Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Lucas 2.41-52
Leituras: 1 Samuel 2.18-20, 26 e Colossenses 3.12-17
Autoria: Eduardo Paulo Stauder
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 26/12/2021
O texto de Lucas 2.41-52 será usado para pregação no dia seguinte ao Natal. A comunidade ainda respira fortemente os ares natalinos. Talvez muitos venham a este culto porque não conseguiram vir no Natal. A história do nascimento do menino Jesus estará bem presente na mente e no coração da comunidade. Este culto dá continuidade à história do nascimento do menino Jesus. O texto de Lucas 2.41-52 possibilita continuar a reflexão sobre a encarnação, o verbo que se faz carne.
O texto de 1 Samuel 2.18-20,26 apresenta um relato da visita de Ana e Elcana ao menino Samuel, que teve sua vida dedicada ao serviço a Deus. Assim como José e Maria vão ao encontro do menino Jesus, aqui temos o relato do pai e da mãe indo ao encontro do filho Samuel. O v. 26 faz uma referência ao menino Samuel dizendo que ele continuava a crescer, e que tanto o Senhor como as pessoas gostavam cada vez mais dele. Essa formulação praticamente se repete em Lucas 2.52, quando se fala do jovem Jesus.
Em Colossenses é feito um pedido: a mensagem de Cristo viva no coração de vocês, como em Maria, que guardava tudo no seu coração (Lc 2.51). Colossenses mostra que a fé é vivida em comunidade. Nossas perguntas e dúvidas, nossos medos e inseguranças encontram resposta na vida em comunidade. Nosso coração não bate de forma solitária, mas como parte do povo de Deus.
O povo de Israel tinha uma esperança messiânica, que se concretizaria na restauração de Israel como nação. O Evangelho de Lucas substitui esse projeto nacional por um projeto universalista que testemunha diante de todo o mundo um reino dos pobres em lugar do reino de César ou de um monarca davídico.
Os dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas, que formam o chamado “Evangelho da Infância, segundo Lucas”, têm seus acontecimentos situados nos arredores de Jerusalém. Diversos acontecimentos ocorrem ao redor do templo, que é o centro do poder judaico. Zacarias é um sacerdote que trabalha no templo, onde ele fica mudo ao receber a notícia do nascimento do seu filho João (Lc 1.8-23). É no templo que o recém-nascido Jesus recebe as palavras proféticas de Simeão (Lc 2.25-35) e de Ana (Lc 2.36-38). É no templo que encontramos Jesus menino discutindo com os doutores da lei (Lc 2.46).
Em Jesus, Deus vai se revelando, questionando uma perspectiva messiânica nacionalista. Jesus, ainda recém-nascido, vai sendo reconhecido como messias que nos faz olhar para além do templo. A salvação deixa de ter uma centralidade no espaço de Jerusalém e no templo e se volta para o Reino de Deus, que privilegia a vida dos empobrecidos.
Lucas 2.41-52 faz parte do complexo maior dos capítulos 1 – 2, que formam o Evangelho da Infância, como já mencionado. Nessas narrativas, os eventos têm a intenção de confessar e identificar o menino Jesus como o Salvador. Podem ser chamados de narrativas confessionais (WEGNER, 2006, p. 116).
Lucas 2.41-52 forma uma unidade delimitada, apresentando um momento único da vida de Jesus aos 12 anos. O texto encontra paralelo em evangelhos apócrifos, como o Evangelho de Tomé e o Evangelho Árabe da Infância. Nos evangelhos apócrifos, encontramos diversas histórias da infância de Jesus que o apresentam com poderes sobrenaturais. Esses relatos revelam a discussão que havia no cristianismo primitivo sobre a encarnação, sobre a relação entre a divindade e a humanidade de Jesus.
A tradução de Lucas 2.41-52 apresenta dificuldades no v. 49b, o que se reflete nas diversas traduções bíblicas. A frase é de tradução difícil. João Ferreira de Almeida traduz como: Não sabeis que me convém tratar dos negócios de meu Pai?. A Bíblia na Linguagem de Hoje traduz: Não sabiam que eu devia estar na casa do meu Pai?. Entendo que a tradução na Linguagem de Hoje está mais próxima do texto grego, mas as duas traduções buscam expressar a relação de Jesus com Deus, com o seu pai.
A narrativa inicia afirmando que os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém para a festa da Páscoa (Lc 2.41). No início a festa da Páscoa era uma celebração doméstica, que foi centralizada no templo de Jerusalém durante o reinado de Josias (640-609 a.C.), conforme o relato de 2 Reis 23.21-23. Houve resistência, mas a centralização da festa da Páscoa em Jerusalém foi imposta pela força. O v. 41 localiza o acontecimento no tempo da festa da Páscoa, geograficamente na cidade de Jerusalém, e apresenta José e Maria como seguidores da tradição e observantes da lei.
O v. 42 introduz Jesus na história, revelando sua idade de 12 anos. Ele estava deixando de ser criança e passava a ser considerado adulto. Essa Páscoa seria diferente para Jesus, não ficaria no pátio das crianças e mulheres. Poderia acompanhar José no pátio dos homens, presenciando o sacrifício do cordeiro da Páscoa. Mas a história não apresenta nenhum relato sobre a participação de Jesus na festa da Páscoa. Ela se desenrola olhando para o que acontece três dias após a Páscoa.
Os v. 43-45 falam do fim da festa, do retorno para casa e apresentam a situação de que Jesus fica em Jerusalém sem o conhecimento do pai e da mãe. Os peregrinos organizavam caravanas para ir às festas em Jerusalém. Era possível que Jesus estivesse com algum parente, com alguém que veio na mesma caravana. Após um dia de procura, José e Maria voltam para Jerusalém para continuar a busca por Jesus.
Os v. 46-50 narram como José e Maria encontram Jesus no templo, em diálogo com os doutores da lei. Após três dias de procura, encontram Jesus. Foram três dias de angústia, de medo, de perguntas sobre onde estaria e o que teria acontecido com o menino Jesus de 12 anos. Três dias também é tempo em que a angústia, o medo e as dúvidas acompanharam os discípulos e as discípulas diante da morte de Jesus na cruz. Após três dias vem o anúncio da ressurreição.
A cena do menino Jesus dialogando com os doutores da lei recebe diferentes interpretações. Alguns veem que o Jesus menino demonstra uma sabedoria maior, que não apenas impressiona os doutores da lei, mas que se revela como superior a eles, como se o menino Jesus fosse um doutor entre os doutores. Outros entendem que está acontecendo um momento de aprendizado, conduzido pelos doutores da lei, onde provavelmente outras crianças estariam participando, ouvindo e aprendendo. Nesse processo de aprendizagem, Jesus se destaca. O texto faz questão de ressaltar que as pessoas ficam extasiadas diante das respostas de Jesus. Dessa forma, ele reflete a realidade da comunidade que preserva e escreve o texto, a qual já era conhecedora da divindade de Jesus. Toda a narrativa é contada por quem já conhece o fim da história, a morte de Jesus na cruz e sua ressurreição.
Os v. 48-50 apresentam o diálogo entre Maria e Jesus. José apenas acompanha a cena. Maria é quem fala e toma a iniciativa. Maria se dirige a Jesus chamando-o de filho, reafirmando o vínculo familiar. Maria expressa a aflição que ela e José estavam sentindo por não saberem onde estava Jesus. Ela quer entender por que o filho agiu daquela forma.
A resposta de Jesus revela sua filiação divina. Ele não estava perdido, mas estava na casa de seu pai. Jesus revela sua surpresa pela preocupação de José e Maria. Conforme ele, não havia motivo para o procurarem, ele estava onde deveria estar. Aqui o próprio Jesus reconhece que ele é o filho de Deus. Não é alguém outro que faz uma confissão de fé, mas o próprio Jesus demonstra que está tomando consciência de quem ele é. Essa fala de Jesus tem uma dimensão catequética. Mais do que para José e Maria, é dita para os ouvintes do texto.
A filiação divina de Jesus não se manifesta de uma forma sobrenatural. Ele não realiza um milagre nem demonstra possuir algum poder sobrenatural. Ele se encontra dialogando e refletindo sobre a palavra de Deus, revelando qual deveria ser a centralidade do templo que estava mais voltado a práticas sacrificiais.
Os v. 51-52 trazem a conclusão da perícope. Apesar de Maria não compreender o que havia acontecido, guardava tudo no seu coração. Esta atitude atribuída a Maria de guardar no coração os acontecimentos está presente três vezes nos dois primeiros capítulos de Lucas (Lc 1.69; 2.19 e 2.51). Guardar os fatos no coração é manter viva a memória e a história. Ao guardar esses acontecimentos no coração, eles vão sendo colocados ao lado da tradição e da lei. São acontecimentos que vão norteando e determinando o caminho a seguir na vivência da fé.
A narrativa encerra mostrando que Jesus, como todo menino, não tinha todo conhecimento e sabedoria, mas ele crescia em sabedoria e estatura. Portanto ele estava em processo de aprendizagem e amadurecimento.
Como estará o Brasil em 26 de dezembro, para quando essa celebração está prevista? Provavelmente estará marcado, no cenário político, pelas disputas eleitorais. Provavelmente crescerá a polarização entre as posições políticas e o diálogo será um exercício e desafio constante. O povo brasileiro vive um momento de busca. Quem sabe estejamos como Maria e José à procura do filho perdido. O futuro demonstra-se incerto, despertando aflição, medo, insegurança. O que nós estamos buscando? A busca de José e Maria era pelo filho, mas quando o encontram, uma outra busca inicia: a busca por compreender quem é o filho.
A busca por compreender quem é Jesus estava presente nas comunidades cristãs para as quais Lucas escreve. Essa busca permanece entre nós: compreender como na pessoa de Jesus o divino e o humano se encontram e se revelam para nós.
No Natal, celebramos que a palavra se tornou carne e habitou entre nós. Deus vem ao nosso encontro, por isso também podemos procurá-lo entre nós. Jesus como menino fez coisas comuns, como deixar os pais preocupados por não avisar onde estava. O divino é encontrado no comum, no humano, na simplicidade da vida. Por isso também não existe um relato de como o menino Jesus acompanhou as grandes cerimônias da Páscoa, mas de como ele é encontrando dialogando e aprendendo. Quando celebramos o culto, por mais especial que seja esse momento, por mais que ele revele que somos filhos e filhas amados por Deus, ao final do culto voltamos para casa, para nossa Nazaré, que também é um lugar onde Deus está presente.
O diálogo de Jesus com os doutores da lei provoca assombro, o que desperta a curiosidade, as perguntas, e faz com que cresça ainda mais o diálogo. Esse assombrar-se traz o conhecimento de que não sabemos tudo, mas que podemos aprender com a outra pessoa. Essa admiração pela sabedoria rompe com os fundamentalismos, pois provoca novas perguntas. Perguntas significam não tomar tudo como garantido, mas fazer com que os acontecimentos sejam compreendidos e conhecidos.
Jesus nasceu e cresceu numa cultura do diálogo. Essa experiência fez com que no coração do seu ministério como adulto estivessem a palavra e a centralidade da escuta, saber ouvir o outro. Fazer boas perguntas é fundamental para se pensar no que se crê e se vive. O ministério de Jesus é marcado por perguntas e histórias que ele apresenta, e que fazem as pessoas pensarem. Muitos esperam e desejam que a igreja ofereça respostas e um caminho pronto a ser seguido e observado. O menino Jesus nos leva por um outro caminho, ensinando a importância de fazer perguntas e estabelecer um bom diálogo. A forma como Jesus é apresentado em diálogo com os doutores da lei revela que essa criança é uma grande promessa e esperança para todos nós.
Os doutores da lei ouvem Jesus, um menino de 12 anos. Ouvir é não saber tudo e não julgar antes de ouvir tudo. O menino e os velhos sábios crescem juntos em sabedoria. Aqui temos uma riqueza a ser cultivada e valorizada. Nesse tempo de pandemia, muitas pessoas de idade aprenderam a navegar pelas redes sociais com a ajuda de seus netos e suas netas. Quantas histórias e sabedoria netos e netas podem aprender ouvindo seus e suas avós! Uma comunidade se enriquece e fortalece quando aprende a valorizar o diálogo entre as gerações.
Deus se faz presente onde as pessoas pensam, perguntam, falam umas com as outras, e assim se tornam mais sábias. Deus nos encontra nas nossas buscas. Por isso vivemos a fé em comunidade, a fim de conhecer Deus e uns aos outros. Participamos da vida comunitária e vamos ao culto não por consideração a si mesmo, mas pelos outros. Nossas perguntas, nosso ouvir, nossas respostas nos fazem ser comunidade que cresce e se fortalece no diálogo, na vida em comunhão.
Jesus aos 12 anos no templo: o que há de tão especial nessa história? É a única história da infância e juventude de Jesus que encontrou seu lugar na Bíblia. Entre o nascimento de Jesus e sua primeira aparição, quando foi batizado por João Batista, não temos outra história com detalhes sobre a vida do jovem Jesus. Essa história tem um grande significado teológico. Ela lança uma luz sobre a jornada de Jesus. Podemos dizer que essa história e as demais narrativas da infância de Jesus são como uma manchete. Essas narrativas chamam nossa atenção para a forma como acontecerá a missão de Jesus ao anunciar o Reino de Deus.
A narrativa de Lucas 2.41-52 fornece imagens que podem ser usadas durante a pregação. Três imagens podem ser exploradas em especial: a busca pelo filho perdido, o processo de ensino-aprendizagem no templo, guardar as coisas no coração.
Lucas 2.41-52 apresenta a narrativa de Maria e José procurando o seu filho perdido. A história tem um final feliz, mas esse não é o caso de milhares de mães e pais no Brasil e no mundo. Muitas crianças se perdem nas grandes cidades. Crianças são separadas do pai e da mãe em situações de guerra e catástrofes. Crianças são vítimas do tráfico humano, sendo exploradas como crianças-soldados, trabalho forçado e escravidão sexual. A dor das famílias que buscam pela criança perdida pode ser expressa no culto, em especial durante o Kyrie. Ao anunciarmos a paz que vem de Deus, podemos lembrar que estamos vivendo o espírito natalino, em que um menino nos foi dado para que toda marca de guerra e toda bota de soldado manchada de sangue seja queimada (Is 9.4).
MÍGUEZ, Nestor. Lucas 1-2: Um olhar econômico, político e social. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, 2006. v. 53, p. 54-64.
SCHINELO, Edmilson. Um Menino entre os mestres (Lc 2,41-52). Disponível em: edmilson-schinelo-3/>.
WEGNER, Uwe. Lucas 2,8-20: Análise histórico-crítica. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes, 2006. v. 53, p. 112-126.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).