Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Mateus 16.13-20
Leituras: Isaías 51.1-6 e Romanos 12.1-8
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/08/2017
Quando abrimos o Evangelho de Mateus e lemos a perícope-base deste domingo (Mt 16.13-20), defrontamo-nos com o desafio de refletir sobre nosso compromisso com a fé cristã e com nosso mundo, um compromisso que se desenvolve em nosso cotidiano.
Nossa perícope aponta para os alicerces da fé cristã e confronta um conjunto de expressões e práticas cristãs que se apresentam com uma face excludente e violenta. O texto bíblico de Mateus torna-se voz profética para denunciar essas práticas e para desafiar as pessoas cristãs a uma vida de fé marcada por práticas de inclusão e de cuidado com todas as pessoas.
A perícope sobre a confissão de Pedro, registrada no Evangelho de Mateus, tem como ponto de partida o Evangelho de Marcos. Contudo o Evangelho de Mateus registra algumas peculiaridades que dão a essa perícope um colorido especial. Não só é um texto maior e mais desenvolvido do que o de Marcos, como também apresenta pequenos elementos diferenciais que o ressignificam. Nessa abordagem exegética, vamos buscar destacar essas diferenças e seus impactos na interpretação.
Quando comparamos Marcos 8.27 com Mateus 16.13, percebemos que, na pergunta de Jesus, Mateus cria um jogo de palavras. A pergunta de Marcos “Quem dizem os homens que sou eu?” ganha em Mateus uma redação diferente: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?”. A mudança não apenas vincula a pergunta às expectativas messiânicas acerca do Filho do Homem como também cria um jogo de palavras no qual os homens não sabem quem é o Filho do Homem. Há um desconhecimento daqueles que tinham obrigação de reconhecer o Filho do Homem. A humanidade necessitava reconhecer o esperado Filho da Humanidade.
As tradições petrinas desenvolveram-se muito fortemente na Síria e na Galileia. Não podemos deixar de citar que tradições paulinas (que também estavam na Síria) e tradições joaninas (da Transjordânia e Ásia) compõem esse rico mosaico de tradições que forjaram o cristianismo em suas origens. Nas tradições siro-palestinenses, Pedro aparece como personagem paradigmático dos cristãos. Ele é apresentado com toda a ambiguidade que marcava a caminhada de fé de qualquer discípulo/a: fé e medo, coragem e covardia etc. Por isso o papel que ele desempenha nesse texto é fundamental. Ele congrega os desafios que marcam a vida de qualquer um dos cristãos. Por isso a confissão de Pedro no Evangelho de Marcos é uma confissão da própria comunidade.
Para entender isso, precisamos destacar as características próprias da narrativa de Mateus. Em primeiro lugar, encontramos no v. 14 o acréscimo de Jeremias na lista de comparações que os homens fazem acerca de quem é Jesus, uma vez que Jeremias foi considerado na tradição como um profeta que experimentou um sofrimento profundo. Ao mesmo tempo, é importante destacar que é possível que a vida de Jeremias tenha inspirado os cânticos do servo sofredor encontrados em Isaías. Esses cânticos de Isaías, na história da redação do Novo Testamento, serão ligados à vida de Cristo. Por isso essa interrelação entre o profeta Jeremias, os cânticos do servo sofredor e o próprio sofrimento de Jesus forjam o conceito de Jesus como o Messias sofredor. Em segundo lugar, a confissão de Pedro, que é uma confissão da comunidade, afirma que Jesus é o Cristo (como Mateus e Lucas farão). Mas acrescenta que ele é o “Filho do Deus vivo”. Esse título cristológico dirige a interpretação do trecho exclusivo de Mateus – os versículos 17 a 19.
Chamamos esses versículos de enigmáticos, pois a interpretação deles tem gerado muitas posições diferentes na história do cristianismo. Quem é a pedra sobre a qual a igreja está edificada? Esta é a grande pergunta.
Devemos destacar que nesse texto, ao ressaltar a autoridade petrina, Pedro é colocado como um paradigma para a vida dos cristãos. Por isso as características dessa autoridade tornar-se-ão desafios para a vida da comunidade.
A primeira característica aparece na afirmação de Jesus de que a confissão de Pedro não nasce do sangue nem da carne, ou seja, não é mérito humano. Essa confissão é revelada pelo Pai que está nos céus. Por isso a autoridade petrina, e consequentemente dos participantes da comunidade, não está baseada em ações e decisões humanas. A possibilidade de confessar Jesus como Cristo é obra do Espírito.
A segunda característica é que Simão Barjonas recebe o nome de Pedro: “Tu és Pedro”. Pedro significa pedra. No texto, encontramos a afirmação de que “sobre essa pedra edificarei minha igreja”. Definir qual é a pedra torna-se o ponto crítico da interpretação, e encontramos diversas abordagens. Uma parte significativa dos pesquisadores defende que Pedro é a pedra. Desse modo, a igreja está edificada sobre ele. Essa interpretação ressalta a autoridade de Pedro como base da igreja. Outros pesquisadores colocam que a pedra é Cristo. O problema é que não há sinais narrativos para defender essa posição. É certo que em jogo está a pergunta sobre quem é Jesus para os discípulos, mas a ligação dele com a pedra não fica explícita. Por isso caminhamos por uma terceira possibilidade, que está baseada na revelação que Pedro recebeu dos céus: Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Com isso a Pedra sobre a qual a igreja está edificada é a proclamação de fé revelada pelo Espírito: Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo.
Assim, assumimos aqui que a Pedra não é Pedro, mas a confissão de Pedro, em especial quando percebemos que o tema central de todo o diálogo de Jesus com seus discípulos é exatamente quem ele é para os “homens” e para os discípulos.
A terceira característica é encontrada na afirmação de que Pedro recebe as chaves do reino dos céus. Diversos comentaristas entendem que essa frase visa reforçar a autoridade petrina, o que é fortalecido com a afirmação que segue: “Tudo o que atardes sobre a terra será atado nos céus, e tudo o que desatardes na terra será desatado nos céus”. Porém precisamos avaliar essas afirmações com um olhar mais amplo no Evangelho de Mateus. A frase enigmática “Tudo o que atardes sobre a terra será atado nos céus, e tudo o que desatardes na terra será desatado nos céus” é usada duas vezes no Evangelho de Mateus. A primeira vez em nossa perícope (Mt 16.13-20); a segunda vez no capítulo 18, onde encontramos o ensino sobre a igreja (Mt 18.15-22). O que chama nossa atenção é que essa frase aparece ligada às duas ocorrências da palavra ekklesia (igreja).
No ensino sobre a igreja, contido no capítulo 18, o tema da perícope de 18.15-22 é o perdão. A perícope orienta sobre como agir nas situações em que alguém peca. A orientação é que, se um irmão pecar, deve ser procurado à parte. Se ele se convencer do pecado, o irmão foi ganho. Se ele não se convencer, devem-se levar dois ou três “testemunhadores” (pessoas hábeis na proclamação) para buscar firmar a convicção na palavra. Se ele não ouvir, deve-se levá-lo à igreja. Se não ouvir a igreja, deve-se tratá-lo como gentio ou publicano. Nesse ponto as interpretações divergem. Alguns pesquisadores entendem essa ordenança como exclusão da comunidade. Não podemos nos esquecer de que na lista dos discípulos o nome de Mateus vem seguido do “publicano”. Jesus considerou o publicano Mateus como objeto da missão. Portanto a orientação é exatamente o contrário das interpretações citadas: a ordem é não excluir, e sim considerar esse irmão como objeto da missão. A explicação é simples: o que desatar na terra será desatado no céu. Ou seja, fora da comunidade a pessoa não tem nenhuma possibilidade de vivenciar o Reino. Dentro da comunidade, a pessoa tem a oportunidade de mudar seu comportamento e voltar a vivenciar o compromisso com o reino de Deus. Por isso o perdão deve ser ilimitado: setenta vezes sete (18.22).
Para confirmar a leitura acima, precisamos lembrar-nos de que nossa perícope é parte de uma estrutura do evangelho que liga o capítulo 13, que é central no Evangelho de Mateus – o discurso em parábolas –, ao capítulo 18 – o discurso sobre a igreja e sobre o perdão. No capítulo 13, duas parábolas exclusivas de Mateus enfatizam a não exclusão. A primeira é a parábola do joio (13.24-30). Nela, a conclusão é inimaginável na lógica de um agricultor. O joio deve crescer com o trigo. Só na colheita será separado. A segunda é a parábola da rede (13.47-50). Aqui temos uma informação básica: durante a pesca, enquanto a rede está na água, não se tiram peixes dela. A separação é feita na praia. Como a colheita na primeira parábola e o separar peixes na praia na segunda estão ligados à ideia do julgamento final, isso aponta que quem julga não é a comunidade, mas Deus no final dos tempos. Ou seja, não se deve seguir a lógica humana: retirar o mato para a semente boa crescer melhor. A lógica do Reino é diferente: não se exclui para que não se corra o risco de perder uma única semente boa. E também na parábola do Reino, excluir durante a pescaria é uma impossibilidade.
Portanto possuir as chaves do Reino deve ser entendido como responsabilidade e não como privilégio. Levar a confissão de fé adiante implica não fechar o Reino para ninguém. O desafio é a inclusão de todas as etnias (28.19). Ninguém poderá ficar de fora. Com isso a terceira característica deve ser entendida como um compromisso de não exclusão, e sim de responsabilidade com o outro, mesmo com aquele ou aquela que não preenche os ideais de participação na comunidade.
Diante do desafio de saber quem é Jesus, a igreja se consolida. O alicerce da igreja está na possibilidade de confessar que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Isso não é atributo humano, é revelado pelo Espírito. Por isso ninguém pode ser melhor que ninguém. Todos são iguais. Assim, Pedro passa a ser paradigma do ser cristão, apresentando as características que se espera encontrar na comunidade. Todas elas se fundem em um desafio missionário: confessar que Jesus é o Cristo deve ser vivenciado na perspectiva da inclusão. Quando confissão de fé vincula-se a práticas que consolidam a preocupação com o próximo, em especial com os pequeninos e, inclusive, com os que estão com práticas destoantes, e essa confissão não permite a prática da exclusão, as portas do Hades, não têm poder sobre ela. Por outro lado, se houver a exclusão, a comunidade fecha as portas do reino e abre as portas do inferno.
No calendário litúrgico, o Tempo Comum – dentro do ciclo que marca o pós-Pentecostes –, o desafio da comunidade cristã é a vivência cotidiana da fé. Os textos deste domingo apontam ao cuidado de Deus para com os seres humanos. O texto de Isaías 51.1-6 ressalta o cuidado que o Senhor tem com seu povo. Escavados da rocha aguardam a justiça de Deus. O texto de Romanos convida à transformação da mente para que o culto racional seja um exercício dos dons como parte de um corpo: a comunidade. Esses textos conjugados convidam a igreja a descobrir sua relação com Deus e sua responsabilidade para com a mis- são. Por isso o texto de Mateus 16.13-20 torna-se decisivo para aprofundar essa relação com Deus e a missão.
Em primeiro lugar, devemos destacar que a missão se inscreve em um mundo no qual os seres humanos (no texto “os homens”) não distinguem quem é o Filho do Homem. Ou seja, a missão inscreve-se em um mundo de incompreensão e desconhecimento. Aquele que é esperado não é reconhecido. Por isso torna-se um desafio aclarar para a humanidade quem é o Filho da Humanidade.
Em segundo lugar, o texto de Mateus lembra-nos de que o ser humano não é artífice da missão; é coparticipante. Ele não confessa Jesus como Cristo por mérito próprio. É revelação do Espírito. A missão acontece na comunhão do ser humano com o Espírito. Ele revela que Jesus é o Cristo.
Em terceiro lugar, o desafio é possibilitar que todas as etnias conheçam a pedra sobre a qual a igreja está edificada: a confissão de que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo. Essa confissão deve ter como alvo todas as etnias, todas as nações, todas as pessoas. Ou seja, a exclusão de qualquer pessoa da possibilidade de conhecer essa pedra atenta contra a missão.
Por fim, a comunidade de fé tem as chaves do Reino. Isso não é direito, isso é responsabilidade. Quando a comunidade usa o poder das chaves para impedir que alguém entre, as portas do Hades (inferno) abrem-se, e elas prevalecem sobre o Reino. Quando a inclusão é a característica da comunidade alicerçada sobre a rocha, ela não exclui, e as portas do inferno não prevalecem contra ela.
Vivemos em um mundo marcado por violência, exclusão e intolerância. A fé cristã tem sido em muitos casos artífice desses processos. O texto lembra que a rocha sobre a qual a igreja está firmada é uma confissão de fé que tem como característica as práticas de inclusão e o cuidado para com o outro. O corpo precisa agregar todos os membros (Rm 12). A salvação de Deus e sua justiça duram para sempre (Is 51). Os pertencentes à comunidade de fé devem anunciar esse cuidado de Deus com o mundo, com o corpo, com a justiça a todos os seres humanos. Quando vivemos o acolhimento e a inclusão como marcas maiores, as portas do inferno não prevalecem.
Quando temos acesso aos noticiários, em especial da política, assombramo-nos com o crescente número de cristãos (evangélicos) ligados a práticas de corrupção e com discursos excludentes. Em nome da fé agradecem a Deus pelo dinheiro ilícito. Em nome da fé levantam-se contra pessoas e grupos. Ao mesmo tempo, quando temos acesso aos discursos oficiais de diversas igrejas, encon- tramos uma eclesiologia fundamentada em processos que refletem a lógica do mercado. Justifica-se a exclusão do outro por não apresentar um modelo de espiritualidade que reflete o modelo definido como único pela comunidade. Chega-se a consolidar essas práticas com frases como: “Se alguém não joga no seu time, tem que ser convidado a sair”. O cristianismo, influenciado por uma lógica empresarial, tem visto a exclusão como uma estratégia para melhorar o ambiente e a “produtividade” (leia-se conseguir adeptos). Para alcançar resultados mais efetivos, deve-se eliminar o que não se amolda às características aceitáveis dentro da comunidade.
Diante desses dois aspectos da realidade moderna, que apontam para o crescimento de um cristianismo sectário e excludente, somos desafiados pelo texto de Mateus e pelos demais textos apontados em nosso calendário litúrgico a assumir uma postura de contestação. Se Jesus fosse aplicar o princípio que dirige essas práticas descritas acima, ele não escolheria, por exemplo, Pedro. O tempo todo, Pedro mostra os limites que os seguidores de Jesus têm. Por outro lado, ele aparece em nossa perícope como o paradigma para todas as pessoas cristãs: a coparticipação na missão, firmada na confissão de fé e em uma prática não excludente.
Em junho de 2016, faleceu Federico J. Pagura, bispo da Igreja Metodista da Argentina, que marcou nosso tempo com sua palavra profética e com suas composições musicais. Um subsídio litúrgico que pode contribuir para o compromisso das pessoas cristãs em um mundo de exclusão é sua música Temos Esperança. Ela pode ser cantada na comunidade ou lida em forma de poesia:
Temos esperança
[Homero R. Perera, Federico J. Pagura; trad. Jaci Maraschin]
Porque ele entrou no mundo e em nossa história;
porque quebrou o silêncio e a agonia;
porque mostrou na terra a sua glória;
porque foi luz em nossa noite fria;
porque nasceu em pobre estrebaria;
porque viveu semeando amor e vida;
porque partiu os corações mais duros
e levantou os tristes e abatidos.
Por isso é que hoje temos esperança;
por isso é que lutamos destemidos;
por isso olhamos hoje com confiança
para o porvir dos povos oprimidos.
Por isso é que hoje temos esperança;
por isso é que lutamos destemidos;
por isso olhamos hoje com confiança para o porvir.
Porque atacou corruptos, mercadores
e denunciou maldade e hipocrisia.
Porque exaltou crianças e mulheres
e condenou os que de orgulho ardiam.
Porque levou a cruz de nossas penas
e saboreou o fel de nossos males.
Porque aceitou sofrer a nossa culpa
e assim morrer por todos os humanos.
Por isso é que hoje temos esperança…
Porque uma aurora viu sua vitória
sobre as mentiras, sobre a morte e o medo.
Já nada pode interromper sua história
nem a chegada de seu Reino eterno.
Por isso é que hoje temos esperança…
LUZ, Ulrich. El Evangelio Según San Mateo – Mt 8-17. Salamanca: Sígueme, 2001. v. II.
OVERMAN, J. Andrew. Igreja e Comunidade em Crise: O evangelho segundo Mateus. São Paulo: Paulinas, 1999.
SALDARINE, Anthony J. A Comunidade Judaico-Cristã de Mateus. São Paulo: Paulinas, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).