Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Marcos 13.24-37
Leituras: Isaías 66.1-9 e 1 Coríntios 1.3-9
Autoria: Werner Wiese
Data Litúrgica: 1° Domingo de Advento
Data da Pregação: 29/11/2020
“Deixamos para trás” o longo período do ano eclesiástico conhecido como tempo pós-pentecostes e que termina com o domingo denominado Domingo da Eternidade ou também de Domingo Cristo Rei. Encerrou-se, assim, o ano eclesiástico, porém não como um réveillon que atrai e fita os olhos em artifícios humanos, quaisquer que sejam. Os olhos da comunidade de fé estão fitos em Jesus Cristo exaltado – o Cristo Rei, o que contém o elemento da esperança, porque é por ele que ela espera. Observa-se que Jesus Cristo exaltado ou o Cristo Rei não é o Cristo triunfante com espada na mão da força-tarefa executada pelo poder imperial e religioso que pretensamente “evangelizava” continentes e dizimava povos que não se submetiam voluntariamente a ele. Do mesmo modo, é importante que no decorrer dos domingos de Advento não se fomente um sentimentalismo religioso que atinge seu auge na véspera ou no dia de Natal num infantilismo cristão com uma criancinha na manjedoura, criancinha esta que não incomoda ninguém.
Teologicamente falando, o período de Advento que inicia hoje não prepara a vereda para uma criança inofensiva, mas prepara o caminho ou, dito diferente, prepara os corações humanos para esperar a manifestação e instauração definitiva do reino de Deus, distinto de todos os reinos e livre de toda dominação, subjugação humana, livre de privilégios e desvantagens nacionalistas. Fato é que o texto para a pregação está carregado de enormes expectativas – do começo ao fim, sem que no fim elas estivessem correspondidas ou dissolvidas. Ao contrário, o texto termina com o imperativo Vigiai! (v. 37). Isso é dito no horizonte do dia do Senhor como um novo agir de Deus para o seu povo. Aqui dá para fazer o link com Isaías 66.1-9 e 1 Coríntios 1.3-9. Ambos os textos têm no horizonte um novo agir de Deus. Eles confluem para a presença de Deus, porque ele agiu na história, age até hoje e vai levá-la a bom termo a despeito de todos os sinais no presente que parecem desmentir o agir salvador de Deus.
O texto para a prédica é parte do assim denominado discurso escatológico ou apocalíptico de Jesus, que se estende por todo o capítulo 13 do Evangelho de Marcos. Com variações, esse discurso é registrado nos três evangelhos sinóticos. De acordo com os evangelistas Marcos e Mateus, ele foi desencadeado pelo impacto que o edifício do templo em Jerusalém ornamentado causou aos discípulos de Jesus por ocasião de uma visita deles com Jesus ao templo: Mestre! Que pedras, que construções! (Mc 13.1). O evangelista Lucas omite esse detalhe. Em todos os casos, vale lembrar que os discípulos eram galileus e provavelmente tinham visto o templo poucas vezes, talvez fosse essa a primeira vez. A tradição sinótica registra apenas uma visita oficial de Jesus com seus discípulos ao templo durante o seu ministério. De toda maneira, o que eles viram no templo os impressionou profundamente. E Jesus, por assim dizer, jogou um balde de água fria sobre a empolgação dos discípulos com o brilho da religiosidade instituída e manifesta nas construções do templo e sua ornamentação: Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra, que não seja derribada (Mc 13.2). Isso, assim o registro do evangelista, evocou nos discípulos mais próximos de Jesus (os quatro primeiros na lista de Mateus 4.18-22) a curiosidade sobre o quando dos acontecimentos futuros decisivos: Dize-nos quando sucederão estas coisas […] (Mc 13.4). Observado isso, anexam-se as palavras ou o discurso de Jesus que se estende até o final do capítulo 13.
Para facilitar um pouco a compreensão dos elementos do discurso, pode-se estruturar o capítulo todo da seguinte forma: Marcos 13.1-4: a predição da destruição do templo e a pergunta pelo quando isso irá acontecer; Marcos 13.5-37: o discurso escatológico propriamente dito. Esse não se limita à destruição do templo, mas a transcende e aponta para a consumação (telos/alvo) da história. Essa não transcorre em linha reta como uma evolução natural das coisas como se a própria história em si portasse os ingredientes que desembocam necessariamente num mundo novo. Pelo contrário, o caminho para a consumação é extremamente difícil, conturbado e antinatural (v. 5-23).
Entre os elementos precedentes ao texto da pregação, algumas expressões chamam a atenção, por exemplo: Vede que ninguém vos engane (v. 5); […] em meu nome […] enganarão a muitos (v. 6); Estai de sobreaviso […] (v. 9; veja também o v. 23); Não acrediteis […] (v. 21b). Trata-se de palavras de alerta. Em meio a elas, sobressaem algumas expressões formuladas positivamente: Mas é necessário que primeiro o evangelho seja pregado a todas as nações (v. 10); […] por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou tais dias (v. 20b). Esses elementos todos não deveriam ser ignorados na própria pregação. Disso se abstrai teológica e pastoralmente a tarefa primordial que norteia o ofício da pregação também em tempos confusos e extremamente desumanos que perpassam a história da humanidade, notadamente também os nossos dias.
A perícope para a pregação propriamente dita pode ser dividida em duas unidades menores, porém inseparáveis uma da outra para a compreensão do todo.
V. 24-27 – O cerne desses versículos é a futura vinda do Filho do Homem. Com ela se dará a consumação da história toda, não só do povo de Deus. Filho do Homem é uma expressão conhecida desde o Antigo Testamento. Ela aparece com bastante frequência no livro do profeta Ezequiel e aparece também no profeta Daniel. Em Ezequiel, Filho do Homem se refere primordialmente ao ser humano, especialmente ao próprio Ezequiel, por exemplo: Ezequiel 2.1,3,6,8; 3.1,3,4,10,17, e muitas vezes mais. Já no livro de Daniel, Filho do Homem é personagem messiânico esperado para o fim dos tempos (Dn 7.13), época em que Deus instaurará definitivamente seu reino (Dn 7.14). Esse é o sentido de Filho do Homem em Marcos 13.26, Mateus 24.30 e em outros textos mais, e se refere a Jesus Cristo, ressurreto e assunto ao céu, de onde é esperado para julgar vivos e mortos, como o próprio Credo Apostólico mais tarde o formulou e registrou.
A vinda/manifestação do Filho do Homem põe fim ao curso dos elementos mais seguros que regem o cosmos e a vida humana: sol, lua e a constelação das estrelas bem como os “poderes dos céus”, isto é, as forças que mantêm o universo em funcionamento. O que se menciona aqui não são sinais precursores que apontam para o fim, mas é o “fim da existência atual neste mundo com todas as suas seguranças” (KLAIBER, 2010, p. 255). Por essa razão, esses acontecimentos não são mensuráveis com quaisquer recursos humanos, também não com as explicações cosmológicas sobre o futuro do sistema solar. Não se trata de afirmações científicas verificáveis e contestáveis. O centro das afirmações desses versículos é a consumação da história da perspectiva de Deus. O Filho do Homem não aparece explicitamente como juiz, mas muito mais como redentor, que reúne os “escolhidos” espalhados sobre a face da terra (v. 27). Essa é, por assim dizer, a única resposta à questão levantada no v. 4.
V. 28-37 – Esses versículos retomam mais uma vez a questão dos sinais levantada no v. 4 em relação ao quando dos acontecimentos futuros. Num primeiro momento, Jesus conclama a que se observem os sinais (v. 28-32). Ele parte de elementos conhecidos dos seus ouvintes para ilustrar uma realidade não conhecida. Isso é um recurso didático-pedagógico eficiente, pois elementos estranhos não se explicam com elementos estranhos, mas com elementos familiares a quem se quer proporcionar aprendizado. Quanto ao prazo dos acontecimentos, faz uma dupla afirmação: o prazo está próximo (v. 29): Quando virdes acontecer estas coisas deve se referir ao que foi dito ao longo da fala em Marcos 13, o que inclui obviamente a manifestação do Filho do Homem e, por conseguinte, a irrupção derradeira do reino de Deus, que era uma expectativa em torno da pessoa e do ministério de Jesus. A segunda afirmação é que apesar dessa proximidade, o prazo é desconhecido (v. 32).
Isso leva a uma segunda conclamação (v. 33-37): Estai de sobreaviso […] Vigiai […] Chama atenção que a palavra final, literalmente a última palavra no texto da pregação, não se limita aos ouvintes primários do discurso, mas inclui as possíveis futuras gerações que se deparam com as mesmas perguntas e inquietações da primeira geração: O que, porém, vos digo, digo a todos: vigiai (v. 37). Isso faz parte das palavras: Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão (v. 31). Vigiai é o que no final das contas importa. O pedido dos discípulos: Dize-nos quando sucederão estas coisas […] (v. 4a) não foi respondido com um mapa ou uma agenda escatológica, mas com o imperativo de vigiar.
Concluindo essa parte da análise, é propício lembrar que o texto da pregação para hoje, ou no mínimo uma parte dele, oportunamente também é indicado para o Domingo da Eternidade, que, de alguma forma, evoca a lembrança de entes queridos já falecidos e nos coloca diante da realidade inevitável de que um dia nós, os ainda vivos, pertenceremos aos que já partiram (1Ts 4.13-18) e não seremos mais inquietados pela pergunta quando isso vai acontecer.
O texto para a pregação de hoje já foi abordado em Proclamar Libertação 36 para o 1º Domingo de Advento e, consequentemente, também pode ser consultado para a meditação e imagens para a prédica.
Sem cair num jargão religioso, há de se destacar para hoje: em tempos confusos, violentos e, ao mesmo tempo, que promove a sensação do novo como algo promissor – um novo normal como já se convencionou falar a partir da pandemia da Covid-19, é fundamental que como pregadoras e pregadores nos apeguemos às palavras de Jesus tais quais são dadas no próprio texto para a pregação de hoje. Recomenda-se olhar mais uma vez ao que precede o texto, por exemplo: o fator desencadeador de todo o discurso no capítulo 13 de Marcos (veja os v. 1-4).
A rigor, não se trata de um discurso como se fosse uma palestra sobre um determinado assunto com o objetivo de informar quem a assiste ou a quem interessar possa. Pregação não é palestra, é anúncio. As palavras de Jesus são uma espécie de interlocução não com destinatários fictícios, mas com pessoas muito ligadas ao que acontecia à sua volta, movidas por perguntas e anseios: Dize-nos […] (v. 4). É importante que, como anunciantes da palavra neste domingo, procuremos detectar que perguntas e anseios movem as pessoas na comunidade de fé, e além dela em plena época de correria ou isolamento social e crise. Isso não significa que devamos dizer o que as pessoas querem ouvir, mas que não fiquemos devendo a elas palavras que as ajudem a partir do texto da pregação. O texto fornece boas pistas nessa direção, por exemplo, há de se considerar os elementos de alerta que perpassam o capítulo 13 todo: Vede que ninguém vos engane (v. 5); […] em meu nome […] enganarão a muitos (v. 6); Estai de sobreaviso […] (v. 9; veja também o v. 23); Não acrediteis […] (v. 21). Trata-se acima de tudo da enganação religiosa oportunista tão presente em nossos dias que facilmente cativa pessoas de boa fé. Obviamente, há de ser ter um cuidado sadio para que o anúncio da palavra deste texto não ocorra com o indicador de arrogância espiritual ou intelectual sobre outras pessoas.
Contudo, tão ou mais importante que a denúncia do engano religioso são os elementos pastorais que perpassam todo o capítulo 13. Eles não deveriam ser omitidos, mas destacados, por exemplo: Não tivesse o Senhor abreviado aqueles dias, e ninguém se salvaria; mas, por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou os dias (v. 20), ou: Ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até à extremidade do céu (v. 27). Isso é poimênica teológica no verdadeiro sentido da palavra e é extremamente consolador para quem anuncia a palavra neste domingo e também para quem é ouvinte dela: como anunciantes da palavra do Senhor não somos os ceifeiros ou encarregados para encher os celeiros. Essa tarefa cabe a Deus, de quem as pessoas são. Por outro lado, nenhuma das pessoas escolhidas/eleitas (eklektos) de Deus – estejam elas onde estiverem – é ou será ignorada nem esquecida. O Senhor as reunirá como um bom pastor reúne as ovelhas do seu rebanho. Portanto as palavras de alerta ou admoestação estão irmanadas com as palavras do cuidado de Deus com seu povo. Aliás, as primeiras emergem das segundas e são sustentadas por elas. Por isso apegamo-nos confiantemente às palavras de Jesus para este domingo.
Do apegar-se às palavras de Jesus Cristo resultam, tanto para anunciantes da palavra quanto para ouvintes dela, duas questões: uma é a atitude de espera pela vinda do Filho do Homem, isto é, a espera pelo dia de Jesus Cristo. Por isso: esperar e vigiar pertencem intrinsecamente um ao outro. Trata-se de uma postura com expectativa positiva. Não de expectador para ver no que vai dar – se der certo, vamos aplaudir, se não der, vamos vaiar, ou: não tenho nada a ver com isso; estou fora. Essa seria uma postura que o evangelho não advoga. Importante é dizer que a espera ou expectativa do tempo de Advento não é uma expectativa do humanamente manobrável e realizável, ou manipulável e previsível. Disso de fato não precisamos, nem nós como anunciantes da mensagem nem a comunidade de fé no tempo de Advento, pois nossa história no Brasil em âmbito municipal, estadual e federal está farta de manobras, realizações interesseiras e manipulações.
A segunda questão que emerge do apegar-se às palavras de Jesus no sentido do texto da pregação é vigiar no servir a Cristo. Não só o esperar e vigiar estão intrinsecamente ligados entre si, mas vigiar e servir também são inseparáveis. Aqui a pregação tem a tarefa de refletir e ajudar a esclarecer o que vigiar e servir significam hoje, em especial na época precedente ao Natal, que são dias corridos e, por vezes, altamente estressantes, que facilmente ofuscam o objetivo da época antecedente aos dias de Natal.
Neste período de Advento, por natureza, há enfeites especiais no templo que lembram conscientemente o momento no ano eclesiástico que se inicia. Mas não apenas os aspectos visíveis no templo deveriam lembrar o momento específico. Obviamente, a liturgia toda do culto precisa afinar com o momento novo do ano eclesiástico que inicia com o 1º Domingo de Advento e considerar as tônicas do texto de base para a pregação. Para elaboração da liturgia felizmente não é preciso começar do zero, do nada existente. Pode-se recorrer a um rico material especificamente elaborado para essa época do ano.
BLASI, Marcia. 1. Domingo de Advento – Marcos 13.24-37. In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação 36. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2011. p. 9-13.
KLAIBER, Walter. Das Markus-Evangelium. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlagsgesellschaft, 2010.
VOIGT, Gottfried. Die bessere Gerechtigkeit. Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reihe V. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt Berlin, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).