Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 4.1-11
Leituras: Gênesis 2.15-17; 3.1-7 e Romanos 5.12-19
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 1° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 01/03/2020
Qual o sentido de abordarmos o tema tentação em uma prédica nos dias de hoje? A tentação ainda é um problema para a comunidade cristã contemporânea? Não seria o caso de termos encontrado uma solução simples para lidar com as tentações: a gente sistematicamente cede a elas?!
No mundo em que vivemos, a tentação está esvaziada de seu sentido porque também o pecado – ao qual a tentação incita, é um conceito ou uma palavra que perdeu seu sentido. A sociedade líquida na qual vivemos rejeitou os referenciais éticos derivados da tradição judaico-cristã. Experimentamos uma inversão de valores como profetizado por Jesus quando ele disse: Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará (Mt 24.12), e descrito pelo apóstolo Paulo em sua Carta a Timóteo: Nos últimos dias sobrevirão tempos terríveis. Os homens serão egoístas, avarentos, presunçosos, arrogantes, blasfemos, desobedientes aos pais, ingratos, ímpios, sem amor pela família, irreconciliáveis, caluniadores, sem domínio próprio, cruéis, inimigos do bem, traidores, precipitados, soberbos, mais amantes dos prazeres do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando o seu poder (2Tm 3.1-5). Em nossos dias, a tentação deixou de ser uma palavra que causa certo desconforto para tornar-se uma palavra glamorizada! Tentação passou a ser desde título de filme a marketing de perfumes e roupas íntimas.
Nesse sentido, uma das tarefas da prédica será demonstrar o que está em jogo na tentação, como ela nos afeta e quais suas consequências. Ao mesmo tempo, a prédica terá a tarefa de ensinar a comunidade a lidar e resistir à tentação! Afinal, a igreja (ekklesia) é composta por aqueles que foram chamados para fora (ek-kaleo) dos esquemas vigentes deste mundo (Rm 12.1-2).
O texto da tentação de Jesus foi sugerido para o 1º Domingo na Quaresma. A Quaresma convida a igreja para um período de penitência e arrependimento. Assim, faz todo o sentido o tema da tentação para o período da Quaresma.
O lecionário prevê a leitura da narrativa da queda do ser humano em Gênesis 3. Também sugere a leitura de Romanos 5, que apresenta, de forma tipológica, Adão como aquele por meio do qual o pecado entrou na história da humanidade e, consequentemente, condenou todos, e apresenta Cristo, cujo ato de obediência resultou na justificação de muitos. O tema transversal aos três textos bíblicos é a postura do ser humano diante da palavra de Deus. No relato da queda, o ser humano precisa decidir se atenta para a voz do tentador ou confia na palavra do próprio Deus. O mesmo ocorre na tentação de Jesus. No texto de Romanos, lemos que Cristo foi aquele que ouviu (ob-audire – obedecer) a voz de Deus e nela confiou, abrindo o caminho para a justificação pela fé.
Também sugerimos a leitura do subsídio homilético do P. Hans A. Trein em Proclamar Libertação v. 38, que inclui em seu texto um resumo das contribuições exegéticas de PL IV, PL 27 e PL 32.
O relato da tentação de Jesus é citado pelos três evangelhos sinóticos. Todos eles também conectam o relato da tentação com a narrativa do batismo de Jesus. Percebe-se, portanto, uma intenção teológica dos evangelistas nessa associação.
No ato do batismo, Jesus declara sua entrega incondicional, sua submissão absoluta ao Pai. Como resposta, o Pai declara a filiação de Jesus: este é meu Filho amado, em quem me agrado! O Filho obedece ao Pai e o Pai revela o Filho e o declara como Messias. Exatamente nesse ponto se insere a tentação. Ela tem por objetivo quebrar esse relacionamento do Filho para com o Pai e vice-versa. No âmago de toda e qualquer tentação está a tentativa do dia-bolos de nos afastar da palavra de Deus. Ele coloca em dúvida o que Deus disse e convida o ser humano a não confiar plenamente em Deus, o seduz à autonomia, a colocar as rédeas de sua vida em suas próprias mãos.
Tentação não foi um episódio esporádico ou isolado na vida de Jesus, mas o acompanha desde seu nascimento, quando Herodes procura matar Jesus (Mt 2.13), se materializa na boca de seus discípulos que tentam desviar Jesus de seu propósito (Mt 16.23) e encontra seu ápice na cruz, quando o povo, depois o sumo sacerdote, os escribas, os líderes religiosos (anciãos) e os ladrões insultam Jesus (Mt 27.39-44), desafiando-o a descer da cruz e provar a todos que verdadeiramente é o Filho de Deus.
V. 1 – Já no primeiro verso experimentamos um estranhamento quando lemos que Jesus foi levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado. Merece destaque o fato de Jesus não se dirigir ao deserto por iniciativa própria, mas movido pelo Espírito. O paralelismo com a peregrinação de Israel no deserto é evidente. Lembrem-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo o caminho no deserto, durante quarenta anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de conhecer suas intenções, se iriam obedecer aos seus mandamentos ou não (Dt 8.2). O deserto é lugar de desenraizamento, é a experiência do vazio que cria disponibilidade e espaço livre para Deus. Deserto é lugar onde Deus se revela ao seu povo. Tanto o culto como as leis foram instituições que Israel recebeu no deserto. O deserto possibilita a experiência da presença de Deus (Êx 33). O deserto também é lugar de tentação. No deserto o ser humano é desnudado, se mostra como ele é. O deserto, respectivamente, a tentação arranca-lhe suas máscaras. A probabilidade de sucumbir e morrer no deserto/na tentação é real, de modo que Jesus nos ensinou a orar: não nos induzas à tentação, mas livra-nos do Maligno.
V. 2 – Há paralelos com Êxodo 34.28, quando Moisés recebe as tábuas da Lei (cf. 1Re 19.8; Jn 3.4; At 1.3; Êx 16.35 e também o período de 40 dias da Quaresma). Entendo o jejum como expressão de uma postura da parte do ser humano, que procura ser sensível ao falar de Deus na sua vida. Sem a dimensão espiritual, o jejum se chama dieta.
V. 3-4 – Chama a atenção que a tentação envolve Jesus sem aviso prévio. Ela vem de fora. Seu propósito é dissociar o ser humano de Deus. De forma concreta, a tentação sugere a Jesus que ele comprove seu vínculo com o Pai, resolvendo o problema da fome. Em sua resposta à tentação, Jesus se prende à palavra de Deus! Ele remete à própria situação de tentação pela qual o povo de Israel passou no deserto (Dt 8.3).
V. 5-7 – A tentação torna-se ardilosa porque passa a manipular a palavra do próprio Deus. O Salmo 91.11-12 é citado isoladamente (cf. Sl 91.14!). Quando se despreza a exegese do texto bíblico, especialmente quando os princípios da correlação (Escritura interpreta a Escritura) e da interpretação de um texto em seu contexto são ignorados, a palavra de Deus pode ser transformada em uma palavra diabólica.
V. 8-11 – Na terceira tentação, a abordagem é direta. Jesus não é mais chamado de Filho de Deus. O tentador se coloca no lugar de Deus, como opositor, como alguém que detém poder e que oferece o poder secular (no lugar do reino de Deus) em troca da adoração. A proposta é fascinante! Novamente a filiação de Jesus é questionada. Jesus reafirma sua submissão a Deus, citando o primeiro mandamento (Dt 6.4,13; Êx 20.3).
Como já dissemos acima, o âmago de toda tentação é a tentativa de romper a relação entre Deus e o ser humano. A tentação questiona, põe em dúvida a palavra de Deus. A tentação quer fazer o ser humano des-confiar de Deus e do seu amor.
A partir desse foco, a perícope adquire sentido e significado para a comunidade cristã. Boa parte das mazelas de nossa sociedade contemporânea deriva do fato de termos perdido nossa identidade. A construção de uma identidade só é possível na relação com o outro, com o diferente. No entanto, a relação do ser humano com Deus, pai de Jesus Cristo, foi desconstruída. Nós apagamos o horizonte. Rejeitamos a transcendência e ficamos apenas com um deus imanente, humanizado. Por isso a humanidade tateia (At 17.27) em busca de um sentido para sua existência. Não seria também o caso da comunidade cristã correr o risco de viver um ateísmo prático, ou seja, permanecer a confissão nos lábios, a aparência de piedade, mas negando seu poder (2Tm 3.5; Ap 3.20)?
Na primeira tentação, Jesus foi desafiado a provar a sua filiação resolvendo o problema da fome. Esta continua sendo nossa tentação: a tentação de sermos relevantes! Como comunidade cristã, como ministras e ministros, somos chamados a ajudar pessoas, alimentar os famintos e aliviar o sofrimento dos pobres. Jesus viveu o mesmo dilema. Mas a resposta de Jesus foi que não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus. Jesus se apegou à sua missão de proclamar a Palavra.
Como comunidade cristã, somos perguntados pelo impacto, pela relevância que causamos no mundo. Muitas comunidades estão desanimadas, porque seus esforços parecem inúteis. O número de participantes diminui; os jovens não se sentem mais atraídos pela igreja; dedicar-se e trabalhar na igreja é pedir para ser criticado. A opinião de psicólogos, blogueiros, conselheiros de facebook tem mais crédito do que o testemunho da comunidade cristã. E o mundo à nossa volta diz em alto e bom tom: “Nós podemos cuidar de nós mesmos. Não precisamos de Deus, da Igreja, de ministras e ministros. Nós estamos no controle. E se não estamos, então devemos trabalhar ainda mais para o retomar. O problema não é a falta de fé, mas falta de competência. Se você está doente, precisa de um médico competente; se é pobre, precisa de políticos competentes […]” (NOUWEN, 2002, p. 19-20).
No Brasil, onde prevalece um liberalismo econômico que aprofunda o fosso entre ricos e pobres e emudece a justiça social, nos sentimos – como comunidade cristã – impotentes, cada vez menos relevantes e cada vez mais marginalizados. No entanto, “enquanto a eficiência e o controle são as grandes aspirações da nossa sociedade, a solidão, o isolamento, a carência de amizade e intimidade, os relacionamentos arruinados, o tédio, a sensação de vazio e depressão e uma profunda sensação de inutilidade enchem os corações de milhões de pessoas neste nosso mundo norteado pelo sucesso” (NOUWEN, 2002, p. 20).
A prédica poderia convidar a comunidade a resistir à tentação pela relevância. A questão primeira não são nossas realizações, os resultados, o impacto. A questão primeira não é uma comunidade moralmente irrepreensível, bem treinada, ansiosa em ajudar todos que necessitam e a responder criativamente às questões polêmicas de nosso tempo. Tudo isso é valioso e importante, mas não é o centro. A questão central é se estamos conectados com Jesus. Porque em um mundo de solidão e desespero, há uma enorme carência de pessoas que conheçam o coração de Deus: um coração que perdoa, que cuida, que estende a mão e que quer curar. O evangelho é o que há de mais desconhecido em nosso Brasil. Portanto, para resistir à tentação por relevância, convém à comunidade cristã que ela busque a comunhão com Deus por meio da oração. Pois somente aquela pessoa que permanece diante de Deus é capaz de permanecer diante das pessoas. Por meio da oração, a comunidade cristã será capaz de aprender a ouvir a voz do Deus que é amor. Uma comunidade que permanece conectada com seu Senhor possui identidade. E havendo clareza a respeito da identidade, é possível “permanecer flexível sem ser relativista, convicto sem ser rígido, confrontar sem ofender, ser gentil e perdoador sem ser mole, e ser uma testemunha fiel sem ser manipulador” (NOUWEN, 2002, p. 29).
A segunda tentação é a tentação de ser popular. Jesus foi tentado a fazer algo espetacular, algo que pudesse render muitos aplausos. No entanto, Jesus recusou-se a assumir o papel de super-homem. A ambição de ser uma estrela ou um herói individual (tão comum em nossa sociedade contemporânea) também não é um sentimento estranho na comunidade cristã. Frequentemente predomina na igreja a imagem do homem ou da mulher que conseguiu o sucesso sem a ajuda de ninguém, sozinho.
No entanto, somos convidados a viver em comunidade, somos inseridos na comunhão dos santos, não vivemos apenas para nós mesmos. Valeria a pena uma pesquisa em torno da expressão allelon (uns aos outros) no NT. Na comunhão cristã somos convidados a nos envolver com o outro, como irmãos e irmãs na fé, que conhecem e são conhecidos, que cuidam e recebem cuidado, que perdoam e são perdoados, que amam e são amados!
No exercício da confissão e da absolvição mútua somos guardados da sedução pelo poder, do exercício autoritário. Na vivência da confissão e do perdão comunitário, podem-se evitar os extremos da espiritualização (a vida cristã vivida de forma desconectada da terra) e da carnalidade (a vida cristã vivida de forma desconectada do céu). Como comunidade cristã, não somos chamados para ser populares, mas a ser autênticos.
Finalmente, a terceira tentação de Jesus foi a tentação do poder. Mesmo sem perceber, essa também é a nossa tentação: temos o desejo de controlar situações complexas, emoções confusas e mentes ansiosas. Em boa medida, o protestantismo brasileiro é um exemplo de como o poder tenta e seduz: poder político, poder militar, poder econômico ou mesmo poder espiritual. A tentação de considerar o poder um instrumento apto para a proclamação do evangelho é latente. Dizemos a nós mesmos que ter poder (desde que usado a serviço do reino de Deus e em favor das pessoas) é uma coisa boa. A história brasileira recente é pródiga em exemplos que demonstram as consequências quando se cede à tentação do poder.
Pensando especificamente na comunidade cristã, o que torna a tentação do poder aparentemente tão irresistível? “Talvez porque o poder oferece um fácil substituto para a difícil tarefa de amar. Parece mais fácil ser Deus do que amar a Deus, mais fácil controlar as pessoas do que amá-las, mais fácil ser dono da vida do que amar a vida. Jesus pergunta: – Você me ama? Nós perguntamos: – Podemos sentar à tua direita e à tua esquerda no teu reino? (Mt 20.21)” (NOUWEN, 2002, p. 49). A prédica quer nos chamar a resistir à tentação de substituir o amor pelo poder. Isso é possível quando nos submetemos ao discipulado. No discipulado e seguimento a Jesus, permitimos que sejamos conduzidos. No discipulado, o caminho é descendente e termina na cruz. Porque não é pelo poder ou pela dominação, mas pela fraqueza e humildade que o servo sofredor de Deus, Jesus Cristo, se manifesta.
O Livro de Culto da IECLB apresenta propostas de liturgia para o período da Quaresma.
1 João 3.8b poderia ser usado como texto de abertura/saudação do culto. O Salmo 91 poderia substituir uma das leituras indicadas.
Na entrada do culto, os participantes poderiam receber um chocolate Sensação, da Nestlé. A ponte para a tentação do chocolate poderia ser usada na introdução da prédica. A Kibom também produz um picolé com o nome Tentação. Essas imagens poderiam ajudar na introdução da prédica, ainda que esse tipo de tentação pouco tenha a ver com o sentido teológico da palavra.
NOUWEN, Henri. O perfil do líder cristão do séc. XXI. Belo Horizonte: Atos, 2002.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).