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Vocês são minhas testemunhas

 

Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Lucas 24.44-53
Leituras: Atos 1.1-11 e Efésios 1.15-23
Autoria: Teobaldo Witter
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 21/05/2020

 

1. Introdução

Estamos na época da Ascensão de Jesus. Muitas vezes essa data passa sem que a comunidade tome conhecimento do fato. No entanto, Ascensão é uma data litúrgica muito importante no calendário cristão. Qual é o lugar do dia da Ascensão na vida celebrativa da comunidade cristã de hoje? Como celebramos a Ascensão do Senhor em nossas comunidades e no nosso contexto? Penso que seria importante recuperarmos essa celebração festiva, que aponta para a glorificação de nosso Senhor Jesus Cristo.

Os textos previstos para esse tempo estão em torno do signo da Ascensão do Senhor e da teologia que a sustenta. O tema trata de um símbolo que toca um imaginário religioso muito presente e difundido. Isso, por si só, tem sua dificuldade para o desenvolvimento da liturgia na realidade brasileira secularizada. Contudo, nas reflexões que seguem, procuro destacar elementos do texto bíblico que ajudam a dar um significado sensível e humano à Ascensão.

O texto do evangelho para a pregação tem a continuidade em Atos dos Apóstolos. A perspectiva do próprio texto é a atividade apostólica. A relação com os primeiros versículos de Atos oportuniza o enriquecimento de detalhes para a percepção das atitudes dos discípulos. A relação com o texto indicado na Epístola aos Efésios ajuda, do mesmo modo, a identificar elementos centrais na interpretação do texto indicado, bem como fornece motivos relativos ao tema litúrgico.

Para a compreensão e entendimento humano, as provas jurídicas dão credibilidade, legitimidade e reconhecimento aos fatos. O fato Jesus Cristo, testemunhado nas Sagradas Escrituras, tem nuvens de testemunhas. E milhares foram testemunhas oculares. Certamente, não há nenhum outro acontecimento do mundo que tenha mais testemunhas do que o fato Jesus Cristo. Elas não se esgotam no testemunho da época de seu nascimento, vida, ensino, morte e ressurreição. São de todos os tempos e lugares. Jesus mesmo providencia e instrumentaliza suas testemunhas: Eis que estarei com vocês todos os dias até o fim dos tempos (Mt 28.20).

Segundo Lucas 24.44-53, Jesus, após sua ressurreição, se encontra com seus discípulos. Ensina sobre o cumprimento da Lei de Moisés, dos Profetas e Salmos. Abriu o entendimento deles para que pudessem compreender as Escrituras. Ensinou sobre seu sofrimento, sua morte e sua ressurreição. E que pregassem o arrependimento e perdão dos pecados. E os incumbiu de serem suas testemunhas. E que em Jerusalém seriam investidos pelo Espírito Santo. E os levou para a cidade de Betânia, onde foram abençoados. Durante o ato da bênção, Jesus foi levado ao céu. Em estado de adoração, alegria e júbilo, eles foram para Jerusalém, reunindo-se no templo.

Atos 1.1-11 é a introdução ou o desenho do projeto missionário do livro de Atos dos Apóstolos. Dá continuidade ao tema da Ascensão de Lucas 24. Faz menção ao fato de Jesus ter padecido e estar vivo na presença deles após a ressurreição. Os discípulos querem saber de Jesus sobre o fim dos tempos, quando o reino de Israel seria restaurado. Jesus responde que ninguém sabe, somente o Pai. Depois os orienta sobre os próximos passos, ou seja: receberam o Espírito Santo para serem suas testemunhas em Jerusalém, na Judeia, Samaria e até os confins da terra. Os discípulos tiveram dificuldade em entender o que estava acontecendo. E ficaram olhando para o céu. Vieram dois varões e explicaram que Jesus foi e voltará. Vão em paz com a missão de Deus no mundo. Nesses passos o livro Atos dos Apóstolos caminha.

Em Efésios 1.15-23, o apóstolo Paulo escreve a respeito da fé e da prática do amor da comunidade. Por isso menciona louvor e graças a Deus por todo bem expresso pela comunidade. E ora e torce para que Deus conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento divino. Ensina sobre a graça de Deus nas ações realizadas em Jesus Cristo, ressuscitando-o entre os mortos e fazendo-o sentar à sua direita nos lugares celestiais, acima de todos os poderes ou nomes, para sempre. Agraciou a igreja com a presença de Jesus Cristo, sendo a comunidade o seu corpo. A comunhão da igreja é a presença de Jesus e comunhão nele, no entendimento de Dietrich Bonhoeffer.

 

2. Exegese

No texto que resume o encontro de Jesus ressuscitado com seus discípulos, encontramos elementos significativos para a fé cristã. Há de se considerar que os discípulos ainda vivem sob o impacto da crucificação e morte de Jesus. É verdade que já tiveram algumas informações importantes sobre o aparecimento dele após sua crucificação. Algumas pessoas do grupo foram testemunhas oculares e tiveram a experiência do encontro com ele. Mas ainda restam muitas dúvidas. Nem todas podem ser tiradas. Mas precisam de uma explicação mais consistente de que aquele homem era mesmo Jesus ressuscitado. Então, Jesus se encontrou com seus discípulos e os cumprimentou com a saudação da paz. Além da saudação, nesse encontro Jesus realizou cinco gestos:

1. Mostrar suas mãos e seus pés e pedir que os discípulos toquem em suas feridas.

2. Comer junto com os discípulos.

3. Explicar as Escrituras com base naquilo que nelas consta a respeito de Jesus.

4. Vocacionar a comunidade para o testemunho cristão das coisas que Jesus viveu, fez, sofreu, ensinou e comungou com eles.

5. Abençoar a comunidade apostólica.

Depois, foi elevado ao céu na presença deles. Enquanto isso, os discípulos continuam no mundo para o testemunho, louvor, glorificação, sempre na confiança da realização da promessa do perdão dos pecados e de Pentecostes.

O texto indicado para a pregação do Evangelho de Lucas (24.44-53) impulsiona para uma visão de conjunto de todo o evangelho. Sua redação traz conexão com o que segue no livro Atos dos Apóstolos. Ambos os aspectos se desenham como horizonte de interpretação do evangelho. Lucas, que é autor de ambos os textos, ressalta que o testemunho da Boa-Nova é movido pela experiência de encontro com o Cristo vivo e glorificado, cuja memória é celebrada pelas comunidades de fé em torno do partilhar do pão e da leitura das Escrituras, sob a ótica do que se cumpriu em Jesus, sua crucificação e ressurreição.

O relato de Lucas é uma leitura ou uma revisão de fontes do testemunho sobre a pessoa e a obra de Jesus (1.1-4), com alguma contribuição pessoal do autor, em termos de conteúdo e de estilo. Seu foco investigativo minucioso é teológico. Faz uma rememoração litúrgica detalhada do que fora realizado e ensinado por Jesus. Busca instrução na fé a seus leitores, personalizados em Teófilo (1.3). Teófilo é seu interlocutor e com quem dialoga diretamente. Certamente os dois conversam muito. E Teófilo tinha dúvidas e curiosidades que Lucas quer esclarecer. Lucas escreve seu evangelho e Atos dos Apóstolos a partir de dados que buscou em testemunhos com provas jurídicas. Ele zela pela organicidade da narrativa e, ao mesmo tempo, o faz com uma declarada intenção literária e poética no reconhecimento de alguns temas e, sobretudo, dos discursos de Jesus. Segundo SANTOS (2010, p. 02), “Lucas parece querer alcançar seus ouvintes de modo semelhante aquele com que o “estranho” que acompanhava os discípulos a caminho de Emaús expunha as Escrituras: fazendo-os arder no coração (24.32)”.

O texto inicia com a palavra de Jesus que menciona um detalhe do seu encontro com os discípulos de Emaús e em outros momentos. São estas as palavras que lhes falei quando estava com vocês (v. 44). Ensinou que sua missão foi o cumprimento do que estava escrito na Sagrada Escritura a seu respeito na “Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”. O texto inicia com o estudo bíblico de Jesus com os discípulos sobre questões mencionadas. Nessa formação continuada para a vida cristã, Jesus faz os seus olharem para o passado, para o entendimento do que fora dito a seu respeito. Mas o principal objetivo é a vida presente que está muito complicada. No caso, as Escrituras Sagradas iluminam a vida, ajudam a atender o presente e abrir o entendimento e a visão para o futuro do testemunho cristão. É a metodologia do estudo bíblico contextualizado.

Era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito (v. 44-49). O bloco todo foi escrito a partir dessa palavra. Nela estão elementos  importantes para o que segue nos v. 45s – uma interpretação cristológica das Escrituras na boca do próprio Jesus: a necessidade de cumprimento do que fora “dito/escrito” sob a autoridade das Escrituras. Lucas, seguindo suas fontes, legitima essa interpretação cristológica de Jesus em sua identificação com a tradição messiânica do servo de Deus (cf. Lc 4.16-21). Também situa o ensino do conteúdo da fé no Cristo na comunhão eucarística (24.43).

No v. 44, a partícula de tempo “a seguir” remete ao que antecede esse momento do relato. Lucas dedica o fechamento de seu relato ao testemunho em torno do encontro com o Cristo ressuscitado, caracterizando a presença de Jesus na situação da partilha de alimentos (24.30,43). Lucas recorre a essa situação “eucarística” para caracterizar o encontro com o Jesus ressuscitado. Esse argumento eucarístico, junto com a expressão lhes abriu o entendimento (v. 45), remete ao ocorrido no caminho entre Jerusalém e Emaús (24.13-35). Segundo SANTOS (2010, p. 02), “a maneira como Jesus se dirige ao grupo de discípulos – ‘caminha’ e ‘come com eles’ – implica também uma comunhão de entendimento, isto é, de uma fé compartilhada e confessada comunitariamente”.

A explicação de Jesus sobre o que as Escrituras dizem a seu respeito é a interpretação cristológica que provoca o “ardor no coração” dos discípulos no caminho de Jerusalém a Emaús (cf. 24.32), sendo que o abrir dos olhos e do entendimento se dá mediante o partir do pão (24.30). No v. 47, o tema do comissionamento na pregação do arrependimento “em nome do Cristo” converge com Mateus e Marcos. Para SANTOS (2010, p. 03), “Lucas dedica outro livro para narrar seu desdobramento; na verdade, como vimos, o testemunho apostólico ilumina toda a sua narrativa (1.1-4) e enfatiza o argumento missiológico de sua teologia”.

A compreensão das Escrituras é confirmada no v. 48: Vós sois testemunhas dessas coisas (cf. At 1.8). Esse compromisso é confirmado na comunhão de fé entre os discípulos e ouvintes desse evangelho. Não se trata, porém, de um comprometimento formal. Concordo com SANTOS (2010, p. 03) que escreveu que o “testemunho a que o evangelista se refere surge da experiência de encontro com o Cristo ressuscitado, o messias revelado, agora sob a promessa” (v. 49): Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai. Essa formulação de Lucas busca uma teologia do Espírito Santo, cuja chave de interpretação está na noção de promessa, evocada numa relação trinitária entre o Filho que envia a promessa (Espírito Santo) do Pai.

Jesus encerra suas palavras (v. 49) ordenando que os discípulos permaneçam na cidade de Jerusalém (cf. 24.33) até que do alto sejais revestidos de poder. Para Lucas, Jerusalém é um tema teológico, pois a Cidade Santa é o lugar messiânico onde o evangelho inicia e desde onde as nações o receberão.

[…] enquanto os abençoava, ia-se retirando deles, sendo elevado para o céu (v. 50-53). Erguendo as mãos, os abençoou. São três ações simultâneas: Jesus abençoa. Jesus se distancia. Jesus é elevado ao céu, o lugar de onde virá a promessa. Os três elementos sugerem novamente uma teologia trinitária: Lucas relaciona a Ascensão de Jesus com a promessa do Espírito Santo, identificando a comunhão dessa promessa com a fé no Cristo, agora colocado sobre todas as coisas, o cabeça de um corpo pleno entre as nações e tudo o que existe (cf. Ef 1.22-23). Por fim, imbuídos da promessa – não ainda revestidos de poder –, os discípulos retornam a Jerusalém e fazem do Templo o lugar da espera pelo cumprimento da promessa de Jesus (v. 53).

 

3. Meditação

O Evangelho de Lucas e Atos dos Apóstolos foram escritos já contando com a demora da segunda vinda de Jesus, ou do fim dos tempos. Como ninguém, a não ser o Pai, sabe quando será o dia, a comunidade deve esperar com fé e ações condizentes. Por isso ler, explicar, ensinar e entender o que as Escrituras dizem a respeito de Cristo e seu povo é fundamental. Em Lucas 24, pelo menos duas vezes, Jesus faz estudo bíblico. Nesse estudo, ele encontra o que está por trás das palavras e dos fatos. A comunidade deve encontrar Cristo nos textos e nos testemunhos bíblicos. Sem essa dimensão, a manjedoura é só palha, a cruz é só madeira, a palavra é só história, a eucaristia é somente comunhão humana, o batismo é só lavagem e o culto é só encontro de amigos e amigas humanos. Mas a comunidade cristã encontra algo mais, algo que, quem sabe, não se vê, mas faz arder o coração, ou seja, Cristo crucificado, vivo e presente, em comunhão profunda, ampla e larga.

A segunda insistência de Lucas é a organização do testemunho. Nesse texto da pregação ele faz a ponte com o planejamento missionário, em diferentes passos. O planejamento é Atos dos Apóstolos. Depois da ação do Espírito prometido por Jesus antes da sua Ascensão e enviado pelo Pai, os apóstolos louvam a Deus e dão testemunho. O testemunho conta com o martírio, conforme Atos (exemplo At 7.1ss e outros). O testemunho não é “sombra e água fresca”, mas conta com prisões, perseguições etc.

Terceiro, os textos de Lucas contam com a comunidade. Na demora da vinda definitiva de Cristo, o povo se encontra em comunidade. Nela se realizam o louvor, a glorificação de Deus, o ensino da Palavra, o repartir do pão, as orações, a comunhão. Não pode faltar a alegria, o júbilo. Pessoas cristãs são pessoas felizes, jubilosas, agradecidas. Tudo por causa de Jesus que as reconcilia com Deus, perdoa seus pecados e lhes dá vida e salvação. Sem que seus problemas, suas dores e sofrimentos estão na comunhão de Jesus. Seu amor é na comunhão de Jesus. A comunidade é Jesus Cristo presente no mundo (Bonhoeffer). Nessa realidade, estão perto do reino de Deus.

Nos elementos exegéticos se podem encontrar outras referências para a pregação. É importante lembrar à comunidade sobre a Ascensão de Jesus e de seus ensinos naquele momento. Eles são significativos para a vida cristã e a comunidade de Jesus.

 

4. Imagens para a prédica

Quando eu era criança e adolescente, não entendia o que era essa tal de Ascensão de Jesus. Imaginava que Jesus se despediu de seus amigos, deu ordens e prometeu voltar logo. Depois foi embora. Mas nunca mais voltou. Demorei a entender a relação entre o mundo físico e metafísico. Penso que Jesus não foi embora para outro espaço geográfico. Ele está presente no amor que não se vê, mas existe e dá movimento à vida. Aliás, ele é o amor. Sua presença continua, não é plena, mas está presente em seus sacramentos, na Palavra, na sua comunidade e nas pessoas que sofrem as dores do mundo.

Que imagem as pessoas da comunidade têm da Ascensão de Jesus? Quando fiz estudos bíblicos sobre os textos da Ascensão, fiz a dinâmica de desenhar como seria o evento. Depois, as pessoas relataram. Ou, em estudo em grupo, foi feita a dinâmica de representação teatral. Saíram coisas interessantes, que ajudaram a explicar os textos. No culto não há tempo para isso. Mas se poderia fazer algo prático para o momento: pedir que as pessoas fechem seus olhos e acompanhem mentalmente a leitura pausada do texto. Depois da leitura, pedir para algumas pessoas relatarem o que perceberam e o que imaginaram. Prestar atenção nas palavras. Fiz essa dinâmica algumas vezes. Num desses momentos, uma pessoa falou que ela sentiu solidão. Na semana seguinte, fiz uma visita pastoral, quando falamos sobre a solidão que ela vivia na vida real. A fala dela foi importante para o trabalho pastoral.

Bibliografia

BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 10. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2015. 107 p.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1988.
SANTOS, Joe Marçal. Meditação sobre Lucas 24.44-53. In: VOLKMANN, Martin (Coord.). Proclamar Libertação: Auxílios para o anúncio do Evangelho. São Leopoldo: Sinodal; IEPG-EST, 2010. v. 35.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).