Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Isaías 62.1-5
Leituras: João 2.1-11 e 1 coríntios 12.1-11
Autoria: Erní Walter Seibert
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 16/01/2022
As pregações sobre o Antigo Testamento têm alguns desafios e vantagens. Quando menciono desafios, penso na distância do texto em relação aos nossos dias, em diversos aspectos. O texto está distante historicamente. São quase três milênios de distância histórica. Como eram os povos, as nações, a organização social naquele tempo? Como era a cultura? Além da distância histórica, há a distância geográfica. Quando pensamos em um país, aqui na América latina, pensamos em dimensões geográficas diferentes do que no Oriente Médio. O relevo, a hidrografia, o clima, as distâncias, tudo é diferente. Isso precisa ser levado em conta. Esses desafios juntam-se a outros que os estudos de isagoge ao texto nos levam. Quem é o autor de Isaías? É um só? São dois? São três? Apenas entrar nessa discussão pode nos ocupar por anos. E as conclusões dessas discussões, na maioria dos casos, são provisórias. Não definem o assunto. Esses são alguns dos desafios.
Mas há vantagens de pregar sobre o Antigo Testamento. Grande parte dos textos tem a ver com a vida das pessoas. E a vida das pessoas do passado e do presente tem fortes conexões práticas. Temas como moral, família, trabalho, política, governo, justiça estavam presentes no passado e estão presentes nos dias de hoje. Isso faz com que a conexão das pessoas com os textos seja feita com bastante rapidez. O grande desafio da pregação então será extrair a mensagem bíblica do texto do Antigo Testamento para os nossos dias. E isso, basicamente, passará pela mensagem da graça que vai encontrar sua luz em Jesus Cristo.
O livro de Isaías, a partir do capítulo 56, tem como pano de fundo a volta do exílio da Babilônia. Mas a mensagem que o texto traz não se restringe a esse contexto. A mensagem vai além e se aplica a todas as pessoas, embora seu foco primário seja o retorno dos exilados.
O texto começa com as palavras Por amor. A motivação de Deus para com seu povo é o amor. Deus ama o seu povo. Tudo o que os versículos posteriores do texto expressam é fruto do amor de Deus. Esse amor de Deus não cessa. Ele é eterno, perene, sempre igual. Deus não deixa de amar. A experiência do exílio foi terrível. Parece que Deus não estava mais presente com seu amor. Nossa distância histórica do exílio faz com que tenhamos dificuldades de entender o que isso Boa parte do povo foi conduzida como escravo para uma terra distante. Ele não se exilou para ficar livre. Ele foi exilado para ser escravo. As experiências contemporâneas de exílio, embora extremamente duras, não têm todas essa mesma característica. Hoje, grande parte das pessoas exiladas sai do seu país para ficar livre. No caso deste texto bíblico, elas foram retiradas à força para se tornarem escravas. Dizer a pessoas assim que Deus as ama é uma mensagem que pode ser chocante. Parece uma ironia. Mas o texto diz exatamente isto. O amor de Deus é chocante. O apóstolo Paulo diz que essa mensagem é loucura para o descrente.
Ainda em Isaías 62.1 são mencionados dois nomes para a mesma localidade: Sião e Jerusalém. O texto trabalha com paralelismos. A mesma ideia é expressa de duas formas, ampliando seu significado. Deus, em situações de injustiça, não fica calado nem se aquieta. Deus age a seu modo e a seu tempo. Podemos confiar. Aliás, confiar, ter fé, é algo que está como pano de fundo em toda a mensagem bíblica. Ou confiamos em Deus ou o negamos.
O primeiro versículo de nosso texto termina com outras imagens em paralelismo: justiça e salvação; resplendor e tocha acesa. Quando Deus aplica sua justiça “por amor”, há salvação. Quando a justiça não é “por amor”, ela pode ser olho por olho e dente por dente. Quando a justiça é “por amor”, ela não é apenas obrigação. Ela resplandece, é como uma tocha acesa no meio da escuridão. Essa justiça “por amor” vai além do entendimento humano. Ela é graça.
O v. 2 mostra que o amor de Deus não se restringe aos que voltam do exílio. O amor de Deus estende-se às “nações”. Quando as pessoas se veem diante de uma libertação, costumam falar do “seu Deus”. “Meu Deus” me livrou. Não há necessariamente um erro nessa expressão. Mas é importante que não particularizemos Deus. O “meu Deus” é também o “Pai nosso”. É isso que o v. 2 lembra. “As nações”, “todos os reis” verão sua justiça e contemplarão sua glória. O texto mostra que não é assim que cada pessoa tem seu Deus e cada religião tem suas convicções. O conceito Deus é mais amplo que isso. Ou é Deus de todas as nações e de todas as instâncias ou não é Deus. Isaías apresenta esse conceito amplo de Deus.
Quando esse Deus que reina sobre tudo e todos entra em ação, então é promovida uma transformação. A mudança é tão grande que até o nome com que é designada a cidade (o povo) muda. Deus concede um novo nome. Esse nome vai aparecer no v. 4. Mas antes vamos ver o que fala o v. 3.
Essa obra que Deus faz “por amor” será a sua glória. A obra que Deus faz “por amor” é o sinal de sua majestade. O texto trata Deus com um antropomorfismo. As pessoas costumam ficar honradas com suas produções. Um autor, ao escrever um texto, seja um artigo ou um livro, tem alegria de ver o seu nome estampado nele. Grande parte das indústrias tem o nome de seus donos. São inúmeros os exemplos. “Ford”, “Mercedes Benz” são exemplos da indústria automobilística. Há fabricantes de facas que colocam o nome da família nas lâminas. Há estabelecimentos de comércio que colocam o nome de seus proprietários como o nome do estabelecimento. Deus diz que o que ele faz “por amor” é a sua glória. A obra da salvação é a glória de Deus.
No v. 4, a mudança de nome é mencionada. Os nomes antigos da cidade – Jerusalém depois do exílio – eram “Abandonada” e “Arrasada”. A cidade mais importante do povo de Israel tinha sido abandonada e arrasada. Era assim que as pessoas se referiam a Jerusalém. Mas quando Deus a restaura, a cidade recebe nomes novos: “Minha delícia” e “Casada”. Os dois nomes são tirados da experiência do casamento e da vida em família. Quando Deus usa esses dois nomes para a nova realidade de “Jerusalém”, isso é indicação clara do alto valor que a experiência do casamento e da vida em família tem para Deus. “Minha delícia” é uma expressão que remete ao prazer da vida do casal. Certamente está aí uma referência ao prazer sexual que a vida matrimonial proporciona. O contraste entre “Abandonada” e “Arrasada” com “Casada” também mostra como o casamento era tido em alta estima. Nos dias atuais seria essa uma boa imagem para nossa cultura? Hoje, sexo e casamento não são sempre vistos como algo conjunto. A cultura atual parece que quer separar prazer sexual de casamento. Da mesma forma, o fato de alguém estar casado parece que não é considerado algo tão seguro como estável. Será que na cultura no tempo do exílio isso era diferente? Ou será que por trás das imagens e dos termos que o texto usa está um ensinamento sobre a vida em família que, por vezes, contrasta com o que a cultura dominante ensina?
Se olharmos na Bíblia, veremos que o conceito bíblico de família expresso de forma positiva nesse texto não era o dominante em todos os lugares. Histórias como as de Sodoma e Gomorra e tantas outras mostram que a cultura humana sempre teve dificuldades em lidar com o tema família e que as soluções sociais dadas ao problema nem sempre estão em harmonia com o conceito manifesto em tantos textos bíblicos. De qualquer forma, o texto nos dá um indicativo de que quando a Bíblia mostra algo infinitamente superior, ela expressa o conceito de minha delícia e casada. Isso é infinitamente superior à abandonada e arrasada.
Essa mensagem é reforçada no último versículo da perícope em destaque para o nosso domingo.
Quando, na introdução a este estudo homilético, falamos que há desafios que precisam ser superados na pregação sobre textos do Antigo Testamento, pensávamos exatamente nas questões que vimos na exegese do texto. Talvez o grande desafio não seja compreender o texto, mas falar do texto de forma que as pessoas compreendam. Exílio, nos tempos bíblicos, talvez seja algo parecido com o regime de escravidão que tivemos no Brasil nos séculos XVIII e XIX. Não é o que exilados políticos ou outros exilados experimentam quando se exilam. É mais duro que isso, sem com isso dizer que qualquer exílio não seja muito difícil.
Por outro lado, se a questão do exílio já é difícil de ser explicada, como falar sobre as questões da imagem da família, tão importante para a compreensão do texto em estudo. Num mundo em que as notícias apontam para violência doméstica, para a liberdade sexual e o sexo fora do casamento, onde a família não é mais um consenso, como falar de forma relevante usando as imagens do texto?
Talvez uma olhada no texto do evangelho deste mesmo domingo possa ajudar bastante. O texto fala de um casamento em Caná da Galileia. Jesus transformou água em vinho. O contexto era de tensão. Faltou um ingrediente que era considerado fundamental por todos: vinho. Isso significava vergonha para a família. Além disso, o problema não tinha solução. Aí Jesus intervém. Ele transforma água em vinho. E isso era sinal de sua “glória” e os discípulos “creram nele”. No Evangelho de João, capítulo 2, aparecem as palavras “glória” e “creram”. Deus continua agindo “por amor” e as mudanças acontecem. Aos discípulos é feita a referência: eles creram.
Há muitos exílios que estão vivos e ativos em nosso tempo. A pandemia do coronavírus, que ainda está presente em nossa memória, causou muitos exílios e estragos. A política dos países e de nosso país, sem particularizar, sempre tem exemplos de estragos. São exílios aos quais somos submetidos. E assim podemos ver até mesmo “exílios” na vida em família, na qual a pessoa parece que vive como “arrasada” e “abandonada”. Mas Deus está agindo “por amor” em todas essas situações. Ele muda tudo isso. Vemos isso em Jesus Cristo. Ele não só interveio positivamente numa festa de casamento, transformando água em vinho. Ele venceu a morte, vive e reina. Confiar nele é o que podemos e devemos fazer. Confiar em autoridades não é sinônimo de justiça e vida eterna. Confiar em Deus é a grande chave de mudança, porque Deus tem esse poder de mudar. É isso que o texto de Isaías nos lembra.
O texto de Isaías é rico em imagens. Vou destacar algumas. É importante entender o pressuposto do texto que usa a imagem de que Deus age “por amor”. Isso pode ser contrastado com “justiça”. Quando Deus age com justiça e une sua justiça ao amor, temos a graça de Deus em Cristo. Quando pensamos em justiça sem amor, então temos uma justiça retributiva que, muitas vezes, apenas termina em vingança.
Outra imagem forte do texto é a da “glória de Deus”. A glória de Deus está estreitamente vinculada com a ação salvadora de Deus em favor da humanidade. A glória de Deus está unida à obra redentora do Filho de Deus, Jesus Cristo. Essa é a obra mais gloriosa de Deus.
A própria questão do exílio é uma imagem forte do texto. As pessoas estavam voltando do exílio. Essa mensagem foi dirigida para pessoas nessa situação. Explicar o que era o exílio naquele tempo é importante. Mas há muitos “exílios” na vida de todos para os quais essa palavra bíblica tem uma mensagem poderosa. Deus age por amor em todas as situações de nossas vidas. Mesmo que só vejamos injustiças e desespero, Deus está agindo. Essa é promessa segura que o texto traz. Confiar em Deus é algo que traz resultado.
Finalmente, ter uma imagem positiva de família é algo que a Bíblia também alerta e o texto reforça. Precisamos cultivar essa imagem positiva de família. Muitas vezes, quando falamos da imagem positiva de família que a Bíblia apresenta, as pessoas reagem dizendo que hoje não é mais assim. Foi mais ou menos isso que acontecia na experiência do exílio. As pessoas diziam que Deus não estava mais com elas. A experiência de vida dos exilados parecia concordar com o que se dizia a elas a respeito de Deus. Elas se sentiam abandonadas e arrasadas. Nada da experiência delas indicava o contrário. Mas Deus disse o contrário e fez o contrário. Deus agiu por amor. Ele ainda faz isso hoje. Confiemos nele.
Certamente em todos os cancioneiros é possível encontrar hinos e canções que podem ser usados para reforçar a mensagem do texto. Além disso, a própria liturgia traz ricos subsídios para serem lembrados no texto. Podemos confessar nossos pecados a Deus e pedir perdão porque Deus, por amor, perdoa. A confissão e absolvição estão repletas do que Isaías chama de “por amor”. A leitura do evangelho é outro exemplo de como Deus age por amor. O “sinal” de transformar água em vinho foi para que as pessoas soubessem que Deus veio ao mundo e agia “por amor”. Nas orações, nós nos aproximamos de Deus, nosso Pai, porque sabemos que ele nos ama. E nos sacramentos, Batismo e Santa Ceia, vemos que Deus age por nós e em nós, por amor.
O que acontece quando Deus age por amor?
– Ele muda nossa situação de vida.
– Ele nos dá uma nova experiência de vida.
– Ele nos dá uma nova perspectiva de vida.
BÍBLIA DE ESTUDO NAA. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.
LASOR, W.; HUBBARD, D. A.; BUSH, F. W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova. 2002.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).