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Viver em unidade

 

Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica
: Filipenses 2.1-13
Leituras: Ezequiel 18.1-4, 25-32 e Mateus 21.23-32
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 18° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 01/10/2023

 

1. Introdução

Todo aquele que se propõe a uma leitura atenta da Carta aos Filipenses ficará impressionado com a ênfase cristológica que Paulo confere ao texto. Considerando-se apenas o primeiro capítulo, o nome de Cristo é mencionado 18 vezes! E no segundo capítulo da carta, somos conduzidos ao famoso hino cristológico, que aponta para o Cristo que se esvazia a si mesmo e assume integralmente a nossa humanidade. Sem dúvidas, a pessoa de Cristo perfaz o núcleo teológico de toda a carta.

Ao mesmo tempo, chama a atenção que Paulo, ao dar tanta ênfase à pessoa de Cristo em sua carta, não se propõe primeiramente a escrever um tratado dogmático acerca da divindade e humanidade de Cristo. Ao apontar para Cristo, Paulo tem uma intencionalidade pastoral para com a comunidade dos filipenses. Ele não escreve a sua carta desconectado da vida da comunidade, mas está tratando de um problema real e concreto, qual seja: viver em unidade.

É verdade que a unidade de uma comunidade cristã não pode ser produzida através do esforço humano. Ela é dádiva divina. Não podemos produzir unidade, apenas mantê-la! Existe apenas um corpo de Cristo, uma santa igreja católica, um só rebanho, uma noiva de Cristo. Nesse sentido, a expressão em Cristo, que se encontra no início do v. 1, é basilar para a hermenêutica de todo o capítulo, pois ela aponta para a dádiva de Deus, para o “indicativo” da graça de Deus. Sem essa clareza do evangelho, que revela aquilo que Deus já fez e continua fazendo por nós através de Cristo, a prédica se transformará em pura lei. Portanto a ação de Deus antecede o agir humano e se configura no fundamento da ética cristã.

 

2. Exegese

V. 1 – Os alicerces para a unidade

Visto que… ou Tão certo quanto… estamos em Cristo – assim podemos traduzir a parte inicial do v. 1. Paulo não deixa dúvidas acerca da realidade divina, das dádivas que foram presenteadas à comunidade e que se manifestam na experiência dos filipenses. Que dádivas são essas?

a) A comunidade possui uma motivação, por conta da pessoa e obra de Cristo – como veremos nos v. 6-8. O que Cristo já fez pela comunidade se constitui em sua motivação, sua mola propulsora, sua energia vital para viverem como comunidade cristã.

b) Deus concedeu consolo no amor, pois em Cristo Deus manifesta de forma inequívoca seu amor pela comunidade.

c) Foram inseridos na comunhão dos filhos e filhas de Deus, através da maravilhosa obra do Espírito Santo, que atesta essa filiação (Jo 1.12-13).

d) Experimentaram a profunda afeição (misericórdia) e compaixão de Deus.

A miséria humana revolveu as entranhas paternas de Deus de modo que ele manifestasse sua compaixão. Envolvidos por essa experiência tremenda da compaixão divina, cristãos se sabem motivados para mostrar compaixão pelos outros (Schwambach, 2010, p. 42).

V. 2 – A exortação à unidade

Os filipenses sempre formaram uma comunidade muito parceira do apóstolo Paulo. Foi uma das poucas comunidades que se importou e cuidou de Paulo quando ele esteve na prisão. Não hesitaram em levantar ofertas para ajudar a comunidade empobrecida em Jerusalém e no sustento do próprio Paulo (2Co 8). A comunidade dos filipenses proporcionou muitas alegrias a Paulo, de modo a subsistir um relacionamento de carinho e cuidado entre eles. Dito isso, Paulo exorta a comunidade a manter unidade:

a) demonstrando unidade de pensamento. Dez vezes Paulo usará o verbo phronein (pensar a mesma coisa) na sua Carta aos Filipenses. Não se trata de um pensamento teórico, mas de uma unidade de pensamento volitiva;

b) demonstrando unidade nos relacionamentos, porquanto as “engrenagens” dos relacionamentos são lubrificadas pelo amor;

c) demonstrando unidade espiritual, como se dois corações batessem no mesmo ritmo;

d) demonstrando unidade de sentimento, no sentido de toda a comunidade – como um coro, “cantar na mesma tonalidade”. Ou seja, em meio à diversidade de ideias e pessoas que caracterizava a comunidade dos filipenses, todos cooperam para um objetivo comum, um bem, um alvo comum.

Na comunidade cristã, cada pessoa tem sua opinião, seu pensamento. Isso é bom! Paulo não entende que todas as pessoas cristãs devam ser iguais. Não se trata de eliminar a boa diversidade criada por Deus. No entanto, às vezes, uma pessoa tenta impor seu pensamento às outras, gerando posturas egoístas, ambiciosas e arrogantes. Finalmente, pode acontecer que cada um busque apenas seus próprios interesses na comunidade. Contra essa tendência natural do ser humano (e que também se manifestava entre os filipenses) é que Paulo conclama a comunidade para que ela se comprometa e se empenhe em viver em unidade. Porém, um ponto é decisivo: todos são exortados a esforçar-se, a lutar e se empenhar pela unidade com as forças e a graça que vem de Deus (v. 1), e não a partir das próprias forças (Fp 2.12-13).

V. 3-4 – Humildade que promove a unidade.

“A humildade é o remédio para os males que atacam a unidade da igreja” (Lopes, 2007, p. 113). A verdadeira humildade não é um ideal que nunca se pratica, pelo contrário: assume formas concretas na vida da comunidade. Não é um ato isolado, mas uma postura que permeia todas as demais ações de uma pessoa.

a) Ser humilde é não fazer as coisas por “ambição egoísta”. Ambiciosa é a pessoa que faz tudo para alcançar seus próprios planos, sem levar em conta os outros. Sempre impõem e atropela os outros, desconsiderando-os.
b) Ser humilde é não fazer as coisas de forma “vaidosa”. A vaidade faz com que a pessoa se supervalorize, se autoprojete e menospreze as demais.
c) Ser humilde é “considerar os outros superiores a si mesmo”. Não se trata de um tipo de humildade falsa, irrealista, fingida, em que só se “faz de conta” que o outro é superior. Pelo contrário, considerar o outro superior é honrar o outro, considerar o irmão e a irmã na fé, procurar os interesses dele e dela – e não só os próprios interesses.
Portanto, orgulho separa as pessoas. Humildade autêntica une as pessoas. Vaidade e autoprojeção criam barreiras, mas o amor e a honra restauram a comunhão e a unidade. O exemplo supremo disso é o próprio Cristo (v. 5-11)! (Schwambach, 2010, p. 43-44).

V. 5-11 – A unidade em Cristo.

Nos versículos que seguem, Paulo passa a descrever o que caracteriza a vida de uma pessoa que está ligada, conectada, que vive em Cristo.

Na primeira parte (v. 5-8), Paulo esquematiza o caminho de Cristo que, sendo Deus… tornou-se servo/escravo, semelhante aos homens.

a) Cristo voluntariamente abre mão de seus direitos (v. 6). Inicialmente, Paulo explica que Cristo subsiste em forma de Deus… Essa palavra (morphe no grego) descreve aquilo que é essencial, que não pode ser mudado, é inalienável. Assim Paulo atesta que Jesus é Deus em forma essencial, inalterável e imutável. No entanto,

b) Cristo se esvaziou (v. 7), que literalmente significa “tirar algo de um recipiente até que fique vazio”, “derramar algo até que não fique nada”. Paulo está descrevendo a encarnação de Jesus. “Cristo não trocou sua natureza/forma (morphe) divina pela natureza/forma de um escravo; antes, Ele demonstrou a natureza/forma de Deus na natureza/forma de um escravo” (Bruce, 1989, p. 78-79) (Jo 13.13-14).

c) Cristo assume a natureza/forma de servo. No grego, novamente encontramos a palavra morphe. Portanto Jesus não fingiu ser servo, não assumiu um papel (como um ator), ele foi servo de fato (Lc 22.27). Além de servo,

d) tornou-se semelhante (homoioma) aos seres humanos. A palavra usada por Paulo expressa aparência externa. Portanto Cristo possui a morphe (natureza/forma ) de Deus e de servo e assume aparência humana. Do ponto de vista físico, Cristo foi perfeitamente ser humano.

Além disso, Paulo expressa, no v. 8, que Cristo, sendo encontrado…

e) em forma (figura) humana, humilhou-se… Aqui Paulo usa a palavra grega schema. Schema designa a aparência externa de uma pessoa. É mutável. Assim um bebê, uma criança, um jovem, um adulto e um idoso partilham da natureza (morphe) humana, mas sua forma/figura (schema) exterior muda com o tempo. Schema, portanto, traduz a ideia de “em conformidade com a experiência humana”. Tudo o que diz respeito à experiência humana Jesus também vivenciou.

Na segunda parte (v. 9-11), Paulo descreve a exaltação de Cristo à posição de Kyrios (Senhor).

a) Chama a atenção que o protagonista da exaltação é o próprio Deus. Assim Jesus mesmo ilustra o que ele mesmo havia dito: […] todo o que se exalta, será humilhado, mas o que se humilha, será exaltado (Lc 18.14); pois Deus exalta aqueles que se humilham (Is 53; 1Pe 5.6). Se Cristo voluntariamente, por amor, abriu mão de sua glória divina, agora Deus restitui a sua glória, dando-lhe toda a autoridade no céu e na terra (Mt 28.18).

b) A exaltação de Jesus é única e incomparável. É isso que expressa o superlativo usado no texto e traduzido como o exaltou a mais alta posição.

c) A exaltação de Cristo traz como consequência a rendição de toda a criação. Cristo é exaltado para que todo joelho se dobre e toda língua confesse que Jesus é o Kyrios.

 

3. Meditação

Quando nos aproximamos do hino cristológico e meditamos acerca de sua mensagem, logo surge a pergunta pela motivação, pela intencionalidade de Paulo ter escrito, numa forma tão comprimida, sua “mini” cristologia. Tenho para mim que Paulo não escreveu o texto motivado apenas por um deleite pela dogmática. Pelo contrário: Paulo está convencido de que necessitamos de uma imagem clara acerca de Cristo, para podermos viver em unidade. Na sua Segunda Carta aos Coríntios, Paulo escreve: Todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito (2Co 3.18). Portanto a comunidade dos crentes em Jesus Cristo reflete, como num espelho, a glória de Cristo. Simultaneamente a comunidade cristã é transformada pela fé, em toda a sua existência, de modo a tornar-se uma imagem de Deus.

Assim Paulo faz uma conexão entre a cristologia e a ética. O Cristo preexistente, mas que se tornou servo, foi crucificado e morto, ressuscitado e exaltado – impregna e molda a vida dos crentes através do agir do Espírito Santo, de modo a transformá-los na imagem de Deus. Lutero descreveu e chamou esse processo como “a troca maravilhosa”, ou “a feliz troca”: pela fé, entregamos a Cristo nosso pecado, todo orgulho e egoísmo e, em troca, recebemos dele todas as bênçãos espirituais de que necessitamos.

Portanto entendo que a tarefa da prédica deste domingo consiste em apresentar o puro Evangelho, qual seja, apresentar a pessoa e obra de Cristo de tal maneira que uma pessoa incrédula seja atraída para a fé; uma pessoa insegura em sua fé seja restaurada em sua confiança e a pessoa crente em Jesus seja fortalecida em sua fé.

Para a prédica, também valeria a pena refletir, comparar e contrastar o caminho que Cristo percorreu e o caminho que o ser humano percorreu (Gn 3.5). O que o ser humano deseja e o que Cristo desejou?

Cabe também refletir na prédica como o princípio reformatório do pro me (para mim) se torna concreto. Em outras palavras: o que a exaltação de Cristo significa para mim? Certamente pode ser consolador saber que a história da humanidade é regida pelo Senhor. Talvez também possa mediar certo consolo saber que, no fim da história, todo orgulho e toda arrogância serão submetidos ao senhorio de Cristo. Porém, simplesmente saber essas verdades ainda não aquece o nosso coração. Saber da exaltação de Cristo não faz de nós pessoas humildes. Mas é precisamente esse o propósito de Paulo! Como resolver o dilema? Resposta: Cristo se esvaziou a si mesmo, assumiu a forma/natureza de servo, humilhou-se e foi obediente até o fim. Tudo isso ele fez por mim! Da mesma forma, sua exaltação por Deus é uma exaltação por mim. O senhorio de Cristo sobre todas as coisas não é um fim em si mesmo. Pelo contrário: Jesus exerce seu senhorio por mim, em meu favor, para o nosso bem! Nesse sentido, na perspectiva do pro me, a exaltação de Cristo se torna em um poderoso consolo.

 

4. Imagem para a prédica

Para ilustrar o princípio reformatório do pro me, compartilho uma história narrada no comentário de Lopes:

Havia um homem muito rico que investira grande fortuna em quadros famosos. Tinha orgulho de ter uma das mais requintadas coleções dos maiores e mais consagrados pintores do mundo. Um dia, seu filho único foi ferido numa viagem e morreu. O amigo do seu filho, que o acompanhara em seus últimos suspiros, buscando consolar o pai aflito, enviou-lhe um quadro que ele mesmo pintara do rosto do seu amado filho. Ao receber o quadro, o pai colocou-o numa bela moldura e o pendurou junto a seus quadros mais seletos. Ao perceber que sua morte também se avizinhava, o homem rico chamou seu mordomo e lhe fez as últimas recomendações. Determinou que os quadros fossem leiloados e que o dinheiro arrecadado fosse entregue a uma instituição filantrópica. Em dia determinado, o leilão aconteceu. Para surpresa de todos, o mordomo começou leiloando o quadro do filho. Ninguém demonstrou interesse pelo quadro, pois ele não tinha nenhum atrativo nem valor artístico. Alguém, porém, resolveu fazer uma oferta e comprou o quadro. Para maior surpresa ainda, o mordomo anunciou o término do leilão. Quando todos estavam inconformados e buscando uma explicação, o mordomo leu o testamento do patrão: “Aquele que comprar o quadro do meu filho, tem todos os outros, pois quem tem o meu filho, tem tudo” (Lopes, 2007, p. 136-137).

 

Bibliografia

BARCLAY, William. Brief an die Philipper. Wuppertal: Aussaat Verlag, 1969.
BRUCE, F. F. Filipenses. São Paulo: Vida, 1989.
COCHLOVIUS, Joachim. Demütig werden. In: Zuversicht und Stärke. Holzgerlingen: Hänzler-Verlag, 2004.
LOPES, Hernandes Dias. Filipenses. São Paulo: Hagnos, 2007.
SCHWAMBACH, Claus. Jesus Cristo: salvador e exemplo na humildade e na obediência. Caminho e Testemunho, São Bento do Sul: FLT, v. VII, n. 2, 2010.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).