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Derrubando muros e transpondo barreiras

 

Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Gálatas 3.23-29
Leituras: Isaías 65.1-9 e Lucas 8.26-39
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23 de junho de 2019

 

1. Introdução

Em tempos de construção de muros, como pessoas cristãs, somos chamadas a repensar os desafios de nossa fé. Não apenas políticos constroem ou desejam construir muros para separar seus países de outros, considerados inferiores ou inimigos. Pessoas comuns, como nós, também constroem muros em condomínios, para separá-los de vizinhos e das próprias pessoas da cidade, em uma relação de medo e desconfiança por conta da violência atual, e de isolamento dos demais, a chamada privacidade. Também nas igrejas são construídos muros que separam denominações, grupos e modelos de espiritualidade. O que mais assusta é que tudo isso é visto com naturalidade. A exclusão passa a ser a norma. Nessa hora, somos desafiados e desafiadas a buscar orientação nas experiências do povo de Deus, registradas em nossa Bíblia.

Nosso texto aborda um profundo diálogo de Paulo com os gálatas sobre as práticas da lei que construíam muros separando judeus e gregos, escravos e livres, homens e mulheres. O mesmo debate aparece nos textos que completam as leituras do calendário litúrgico. No evangelho, onde Jesus liberta o endemoninhado geraseno, encontramos um estrangeiro impuro em terra impura que é alcançado por Cristo e tem sua vida e sua dignidade restauradas. Já no texto de Isaías há a contraposição de um povo rebelde, mas ainda assim amado por Deus, com povos que não buscavam a Deus, mas que o acharam. São histórias que nos convidam a perceber a graça de Deus que transpõe fronteiras, muros e preconceitos e chega àquelas pessoas ignoradas pela sociedade de seu tempo. Nosso texto nos convida a superar divisões.

 

2. Exegese

A perícope nos conduz por caminhos trilhados por homens e mulheres da tradição bíblica, os quais buscavam criar práticas que os aproximassem de Deus. Estar próximo a Deus é, de uma forma geral, estar puro, purificado. A busca por uma pureza que permita aproximar-se e manter a comunhão com Deus marca os antagonismos que Paulo enfrentava no diálogo com os gálatas. Ao mesmo tempo, desenha um dos grandes desafios que o cristianismo primitivo teve de enfrentar: como uma fé nascida no judaísmo, marcada pela relação com a lei, poderia inserir o estrangeiro? De um lado, a resposta era de transformar o estrangeiro em seguidor da lei. De outro, liberar estrangeiros e judeus de serem obrigados a seguir a lei. Isso é o que veremos em nossa perícope.

1. O pano de fundo – A Carta aos Gálatas está marcada pelo conflito do cristianismo judaico, estabelecido na Judeia, com o cristianismo gentílico da bacia do Mediterrâneo. Isso colocava em choque dois diferentes sistemas de convicções. O primeiro sistema era o do cristianismo judaico, que entendia o cristianismo como uma renovação do judaísmo. A conversão ao cristianismo significava uma conversão ao judaísmo cristão. Com isso, as práticas legais, em especial a circuncisão, seriam mandamentos a serem assumidos pelos novos cristãos. O segundo sistema era o do cristianismo que se espalhou pela bacia do Mediterrâneo, o cristianismo espalhado pelos itinerantes, entre eles, Paulo. Nesse sistema, o cristianismo era entendido como a aceitação da fé em Cristo sem a necessidade de vinculação à lei, desobrigando os novos cristãos de se tornarem judeus. Os gálatas, convertidos ao cristianismo nas ações missionárias de Paulo, não recebem a imposição da lei. Porém, em um segundo momento, uma provável missão provinda do cristianismo judaico palestinense impõe sobre eles a aceitação da lei. Esse grupo, marcado pela nova convicção – a fé cristã – para manter a novidade da fé em Cristo acaba aceitando a imposição das práticas legais. Paulo toma conhecimento disso e escreve a carta. É esse o pano de fundo tanto da carta como da perícope.

2. Piedosos e tementes – A primeira pergunta que nos desafia é: como um grupo de novos convertidos ao cristianismo aceita tão rapidamente as obrigações da lei? Aqui, vale lembrar que Paulo tinha parte de sua atividade missionária nos entornos das sinagogas. Ou seja, os piedosos (estrangeiros que guardavam as práticas de pureza judaica) e os tementes a Deus (estrangeiros que, dentro do panteão de deuses, oravam também ao Deus judaico) acabavam sendo os primeiros a receber a mensagem do evangelho. Assim, no bojo dessa comunidade encontrava–se uma aceitação parcial das práticas legais judaicas.

Por isso, uma vez convertido ao cristianismo, o grupo confrontado com as convicções de fé do grupo judaico-cristão, para não perder a novidade da fé cristã, acaba, como afirmamos anteriormente, aceitando as imposições legais. Ou seja, o drama se desenrola em meio ao profundo desejo da comunidade de continuar ligada a Cristo, a ponto de aceitar imposições legais. Por isso, por um lado, Paulo testemunha o grande amor da comunidade como um elemento positivo (Gl 4.12-15); por outro lado, fica admirado com a mudança de práticas promovidas pela comunidade (Gl 1.6-9). Esse ponto negativo é o cerne do conflito. A pergunta que conduz à nossa perícope, que é um fecho da argumentação de Paulo, é: por que, para Paulo, seguir a lei tem um aspecto tão negativo que invalida a própria morte de Cristo?

3. O cumprimento da lei em uma religiosidade retributiva – O judaísmo da lei era uma prática religiosa retributiva. Isso significa que o fiel, ao cumprir os ditames da lei, torna-se digno de receber os favores de Deus. A consequência disso é que o ser humano pode e deve tornar-se apto a receber os favores divinos. O grande problema é que o ser humano cumpridor da lei acaba por entender-se como melhor que qualquer outro ser humano. Se a circuncisão é a  marca de ingresso no sistema de fé que permite cumprir a lei e receber a retribuição divina, os que não são circuncidados tornam-se seres humanos de segunda categoria. Isso cria discriminação e exclusão. Por isso, no sistema de convicções judaico-cristãs, se os gentios não fossem circuncidados, eles não teriam acesso a Deus e, consequentemente, ao cristianismo. Ao mesmo tempo, as mulheres, por não serem circuncidadas, não têm o status dos homens circuncidados, ou seja, nunca teriam o mesmo status. Na perspectiva paulina, isso tudo invalidaria a graça.

4. A salvação é pela graça e não pelas obras da fé – Na reflexão em nossa perícope, a qual resume toda a discussão, Paulo reconhece que a lei tem um papel importante, mas ela é substituída pela fé. Essa substituição tem características importantes que nos permitem entender o versículo 28, central no texto.

Uma primeira característica é que a fé em Cristo independe de obras. Ou seja, não há prática humana que permita ao ser humano construir sua salvação.  Ela acontece pela graça de Deus, expressa em Cristo. Com isso, a fé substitui a lei.

Uma segunda característica é que ao assumir a fé por meio do batismo (e não mais pela circuncisão), a graça alcança a todos indistintamente. Assim, as divisões são superadas (3.28). Não há mais a diferença entre:

a) “judeu e grego”: mais do que a diferença de povos, reside aqui a superação do conceito de que para alcançar a graça de Deus seria necessário “tornar-se” judeu, mais precisamente, tornar-se um prosélito, um convertido. Se não há separação entre judeu e grego, não é necessário assumir as convicções judaicas para tornar-se um cristão. Se o cristianismo se insere na história do povo de Deus, descrita no Primeiro e no Segundo Testamentos e, não havendo diferença entre judeu e grego, todos os batizados são filhos de Abraão (3.29);

b) “nem escravo nem liberto”: em uma sociedade escravagista, essa era a diferença mais forte entre os povos desse período. Porém não podemos encarar essa diferença na perspectiva de uma diferença social. Ela é muito mais profunda. Na sociedade escravagista, o escravo não era um ser humano de uma classe social baixa. Era uma mercadoria a ser comercializada, usada e, inclusive, descartada de acordo com a vontade do proprietário. Se a primeira superação marcava a afirmação de que não há uma etnia melhor que outra, aqui se afirma a humanidade de todos. Não há a diferença entre pessoas e “mercadoria humana”. Todos os seres humanos são iguais diante da graça de Deus.

c) “Homem e mulher”: finalmente, afirmar em uma sociedade androcêntrica que homens e mulheres são iguais perante a graça de Deus derruba a barreira que considerava as diferenças de gênero como determinantes da maior ou da menor aceitação por parte dele. A lei, que estabelecia essa diferença, anunciava um Deus parcial. A graça em Cristo proclama a natureza amorosa de Deus, que não faz distinção de gênero e derrama sua graça abundante igualmente sobre todos. Essa é uma afirmação poderosa que anuncia um Deus igualitário, amoroso e gracioso. A última pergunta seria: quem faz essa afirmação?

5. Uma fórmula batismal – Gálatas 3.28 é considerada, por diversos pesquisadores, como uma fórmula batismal do cristianismo primitivo. Assumimos essa  posição. Dentro da argumentação da perícope, considerando essa afirmação como uma fórmula batismal, cada um dos cristãos das comunidades cristãs na Galácia assumiu essa afirmação de fé ao ser batizado. Daí a indignação de Paulo. Os gálatas foram batizados em um sistema de convicções forjado na superação das mais profundas diferenças do mundo antigo, porém voltaram a um sistema de convicções forjado em distinções excludentes.

Essa indignação do apóstolo é uma indignação que deveria marcar os cristãos e as cristãs de todos os tempos. A tentação de romper com os princípios dessa fórmula batismal e assumir sistemas de convicções extremamente excludentes marcam a história e a contemporaneidade do cristianismo.

 

3. Meditação

Vivemos em tempos de construção de muros. Não apenas muros para separar povos, como também muros para separar casas da cidade que estão em seu entorno, muros para separar bairros. Além disso, há os muros invisíveis, muitos desses dentro das comunidades de fé. Separam pessoas por não possuírem as mesmas formas de expressão de espiritualidade, separam pessoas por não pertencerem ao gênero correto “escolhido por Deus” para as funções importantes, separam pessoas por não possuírem as marcas de bênçãos divinas acumulando “riquezas deste mundo”. Em meio a essas realidades, somos desafiados a revisitar o texto de Gálatas 3.23-29.

A fé cristã, de modo especial nesse texto, afirma que Deus, que é amor, ama todos os seres humanos indistintamente. Deus não faz diferença. Deus não constrói muros. Os muros são construídos por uma concepção que não deveria encontrar eco na fé cristã nem nos seguidores e nas seguidoras dessa fé.

A vida religiosa baseada no cumprimento de regras e determinações tende a criar e justificar divisões. Os cumpridores dos ditames dessas convicções são melhores que os não cumpridores. As pessoas que vivem nos sistemas que adotam essas regras são superiores às que vivem em outros espaços de fé e ainda mais superiores àquelas que não têm fé ou que vivem em outras religiões. A religiosidade da lei em sua versão moderna reproduz os preconceitos da sociedade, por exemplo, em relação à mulher ou à criança. Nesse aspecto, a graça de Deus perde seu espaço e o sacrifício de Cristo é substituído pelo sacrifício individual. Na perspectiva paulina, isso invalida o sacrifício de Cristo e a graça de Deus.

As pessoas cristãs de hoje deveriam, no batismo ou na confirmação da fé, ser desafiadas a assumir a ruptura de todas as barreiras. Toda pessoa que é batizada em Cristo é herdeira da graça e, consequentemente, portadora e proclamadora dela. Deste modo, aceitar a diferença entre homem e mulher, judeu e gentio, escravo e livre, na perspectiva da discriminação por gênero, etnia e condição de dignidade, é construir muros de separação que acabam por soterrar a graça de Deus e invalidar a essência da fé cristã, que foi a encarnação e o sacrifício de Cristo.

Todos os seguidores e seguidoras de Jesus, hoje, deveriam tornar-se, pela experiência da fé e pelo compromisso batismal, promotores de unidade e perpetradores da graça de Deus. Deveriam assumir o compromisso batismal de se reconhecer como imerecedores da graça e, consequentemente, iguais a todos os seres humanos de nossa terra. O compromisso batismal torna-se o desafio de derrubar barreiras, promover a inclusão e anunciar a graça restauradora de Deus.

 

4. Imagens para a prédica

Sugerimos utilizar as imagens que aparecem na matéria de um jornal, intitulada “Um mundo de muros – as barreiras que nos dividem” (Disponível em: <https://arte.folha.uol.com.br/mundo/2017/um-mundo-de-muros/> ).

A proposta inicial é de sensibilizar os/as participantes com imagens de muros políticos, sociais etc. A seguir, o desafio é convidar a comunidade a refletir sobre os muros de seu entorno. Os muros invisíveis e os visíveis que temos ao nosso redor. Com isso liga-se aos textos que fazem parte do conjunto de leituras do dia. O destaque é que somos convidados a derrubar os muros e a transpor as barreiras que nos dividem.

 

5. Subsídios litúrgicos

Sugerimos, para um momento de confissão no culto, a oração “Deus da Reconciliação e do Perdão”, disponibilizada por Luiz Carlos Ramos na internet, disponível em: <https://www.luizcarlosramos.net/deus-da-reconciliacao-e-do-perdao/>.

Deus da Reconciliação e do Perdão

Deus da reconciliação e do perdão,
reconhecemos, entristecidos,
que temos pecado contra ti e contra o nosso próximo;
temos sido orgulhosos e nos recusamos a pedir perdão a ambos.
Quebranta-nos com teu amor incondicional, irrestrito e infindável,
e dispõe o nosso coração para perdoar e ser perdoado.
Que no abraço do teu abraço possamos aconchegar
a todo o mundo habitado,
e em particular aquele irmão ou irmã
que porventura nos tenha ofendido
e, assim, possamos experimentar a paz
que excede toda compreensão e todo entendimento.
Em nome do nosso Senhor e Salvador Jesus. Amém.
Santo Deus,
tu que nos chamas a praticarmos a justiça e a andamos na luz,
ensina-nos a indivisível lei do amor,
para que possamos amar teus filhos e filhas como tu amas,
e amar-te com toda a nossa força e vontade,
e encontrar a nossa liberdade na bênção do serviço ao próximo,
como nos foi ensinado não só em palavras,
mas de fato e de verdade
por Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Deus Conosco,
reunimo-nos no nome do teu Filho
para aprendermos a amar uns aos outros.
Ajuda-nos, nós humildemente te pedimos, nesse propósito.
Para isso,
desvia nossos pés de maus caminhos,
e nossas mãos de atos vergonhosos;
inclina nossas mentes para a tua sabedoria
e nossos corações para a tua graça. Amém.

(Luiz Carlos Ramos – Orações para o Décimo Quarto Domingo da Peregrinação após Pentecostes | Ano A, 2017 – A partir dos auxílios oferecidos pelo Revised Common Lectionary vd. Disponível em: vanderbilt.edu/prayers.php?id=156>.)

 

Bibliografia

CROSSAN, J. D.; REED, J. L. Em busca de Paulo: como o apóstolo de Jesus opôs o reino de Deus ao império romano. São Paulo: Loyola, 2007.
PATTE, D. Paulo, sua fé e a força do Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1987.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).