Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Lucas 4.21-30
Leituras: Jeremias 1.4-10 e 1 Coríntios 13.1-13
Autoria: Gerson Acker
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 03 de fevereiro de 2019
Estamos no 4° Domingo após Epifania. Nesse tempo litúrgico, somos convidados e convidadas a perceber as numerosas maneiras de revelação do Cristo. Diante disso, as perícopes propostas trazem uma afirmativa interessante: nem sempre a revelação do Cristo tem boa aceitação, ou seja, “santo de casa não faz milagre”. Esse provérbio popular tem sentido na fala de Jesus, quando esse afirma que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra (Lc 4.24). Isso significa que pessoas custam a ser reconhecidas na sua própria terra, e são muito mais valorizadas fora do local onde moram ou trabalham.
A menos que o profeta seja verdadeiramente chamado por Deus e enviado como mensageiro divino para Israel, não há nenhuma boa razão para que o povo o escute. Para demonstrar suas credenciais de profeta, Jeremias relata sua vocação (Jr 1.4-10), lembrando a seus leitores e suas leitoras que Deus o designou mensageiro divino para o povo da aliança (Israel) e que o consagrou para ser um profeta para as nações (povos pagãos). A desculpa de Jeremias “eu não sei falar porque sou jovem/criança” (v. 6) revela que ele sabe que “santo de casa não faz milagre” e que um profeta, em grande parte, tem uma vida solitária, com desprezo e perseguição. O consolo de Jeremias é a promessa de Deus: Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar (v. 8).
Para compreender a famosa passagem de 1 Coríntios 13.1-13, precisamos ter em mente a descrição que Paulo faz do amor como dom comunitário: um dom sem amor não é nada. Paulo pondera que os dons preferidos dos coríntios (glossolalia, profecia, conhecimento e até mesmo a fé), mas sem amor, geram indiferença e, assim, “nada serei”. As características do amor (v. 4-7) são opostas às características interesseira e competitiva do conhecimento e da hierarquia de valores que facciona a comunidade. Segundo o apóstolo, as profecias, as línguas, o conhecimento têm limites, mas o amor não. Portanto há diversos dons espirituais, mas o amor (ágape) é o único dom essencial que caracteriza a comunidade digna de ser chamada cristã. Sem amor “o santo de casa não faz milagre”.
A perícope para pregação está inserida em um contexto maior, que abrange os textos bíblicos de Lucas 4.14 a 9.50. Esse bloco relata os primeiros dias do ministério de Jesus em sua terra natal, Nazaré, antes de tomar resolutamente o caminho para Jerusalém (Lc 9.51ss), e de sua paixão, morte e ressurreição. A intenção do evangelista não é dizer que ali Jesus teria realizado sua primeira pregação, porque do texto se depreende que o Senhor já atuara antes em Cafarnaum e outras localidades (v. 14). Antes, a cena em Nazaré quer mostrar que a atividade de Jesus provocou aceitação e rejeição.
Segundo Bergant, entre os versículos 14-30 temos uma “história evangélica em miniatura”, ou seja, a princípio Jesus é recebido com louvor e aclamação, mas a inveja e a suspeita azedam essa reação, a ponto dos seus conterrâneos almejarem acabar com a sua vida (v. 29).
Como judeu praticante, Jesus vai à sinagoga em Nazaré (v. 16). Na celebração de sábado havia duas leituras, uma do Pentateuco e outra dos Profetas. Jesus foi fazer a segunda leitura, abrindo o rolo do profeta Isaías (61.1-2) e lendo uma promessa de restauração de Israel. O contexto original é a unção de um profeta, mas a figura do Messias também está subentendida no uso que Jesus faz do texto.
Após a leitura, quando Jesus se assenta para interpretá-la, há uma aura de expectativa sobre o mestre (Almeida: tinham os olhos fitos nele – v. 20). No relato de Marcos, a “nuvem de suspeita” é descrita mais minuciosamente (Mc 6.2-3). A perícope proposta para a pregação deste domingo inicia no v. 21, com a afirmativa do Cristo que hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. Porém, para melhor compreensão do texto, sugerimos que a leitura bíblica seja feita a partir do v. 16.
Os ouvintes da sinagoga ficam entusiasmados com o discurso de Jesus. O povo de Nazaré considera natural que Jesus construa uma grande fama, pois dessa maneira também eles seriam honrados (de Nazaré pode sair alguma coisa boa? – Jo 1.46). Eles davam crédito a Jesus, pois era “filho de José”, era um dos seus. Por isso aqueles que o admiram e que ouviram sobre o que havia realizado em Cafarnaum pedem: Faze-o também aqui na tua terra (v. 23). Porém Jesus deixa claro que seu ministério é direcionado às pessoas pobres, cativas, oprimidas e enfermas, as quais precisam de médico. Jesus responde que um profeta não se limita a trabalhar apenas para os seus. Ali em Nazaré ele não teria o apoio e o reconhecimento necessários, pois nenhum profeta é recebido na sua própria terra (v. 24).
Exemplificando sua posição, Jesus se compara a dois grandes profetas do antigo Israel, Elias e Eliseu, que serviram a não israelitas porque seu próprio povo não estava aberto a seus ministérios. A viúva de Sarepta foi salva da morte por inanição graças ao profeta Elias; e um gentio, Naamã da Síria, que tinha lepra, foi curado por Eliseu, tornando-se um reverenciador de Javé em meio ao contexto gentio. A inferência é que também Jesus, profeta não aceito por seu povo, levará sua mensagem a estrangeiros. Percebe-se claramente o conceito lucano de reino de Deus (basileia tou theou): a salvação é para todas as pessoas. Jesus esclarece que a misericórdia de Deus também se estende aos não judeus. Por isso ele não limita seu ministério aos judeus.
O fato de Jesus não querer limitar seu ministério apenas a seus conterrâneos gera ira por parte dos nazarenos. Esperava-se por um Messias que libertasse exteriormente o povo judeu do penoso jugo romano. Por isso os nazarenos ficam tão enfurecidos quando Jesus alude ao fato de que, por causa do desprezo de Israel, a salvação passaria aos gentios. A ira torna-se violência quando os que estavam na sinagoga levam Jesus até um abismo, a fim de precipitá-lo para baixo, como um blasfemo. Sem grandes detalhes, Lucas narra a “fuga” de Jesus, dizendo que ao chegar ao cume do monte, ele deu meia-volta e passou pelo meio deles. Expulso da sinagoga de Nazaré, Jesus passa a atuar na sinagoga de Cafarnaum (v. 31).
O conflito relatado pelo evangelista Lucas evidencia duas posições por parte dos conterrâneos de Jesus: um grupo o aceita e se maravilha com suas palavras de graça; o outro grupo o rejeita, pois não consegue aceitar a universalidade da salvação. Diante desse impasse Jesus não consegue proclamar o reino de Deus para o seu próprio povo.
Aceitar o Cristo que me agrada. Rejeitar o Cristo que me questiona. Torcer e retorcer o evangelho de forma que satisfaça o ego, o etnocentrismo, a meritocracia. Essa é a “carga explosiva” detonada pelo Evangelho de Lucas 4.21-30, que desvela e questiona a dificuldade que a maioria das pessoas e das comunidades tem de incluir “os de fora”.
Não é novo o mote do PAMI que instiga as comunidades da IECLB a serem “atrativas, inclusivas e missionárias”. Recordo-me do escritor suíço Denis de Rougemont, um arguto defensor da unidade europeia, que disse: “A decadência de uma sociedade começa quando as pessoas perguntam a si próprias: ‘O que irá acontecer?’, em vez de inquirir: ‘O que posso eu fazer?’”.
Cremos que a decadência da igreja está intimamente ligada com a constatação que a maior parte dos membros (1) não sabe o que fazer, (2) não quer fazer – essa é a mais nociva. Entendemos o termo “decadência” como estagnação no crescimento de membros, as decisões comunitárias sempre nas mãos das mesmas pessoas e o efeito chamado de “sempre foi assim”.
Cada pessoa cristã de confessionalidade luterana deveria perguntar-se (no âmbito pessoal e também comunitário): o que posso fazer para ser mais atrativo? (Do latim attractio, que causa interesse excessivo e/ou fascínio; de tornar próximo, de conquistar a atenção, de buscar para). O que posso fazer para ser mais inclusivo? (Até que ponto estamos dispostos a incluir todas as pessoas? Seria muito interessante que nossas comunidades e suas lideranças pudessem definir o que entendem por “inclusão”). O que posso fazer para ser mais missionário?
No que se refere ao desafio missionário dado a cada pessoa através do batismo, percebemos que nossas igrejas têm estado cheias de “participantes”, e não de “pertencentes”. A diferença? O “participante” está completamente descompromissado com a causa, é covarde. O “pertencente” é o que abraça o sacerdócio geral e sente-se corajosamente responsável pela vida comunitária.
É preciso confessar nossa covardia diante das inúmeras oportunidades missionárias que não vemos ou que não queremos ver. Como escreveu o argentino Julio Cortazar: “A covardia tende a projetar nos outros a responsabilidade que não se aceita”. A exemplo de Jesus, não podemos nos resignar e alimentar esse tipo de passividade. Não podemos calar a voz dos “santos de casa” que nos sinalizam propostas concretas para ampliar o horizonte missionário da comunidade. Frequentemente, quem tenta romper a inércia e sugere “derrubar muros” acaba “fugido”, como o próprio Cristo no relato desse evangelho. Há que se valorizar os “santos de casa”, esses que doam seu tempo, seus dons e seus bens para abrir as portas da comunidade. Há que se nutrir nas pessoas o sentimento de pertença e comprometimento ao evangelho, para que, mesmo sendo “santos de casa”, possam fazer “milagres”.
Sugerimos para a prédica três tipos diferentes de abordagem que podem ser úteis:
1. Explorar o provérbio popular “santo de casa não faz milagre”, fazendo um paralelo com a palavra do Cristo que diz: O profeta não é reconhecido em sua própria terra.
2. Perguntar para a comunidade o que ela entende por “inclusão”. Essa pergunta seria excelente quando se pensa numa prédica mais dialogal, buscando uma conscientização desse desafio batismal.
3. Tematizar a diferença entre “pertencer” e “participar” da comunidade à luz do paradoxo “aceitar” ou “rejeitar” o Cristo que vem salvar todas as pessoas.
L.: Senhor, achegamo-nos a ti, mas não isoladamente, e sim na companhia uns dos outros.
C.: Nós repartimos nossas alegrias uns com os outros e elas se tornam maiores.
L.: Nós repartimos nossas dificuldades uns com os outros e elas se tornam menores.
C.: Nós repartimos nossas aflições e nossos fardos, e seu peso torna-se mais leve para carregar.
L.: Que nunca sejamos tão egoístas para compartilhar, tampouco tão orgulhosos para receber.
C.: Pois ao compartilhar e receber, aprendemos a amar e a ser amados; encontramos o sentido da vida, o mistério de nossa existência e conhecemos
a tua presença. Amém.
Deus de misericórdia, reconhecemos nossa timidez quando não conseguimos testemunhar nossa fé em palavras e ações; reconhecemos nossa covardia quando deixamos de incluir pessoas, preferindo nos fechar em nosso egoísmo; reconhecemos nosso comodismo que tem nos impedido de viver de forma propositiva a tua missão. Liberta-nos, ó Deus, da timidez que cega, da covardia que cala, do comodismo que aprisiona. Pela ação do teu Santo Espírito, derrete nossos corações endurecidos e consome o preconceito e o orgulho que nos impedem de acolher o próximo. Acolhe nossa confissão silenciosa. Acolhe nosso pecado mais íntimo e tudo aquilo que pesa em nossa consciência. Tem compaixão de nós e perdoa-nos. Por Cristo Jesus. Amém.
A palavra de Deus nos diz em 1 Timóteo 2.3-4: Deus, o nosso Salvador, quer que todos sejam salvos e venham a conhecer a verdade. Por isso, a todos e todas que com sinceridade confessaram seus pecados e esperam no Senhor o perdão, anuncio-lhes que seus pecados estão perdoados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (+). Amém.
Amado Deus, Senhor de toda a humanidade, tu nos chamas a acolher todas as pessoas sem distinção. Ajuda-nos por teu Espírito a viver como irmãos e irmãs, motivando nossos corações a viverem na dinâmica da inclusão. Ajuda nossa comunidade a ser atrativa, inclusiva e missionária para que aqui possamos experimentar os pequenos e grandes milagres do teu Reino. Por Cristo Jesus, que contigo e o Santo Espírito vive e reina, hoje e para sempre. Amém.
BERGANT, Diane; KARRIS, Robert (Orgs.). Comentário Bíblico. São Paulo: Loyola, 1999. v. 3.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1983. v. 1.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).