Jesus Cristo passa pelo amor ao próximo, a quem devemos nosso testemunho e nosso cuidado. Quem segue Jesus Cristo se coloca em movimento em direção das pessoas, em direção do anúncio de “novos céus e de nova terra onde habita a justiça” (2Pe 3.13).
1 – Entusiasmo ainda não é discipulado. Muitos se deixam levar pelas emoções do momento, sem medir as consequências. Os três candidatos ao discipulado têm deficiências para corrigir se querem seguir aquele que está a caminho da cruz. Jesus não refuga nenhum deles, mas aponta o que precisa ser superado. Mesmo aqueles que o rejeitam não são excluídos do amor de Deus. Quem está na escola de Jesus precisa aprender isto. Quem se dispõe a seguir Jesus precisa saber que não se trata de um passeio. É preciso fazer escolhas.
2 – Ninguém consegue se tornar discípulo de Jesus por vontade ou força própria. Porém pode contar com a ajuda do Senhor, que o transforma e prepara pela força do Espírito Santo. Aquele que nos chama ao discipulado também nos fortalece. Mesmo que tenhamos reservas ou dificuldades, é o chamado de Jesus que nos convence e envia.
3 – O discipulado é prioridade. O caminho com Cristo passa pela cruz, mas não se detém nela. Anunciamos a Páscoa e a vida nova que Cristo conquistou nesse caminho. Ali onde pessoas ainda choram seus mortos, cabe-nos anunciar o reino de Deus. O resto deixa de ser prioritário em nossa vida.
4 – Seguir Jesus significa ser obediente a ele. Significa viver em comunhão com Cristo e com as pessoas, significa praticar a missão e colocar a fé em prática através do amor.
Senhor, nós queremos te seguir como discípulos. Porém ficamos assustados ao descobrir que teu caminho passa pela cruz. Ficamos inseguros ao perceber que não tens nem mesmo onde reclinar a cabeça. Mesmo assim, tu nos convidas a te acompanhar com nossas fraquezas e inseguranças. Dá-nos a compreensão de que teu caminho não cessa na cruz, mas que segue adiante para a manhã da Páscoa e para a glória do Pai. Torna-nos instrumentos da vida verdadeira e faze-nos anunciá-la em meio à realidade da morte. Cativa-nos a aceitar o discipulado, a ir contigo nos caminhos da esperança e nos abrir para novos horizontes. Amém.
BOGDAHN, Martin. Auxílio. In: Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart: Calwer Verlag, 1978. v. 1, p. 204ss.
KLINKHAMMER, Benedikta. Predigt über Lukas 9,51-62. In: Göttinger Predigten im Internet. Disponível em: < http://www.theologie.uzh.ch/predigten/aktuell.php>.
MURDOCH, Dr. Paul. “Du aber geh!”. In: Zuversicht und Stärke. Neuhausen: Hänssler, 1997. Reihe I/2, p. 50ss.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).