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Advento é tempo de preparação, de abrir caminhos para o Deus criança (LCI 358)

 

Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica
: Mateus 3.1-12
Leituras: Isaías 11.1-10 e Romanos 15.4-13
Autoria: Marli Lutz
Data Litúrgica: 2° Domingo de Advento
Data da Pregação: 04/12/2022

 

1. Introdução

Estamos no tempo de Advento. Tempo de preparação, de celebrações com um significado especial, preenchidas com uma simbologia que encanta e aquece os corações. Os hinos entoados são os mais belos, que fortalecem o sentido da nossa vida. Tempo de celebrar a presença de Deus que se tornou gente no Messias criança e habitou entre nós (Jo 1.1). Para o culto do 2º Domingo de Advento, somos convidados e convidadas a escutar a voz de quem clama a partir do deserto, apesar do deserto, motivando-nos através de um chamamento poderoso, de gratidão, alegria e aconchego (Rm) para uma  vivência da fé no Messias criança.

O texto de Mateus 3.1-12, indicado para a pregação, é encontrado também nos outros dois evangelhos sinóticos (Mc 1.1-8; Lc 3.1-20), e, em parte, também no Evangelho de João (Jo 1.19-28).

As leituras bíblicas complementares são Isaías 11.1-10 e Romanos 15.4-13. Encontramos vários auxílios homiléticos em volumes anteriores de Proclamar Libertação com reflexões importantes para o estudo desses textos.

Isaías 11.1-5(6-10), considerado a pérola da poesia hebraica (Milton Schwantes), retoma o projeto de esperança inspirado no tribalismo, período anterior à monarquia/reinado em Israel. Ali estão suas raízes, no tronco de Jessé. Importante retomar a tradução da ARA, pois a NTLH faz a inclusão de Davi.

A referência a Jessé remete aos tempos de esperança e utopia. O futuro está ancorado nas raízes das vivências das famílias daquela gente simples do interior da região de Belém e Judá. A imagem do broto, a partir da qual é construído o conjunto de versículos posteriores (2-11), nos remete ao tema do ano de 1984: Jesus Cristo, esperança para o mundo.

Esse broto promoverá justiça não a partir do “ouvir dizer”. Nele se dará a superação deste mundo de injustiças porque os ciclos de opressões, tanto das pessoas quanto das feras, passarão por uma grande transformação. Quem a promove é o sopro suave do Espírito (ruah) através da boca e dos lábios, na força da Palavra.

No texto de Romanos é retomada a referência às raízes de Jessé, como aquele que se levanta para governar os gentios; nele os gentios esperarão (v. 12). Esse projeto de esperança está agora fundamentado na prática misericordiosa de Jesus. Nessa prática se cumprem as promessas. Há que se ter empatia (o mesmo sentir de uns com os outros) através da vivência no acolhimento (acolhei-vos uns aos outros). Trata-se de um projeto aberto e inclusivo, pois todos os povos estão nele incluídos. Inclusive, a prática da misericórdia é a motivação para a alegria e glorificação a Deus.

 

2. Exegese de Mateus 3.1-12

V. 1 – Naqueles dias… Essa expressão é usada aqui para situar o texto dentro do contexto dos acontecimentos. Muitas profecias bíblicas contêm essa frase (Am 5.18-20; Os 6.1-3; 9.7-9; Mq 4.6-7; Jr 4.9-12). João é apresentado como quem está proclamando no deserto da Judeia, distante dos centros sociais, políticos e religiosos. O deserto retoma a memória afetiva de momentos importantes da história do povo de Deus. João Batista a proclama após um período de experiência dolorosa, de opressão sob o jugo de Herodes. A esperança já quase esquecida do rei messiânico, que viria para libertar o povo da violência e da opressão, é agora retomada como projeto restaurador da vida. No profeta João se refaz, portanto, a memória do êxodo libertador.

V. 2 – João convoca para o arrependimento: Arrependei-vos, pois se aproximou o reino dos céus. Esse mesmo chamamento caracteriza o início da missão de Jesus (Mc 1.14). O estar próximo deve ser interpretado não como expectativa futura, mas como estar ao lado, já presente em Jesus Cristo.

V. 3 – João é identificado como aquele que grita no deserto para preparar o caminho. A citação de Isaías 40.3 indica que a proclamação de João está fundamentada na tradição e vinculada ao movimento profético. A profecia, que havia cessado (Sl 74.9; Lm 2.9; Dn 3.38), retoma agora a sua continuidade em sua proclamação e prática. João é identificado pelo próprio povo como profeta (Mt 11.9; 14.5; 21.26) e, como tal, anuncia que a chegada do Reino de Deus (v. 2) passa por caminhos aplanados, de arrependimento, de mudança de mentalidade e comportamento, de transformação (metanoia). Eis uma nova leitura dos fatos, em que o passado nutre a esperança pelo futuro.

V. 4 – O despojamento pessoal de João nas vestes e na alimentação condiz com sua vivência na simplicidade e coerência com a radicalidade de seu discurso. Ele se veste tal qual Elias (2Rs 1.8), confirmando sua aproximação ao profetismo, como líder popular, entre tantas outras lideranças que surgiram em meio ao povo simples da época.

V. 5-6 – Muitas pessoas de toda a Judeia enfrentavam os caminhos poeirentos e perigosos para chegar até as margens do Jordão, local do batismo. A referência ao rio Jordão, retomada nos v. 7 e 11, tem uma dimensão simbólica para o povo de Deus. Por exemplo, foi pelo rio Jordão que os hebreus entraram na terra prometida (Js 3.14-17). João pratica o batismo de arrependimento, que sela a mudança de vida através da confissão de pecados, do perdão.

V. 7-9 – A alusão a animais peçonhentos é um indicativo dos perigos enfrentados pelos caminhantes nas estradas daquela região árida, expostos ainda ao perigo das queimadas devido às secas.

Os fariseus e saduceus também procuram João e são diretamente mencionados. A presença deles motiva a radicalização da proclamação de João. Como lideranças, deveriam produzir frutos dignos de arrependimento e mudança (metanoia). João rompe com a convicção de terem um direito hereditário adquirido, pois até de pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão; propõe o arrependimento e uma vida que produza frutos.

V. 10 – Aqui há um retorno à linguagem figurativa da árvore que será cortada na medida em que não produzir frutos bons. Em Mateus 7.19-23 encontramos a mesma linguagem figurativa, para apontar o discernimento entre os frutos bons (pelos frutos os conhecereis: 7.20) e os frutos maus, identificados como práticas que promovem a injustiça (7.23).

V. 11-12 – João afirma que sua missão é preparar o caminho para aquele que virá depois dele, reconhecendo a sua superioridade, cujas sandálias ele não é digo de carregar. Ele não prega para si mesmo, nem se considera profeta. Ao se colocar como voz que clama do deserto, convoca para a realização do batismo como sinal de arrependimento e mudança, chamando para o juízo de Deus, que limpa a eira com a pá e recolhe o trigo ao celeiro. Já a palha ele queimará com fogo inextinguível. “O trigo é fruto produzido, é grão que vira alimento, mas a palha é vazia, seca, não serve para mais nada, a não ser queimar e desaparecer” (Neuenfeldt, 1995, p. 41).

 

3. Meditação

Em Isaías 11, a imagem da árvore que está cortada é impactante. Em meio a esse cenário brutal, a vida vai tomando corpo (se refaz) a partir de um singelo broto, que faz ressurgir a esperança. Mas esse futuro não se materializa por meio de monarquias, impérios e templos. A experiência com esses deixou um rastro de violência e destruição. Isaías 11 entende que o futuro está alicerçado nas experiências comunitárias das famílias no tribalismo. Por isso remetem às raízes de Jessé e não a Davi. O espírito (ruah) de Deus cria e capacita essa vida nova nesse rebento que ali brota, que tem agrado no temor a Deus para promover a justiça, não no ouvir dizer, pela “convicção”, mas por uma prática condizente com o arrependimento e a transformação.

O broto terá a tarefa de realizar “justiça” e “direito”, o que no concreto implica a defesa das pessoas empobrecidas. Esse projeto de esperança é retomado na perspectiva paulina a partir da prática misericordiosa e inclusiva de Jesus.

O reaparecimento da profecia através da atuação de João Batista foi um passo importante dentro da mobilização popular contra a opressão. A tradição do êxodo é a fonte de inspiração para a proclamação de João que anuncia a chegada do Messias. Muitas pessoas o seguiam. O povo, desprezado pelas lideranças religiosas, empobrecido pelos tributos pagos aos romanos e pela arrecadação do templo, estava exausto. A proclamação de João reacendeu a esperança por novos caminhos. Enquanto isso, fariseus e saduceus são questionados quanto à sua compreensão de pertença ao povo de Deus através da etnia e da observância das leis. Suas leis, que excluíam e marginalizavam, não os salvam mais. Essa suposta identidade étnica e o apego às leis não garantem nada, pois até das pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão. Na verdade, seu horizonte de fé, reduzido a essa falsa segurança, fazia com que passassem de largo às necessidades e aflições do povo caído nas beiras das estradas, clamando por socorro, como no exemplo da narrativa do bom samaritano. Diante disso, João dirige a eles um chamado radical, de rompimento com o privilégio da hereditariedade, desafiando-os a uma mudança de mentalidade e de acolhimento da gratuidade do Reino, a fim de produzirem frutos bons, dignos de arrependimento e mudança.

O arrependimento, enquanto mudança de atitude, é a referência para a prática do batismo de João. Quem se deixava batizar declarava arrependimento e disposição para a mudança. Nessa prática, João está alinhado às tradições do mundo judaico e inclusive de outras culturas que tinham rituais de purificação através da imersão. Ainda se têm notícias posteriores sobre a continuidade dessa prática batismal de João (At 19.1ss). A novidade de vida está no batismo com o Espírito Santo:

O batismo com Espírito Santo, mais poderoso, provoca e capacita para a radical transformação da vida. Diante do juízo, se oferece a possibilidade de dar meia volta, para produzir frutos. A oferta da nova vida se torna concreta e visível em Jesus. O Espírito que queima como fogo capacita e impulsiona o ser humano. O fogo lembra a destruição, o poder de queimar, a ira, mas também simboliza a purificação, o novo que brota após a destruição (Neuenfeldt, 1995, p. 41).

João Batista mobiliza as pessoas em direção à periferia, fazendo o caminho oposto ao Templo e às forças pérfidas do poder, que mais tarde o golpeariam de morte. Há de se questionar os caminhos que tomamos hoje, se as periferias estão incluídas. É muito comum o conceito que favorece o retorno ao templo e a centralização no ministério. Como assim?

As atividades de missão em boa medida enfocam o fortalecimento interno das comunidades e paróquias. O ministério não ordenado, entendo como a participação efetiva das lideranças nas atividades como ensino confirmatório, culto infantil e outras, está em grande parte centralizado nas mãos dos ministros e das ministras. Com essa centralização, sufocamos o engajamento das lideranças, que teriam muito a contribuir com seus dons na missão e edificação da comunidade. E nossa empatia acaba sendo seletiva, na medida em que não lançamos o olhar para além de nossas fronteiras eclesiásticas.

Hoje vivemos sob a influência de uma mídia que promove a retórica do ódio, que veicula o preconceito, a violência, a homofobia, a misoginia… Sob o signo da desumanidade, estamos em um cenário preocupante de deterioração da vida, em que as pessoas clamam por justiça. Presenciamos a exaltação da tortura, as agressões aos direitos das mulheres, o assassinato brutal de indigenistas, a violência sexual contra crianças. Em 2021, mais de 30 mil crianças (meninas) foram estupradas no Brasil (Anuário Brasileiro de Segurança Pública). Urge o clamor da voz que clama nesses nossos desertos, para anunciar e viver a presença de Deus que se fez gente na criança de Belém. Como poderíamos vivenciar o abençoado tempo de Advento sem dar ouvidos ao grito de tanta gente oprimida?

Não raro, nesses anos de pandemia, as pessoas não foram escutadas em seus clamores. Há muitos traumas pelas perdas de tantas vidas, quase 700 mil mortes em meio a uma falta de amor muito grande por parte de governantes, que faziam graça com as dores e os sofrimentos de quem padecia sob os efeitos da Covid-19. Tanta gente ainda hoje chora o luto pelos seus entes queridos. As pessoas tiveram que se reorganizar para manter os contatos, a continuidade das atividades, do trabalho. As escolas tiveram que se adequar ao estudo remoto, multiplicando horas de trabalho e cansaço acumulado para os e as profissionais da educação. No pós-Covid, encontramos as pessoas com baixa autoestima. Advento é tempo de acolher, como sugere o apóstolo Paulo, tempo de abraçar, tempo de retomar, de reconstruir relações de respeito e desconstruir o que impede a realização de uma vida nova e plena. É necessário reestabelecer vínculos de solidariedade, de amor como chamamento afetivo, restaurador, ético e transformador.

 

4. Imagens para a prédica

Como imagem para a pregação, sugiro a figura do broto na árvore cortada. Essa figura de linguagem nos fornece vários elementos para falarmos em esperança, que brota da gratuidade de Deus, de seu Reino, onde são vivenciadas relações de amorosidade e justiça (Mt 6.33). Importante lembrar que o Reino de Deus se manifesta não na força dos centros de poder, mas no deserto e a partir de pessoas marginalizadas e excluídas da sociedade.

 

5. Subsídios litúrgicos

Podem ser entoados os hinos LCI 356 e 358, fazendo deles uma ponte para a pregação.

 

Bibliografia

NEUENFELDT, Elaine. Auxílio Homilético sobre Lucas 3.15-17,21-22. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1995. v. 20.
SCHWANTES, Milton. “E de suas raízes um renovo trará fruto”: o messias no Espírito em defesa dos pobres em 11.1-5(6-9). Revista Caminhando, v. 14, n. 1, p. 15-21, jan./jun. 2009.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).