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Ouvir: ligar terra e céu

 

Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica
: Mateus 18.15-20
Leituras: Ezequiel 33.7-11 e Romanos 13.8-14
Autoria: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 15° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 10/09/2023

 

1. Introdução

Os textos deste domingo nos falam da vivência da ética de relações solidárias e vivificadoras, superando aquelas tóxicas, condenatórias, odientas e destruidoras da vida. O profeta Ezequiel se preocupa com o peso da culpa que certamente atormentava aquele povo que tinha perdido tudo e estava perdendo sua fé. De quem seria a culpa do exílio, da destruição do Templo de Jerusalém (habitação de Deus) e da desgraça vivida pela comunidade? Não seria melhor esquecer os males praticados ou se omitir diante das injustiças? No entanto, adverte o profeta, é função de quem faz a guarda profética (atalaia) avisar. O conflito e a culpa apresentam a oportunidade de mudar o rumo, mudar a visão, mudar a prática de morte e abraçar novas relações de vida, porque, diz o SENHOR Deus, não tenho prazer na morte do perverso, mas que o perverso se converta do seu caminho e viva (Ez 18.11b).

O apóstolo Paulo escreve para a comunidade de Roma, no centro do poder imperial, ainda sem conhecê-la, e lembra que o amor é o resumo de toda a lei (Rm 13.8). Através do amor é possível evitar o mal da prática egoísta e alienada e se revestir de Jesus Cristo (v. 13-14). Assim, chegamos ao texto da prédica, em que a prioridade é superar aquilo que separa as pessoas e divide a comunidade: ouvir e assim ganhar irmãs e irmãos. Onde estão duas ou três pessoas reunidas, Deus ouve suas preces e Jesus dialoga no meio da comunidade. O diálogo como audição mútua vai sendo construído em círculos e se apresenta como o caminho, a metodologia, não apenas para superar os conflitos, mas também para unir a terra e o céu.

 

2. Superando ódios e divisões, na terra e no céu

A sistematização do Evangelho de Mateus está diretamente ligada à destruição do Templo de Jerusalém em 70 d. C., ao massacre que a acompanhou e à morte de lideranças cristãs em Jerusalém, tidas como a “reserva moral” da Igreja de Jesus Cristo (cf. Gl 1.18 e 2.1). Embora, como afirma Lohse, esse evangelho “pode ser denominado de Mc ampliado” (Lohse, 1985, p. 146), o capítulo 18 desenvolve algo mais específico, juntando logias (trechos avulsos), que formam um “sermão à comunidade” (Lohse, 1985, p. 147). Situações de grande violência, de perseguição, de deslocamento e de morte geram fortes tensões nas comunidades. Assim se fez necessário superar os desentendimentos, o ódio, e encontrar caminhos para fortalecer as comunidades como lugar de resiliência e resistência, unindo a terra e o céu a partir do encontro com Jesus. Vejamos uma possível estrutura desse texto:

A. v. 15: Ouvir e ganhar irmãs e irmãos.
B. v. 16-17: Ouvir com duas testemunhas e a igreja (assembleia) como instâncias finais.
C. v. 18-19: O que é ligado/desligado na terra e no céu.
B’. v. 19: Deus Pai ouve duas ou três pessoas que ligam/desligam na terra e no céu.
A’. v. 20: A comunidade de duas ou três pessoas dialoga com Jesus.

Podemos dizer que recuperar a capacidade de se ouvir, enfrentando o que divide e provoca rivalidade entre as pessoas das comunidades, se apresenta como uma teia de relações de cura e diálogo em vários níveis: a) tu, teu irmão; b) duas ou três pessoas reunidas com Jesus no meio delas (v. 15, 20) e c) a igreja é a expressão maior dessa teia de comunidades formada por elas, mas também as amparando quando se esgotam os recursos do diálogo entre as pessoas (v. 16-17 e 19). Mas o que faz tudo girar é o sentido de que a comunidade assume a responsabilidade de ligar, desligar e religar as relações da terra (espaço da práxis) e no céu (espaço da realização plena dos sonhos divino-humanos).

Ouvir é método de construção da comunidade unindo a terra e no céu. Todo o esforço se concentra em ouvir outras pessoas e ser ouvidas ou ouvidos. No v. 15, se ele te ouvir (ean sou akousē); no v. 16, se ele não te ouvir (eán de mē akousē); e no v.17 é usado duas vezes o termo parakousē (não-dar-ouvido/recusar ouvir). Já no v. 19 se fala de uma “sinfonia” (synfōnēsōsin), isto é, quando as pessoas falam e se ouvem em harmonia (de acordo) sendo, então, atendidas (ouvidas pelo Pai). Nesse sentido é que deve se entender o centro (v. 18-19), isto é, aquilo que pode ser ligado ou desligado na terra e no céu depende do processo de audição de harmonia e concordância no pedir, que permite a comunicação eficiente com o Pai e a presença de Jesus no meio das pessoas.

 

3. Meditação

A humanidade é conflitiva por natureza. Não há uma parte das Sagradas Escrituras onde o conflito não se faça presente. Podemos dizer também que Deus, como se revela nas Escrituras, se coloca como mediador de conflitos humanos desde a escravidão/libertação do Egito (Êx 1 – 15), passando pela proclamação profética e, especialmente, em Jesus Cristo, que se encarna na conflitividade humana, tendo como sua maior expressão a cruz. Essa revelação divina em meio aos conflitos humanos é o que faz ou desfaz a ligação entre a terra (esse lugar em vias de transformação onde acontecem os relacionamentos humanos) e o céu (esse lugar da plena presença de Deus, para onde vamos à medida que realizamos a vontade divina na terra). O texto se apresenta, como vemos na exegese, em círculos concêntricos.

O primeiro é o círculo interpessoal, em que, com ajuda e inspiração divina, devemos nos ouvir mutuamente, nos considerar em amor e nos tornar cada vez mais “irmãs” e “irmãos”. Certamente, nesse círculo interpessoal, devemos considerar o mandamento ama a pessoa próxima como amas a ti (cf. Mt 19.19; 22.3, para citar exemplos do mesmo evangelho), ou a mútua compaixão (cf. Mt 18.33) ou ainda perdoar e receber perdão (Mt 6.12-14; 18.35). Mas nem sempre é possível resolver os conflitos e crescer sem outra mediação humana.

O segundo círculo é o intracomunitário. Nesse, envolvem-se as pessoas que conhecem as partes do conflito e a natureza do conflito. Essas pessoas também são chamadas a ouvir e ser ouvidas. Esse círculo, que inicia nos v. 16-17 (chamando essas pessoas de “testemunhas”), fecha nos v. 19 e 20, quando se diz que ali as orações serão ouvidas e no centro estará Jesus. Portanto é importante que a audição inclua a oração em favor do diálogo, da compaixão, do perdão e do amor divino expresso em Jesus.

O terceiro círculo é “a igreja”, que expressa a ligação entre a terra e o céu. A palavra “igreja” significa “assembleia”, portanto é o lugar onde todas as vozes devem ser ouvidas, tanto as vozes de irmãs e irmãos, envolvidas ou não no conflito, quanto a voz divina através da leitura e meditação da Palavra.

Os três círculos são concêntricos e interdependentes. Por isso, quando nossas relações interpessoais dão lugar ao ódio, à violência, à divisão, ao desamor (perdendo a capacidade de ouvir), a comunidade se enfraquece (perdendo a capacidade de mediar os conflitos e transformar as relações) e a igreja se divide (perdendo a capacidade de gerar comunhão e realizar sonhos divinos na história humana).

Nos últimos tempos, no Brasil e no mundo, temos visto o recrudescimento de ideologias de ódio racial, de gênero, social, ambiental. Há igrejas que têm estimulado essas atitudes, assim como pessoas e grupos dentro de outras igrejas que perseguem e atacam irmãs e irmãos na fé. O caminho da superação está em redesenhar esses círculos, buscando os meios para recuperar a capacidade de ouvir irmãs e irmãos, parentes, amigas e amigos. Assim podemos recuperar a capacidade de dialogar, vivenciar a amorosidade e viver em comunhão. Só assim será possível retomar o sentido de ser igreja como comunidade de diálogo, amor, comunhão, ser aquele espaço onde é possível a ligação entre a terra e o céu.

Se nada der certo – e isso pode acontecer –, estaremos, triste e irremediavelmente, separados e não poderemos mais, com essas pessoas, viver o encontro com Jesus entre nós.

 

4. Imagens para a prédica

Devemos lembrar que há irmãs e irmãos surdos que também devem ser ouvidas e ouvidos. Lembrar, portanto, as muitas formas de ouvir. Lembrar a importância da linguagem inclusiva, a Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRA) e todas as formas de comunicação em que podemos ouvir e ser ouvidas e ouvidos.

Imagens que simbolizam a recusa a ouvir também podem ajudar. Lembrar que muitas vezes o preconceito em relação a crianças, adolescentes e juventude em geral, pessoas com deficiência mental, indígenas e pessoas negras, mulheres, pessoas pobres, nos impede de ouvir com a mesma atenção com que ouvimos outras pessoas. Como superar essas barreiras para poder ouvir e curar o pecado que nos divide?

Lembrar como é bonito e significativo o diálogo ecumênico e inter-religioso e como ali podemos exercer a capacidade de ouvir e mostrar a presença de Cristo no meio de todas as pessoas, sem exclusão, e superando toda forma de discriminação.

 

5. Subsídios litúrgicos

A comunidade monástica ecumênica de Taizé tem o mantra (refrão): “A minha/nossa oração, ao clamarmos, ouve, Senhor, a minha/nossa oração, vem e ouve, Senhor”. Podemos cantar entre momentos de oração quando lembramos as barreiras a serem rompidas para restaurar o diálogo e a amorosidade entre todas as pessoas.

Durante o momento de confissão e arrependimento, pode-se fazer silêncio e lembrar as pessoas com as quais não conseguimos mais dialogar, pode-se dizer a cada tanto: “Senhor, ajuda-nos a ouvir para ganharmos irmãs e irmãos”.

O canto “Mutirão da Vida”, de Edson Ponick (LCI 596), é uma música adequada tanto para cantar depois da meditação quanto antes da Ceia (caso seja celebrada).

 

Bibliografia

LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1985.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).