Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Isaías 42. 1-9
Leituras: Mateus 3.13-17 e Atos q0.34-43
Autoria: Klaus A. Stange
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 08/01/2017
Tornem-se filhos de Deus inculpáveis
no meio de uma geração corrompida e depravada,
na qual vocês brilham como estrelas no universo. (Fp 2.15)
As ruas clamam por justiça e paz. Mas, ao que parece, somos excessivamente egoístas. Nossa solidariedade dificilmente é desinteressada. Nossa elite política e econômica não será capaz de servir a mesa inclusiva em que ninguém fique de fora, partilhar o pão que é nosso, tendo dado graças ao nosso Pai. “As ideologias e os sistemas políticos, os avanços científicos e tecnológicos, a educação e o desenvolvimento não se mostram suficientes para atender ao clamor de bilhões de pessoas que vivem à margem dos benefícios das sociedades organizadas ao redor da riqueza partilhada entre poucos” (Kivitz, 2016). O clamor de nosso mundo por mais compaixão, solidariedade e generosidade deve encontrar nos cristãos e em todos os homens e mulheres de boa vontade e que cultivam o temor a Deus as primeiras respostas. Qual é nossa resposta?
Num primeiro momento, o texto me irrita. A justiça com a qual todos sonhamos, a justiça universal – como lemos no primeiro verso –, é mediada por um servo. O que dá para esperar de alguém com uma identidade ou atitude de servo? Não vai sobreviver muito tempo em nosso mundo competitivo. Além do mais, ele não é alguém que ergue a voz denunciando a injustiça. Ele não vai para a rua protestar.
Alguém que deseja prevalecer precisa aparecer. Os movimentos sociais de nossos dias deixam isso bem claro: quando se pretende reparar uma injustiça, é necessário que se vá para a rua, é necessária a mobilização das massas, são necessárias palavras de ordem. Então, como o servo de Deus pretende que suas reivindicações se façam ouvir? Como ele imagina introduzir mudanças em nossa sociedade? Como ele pretende obter êxito? Um servo não combina comigo, e sua estratégia de ação parece fracassada.
Ironicamente, ainda se diz do servo que “não mostrará fraqueza, não se deixará ferir” (v. 4). Isso não é autoengano? Uma ilusão? Palavras de alguém alienado da realidade? Como confiar e como colocar a esperança em alguém tão frágil, com tão pouco poder, tão vulnerável?
Percebo que a descrição do servo de Deus não corresponde, num primeiro momento, a meu imaginário de alguém que pudesse fazer alguma diferença em nossa sociedade. Preciso atentar melhor para o que Deus mesmo diz de seu servo (v. 7), preciso compreender melhor o jeito de Deus, a pedagogia divina.
A perícope é composta de duas partes: a) o cântico do servo de Javé (v. 1-4) propriamente dito; b) um comentário, uma explicação e um desdobramento do que foi dito na primeira parte sobre o servo (v. 5-9).
A perícope para a prédica é o primeiro dos assim chamados “cânticos do servo de Javé” (cf. Is 49.1-6, 50.4-9 e 52.13-53.12). Certamente houve personagens históricos (o próprio Isaías, o povo de Israel, um soberano, um personagem do futuro etc.) que se encaixam parcialmente na descrição do servo de Javé. Mas tomo a liberdade de não aprofundar nesse espaço a discussão sobre as várias hipóteses a respeito da identidade histórica do servo de Javé e opto por uma interpretação cristológica do texto. Fundamento a minha opção nos vários textos neotestamentários que interpretam a passagem de Isaías 42 (e os demais textos do servo de Javé) de forma cristológica (cf. Mt 3.13-17, Mt 12.17-21, At 8.26ss), sem negar o lugar e o momento histórico do texto.
O texto possui o seu Sitz im Leben no contexto do exílio babilônico. Por- tanto é escrito para os judeus no exílio. O texto precisa ser compreendido como um texto profético, cuja palavra é dita a partir de uma situação concreta e que procura mediar consolo e esperança para dentro dessa situação.
Para mim, não há dúvidas de que o texto de Isaías 42.1ss, proposto para servir de texto-base para a prédica diante da comunidade cristã, tem como tema central o tema da justiça. Três vezes a palavra justiça (mischpat) é mencionada no cântico do servo (v. 1-4) e uma vez é mencionada no comentário ao cântico (v. 6).
Mischpat é traduzido por trazer justiça, o direito, julgar ou decidir uma questão, sentenciar, absolver. Portanto tem como pano de fundo o cenário de um fórum. Denota uma ação, por meio da qual uma relação que se encontra em desordem novamente é restabelecida. Essa ação envolve três partes: duas partes, cuja relação não está mais intacta, são julgadas por uma terceira parte, que coloca as partes em conflito sob o shalom, trazendo paz, a salubridade e a salvação (cf. Gn 16.5). Nesse sentido, “julgar” é compreendido como “ajudar”. Essa mediação não é realizada apenas uma vez, mas denota uma ação constante no sentido de preservar o shalom. Daí se estabelece a relação de mischpat com “governar”, “reger”.
Mischpat relaciona-se com a palavra zedaka – justiça. Denota, assim, um negócio justo, uma balança correta. Pode também adquirir o sentido de “religião, verdade” e até pode significar “graça, misericórdia, salvação” (cf. 1Rs 18.28, Is 30.18, Sl 76.10, 82.3s). Especificamente em nosso texto, mischpat representa salvação para os povos, compaixão pelos oprimidos e o agir gracioso de Deus em favor de seu povo Israel.
V. 1 – Este versículo apresenta o servo de Javé. Deus, o criador e mantenedor do mundo (v. 5), escolhe e sustenta o seu servo. A eleição não tem um fim em si mesmo, mas aponta para as nações. Portanto o envio do servo tem um caráter universal. O Deus criador tem nele o seu prazer. Ele é empoderado para a sua missão pelo Espírito de Javé. A expressão “servo” (ébed) possui sentido ambíguo. Pode evocar a imagem de um escravo, de alguém que não possui autoridade. Mas, literalmente, o termo descreve alguém que é designado por um soberano, é alguém da absoluta confiança e age em nome daquele que o enviou. Ele não tem autoridade própria, mas é investido de autoridade por aquele que o envia. A missão do servo é proclamar e estabelecer o direito e a justiça de Deus.
V. 2-3 – Este versículo descreve a forma como o servo desenvolve a sua missão. O servo não se desincumbirá de sua missão fazendo uso da violência, do estardalhaço, da espetacularização. Pelo contrário: o direito e a justiça que o servo proclama são um anúncio de graça e compaixão. A vara (caniço) e a lamparina são imagens que denotam e expressam uma condenação à morte. “Quebrar a vara” sobre alguém ou “apagar a sua luz” significa sentenciar alguém à morte. Portanto o ser humano (as nações) encontra-se como culpado diante do juízo de Deus. A vara já está rachada, e a luz da lamparina já foi apagada, mas, inesperadamente, institui-se um ato de graça, de modo que a vara não é quebrada em definitivo nem o pavio apagado em sua centelha. Portanto a mensagem que o servo proclama indica para um agir gracioso, para uma possibilidade de subsistir diante do juízo de Deus, pois a vara está apenas rachada e o pavio ainda possui uma centelha. No entanto a restauração não acontece por esforço próprio, mas pela intervenção do servo.
O servo de Deus proclama a graça e a compaixão de Deus. Mas não o faz com espetacularização, com manifestação de milagres e prodígios, com autointitulamentos para comprovar sua autoridade. Ele não banca o herói. Não anuncia seus feitos na TV. Ele não pressiona, não constrange, não força a consciência do ser humano. Pelo contrário, ele quer ganhar a confiança do ser humano, de modo que livremente o ser humano corresponda ao amor de Deus. Ele quer envolver-se com as pessoas, de modo que a sua mensagem alcance os corações.
V. 4 – O agir do servo representa esperança para “as ilhas”. Na língua hebraica existe apenas uma palavra para expressar “ilha” e “costa”. A palavra designa tanto o limite entre a terra e a água como expressa o limite “do mundo”. “Lá onde Judas perdeu as botas”, no “fim do mundo”. “Ilhas”, portanto, designam lugares distantes, mas também lugares limítrofes, lugares nos quais se perde o chão firme debaixo dos pés. Não se trata de lugares paradisíacos, lugares exóticos, onde desejaríamos passar as nossas férias. Trata-se de situações limítrofes, de situações de ameaça, de situações extremas.
V. 5-9 – Este segundo bloco apresenta uma espécie de comentário ao cântico do servo de Javé. O Deus que vocaciona o servo é o Deus criador e sustentador da vida no mundo. O Deus criador coloca-se ao lado do servo para que a sua missão alcance êxito, inclusive entre os gentios. Sua missão consiste em abrir os olhos para que uma nova realidade seja discernida, consiste em livrar da opressão e libertar os que habitam na escuridão.
A lógica de Deus inverte a lógica humana. O que é grande aos olhos humanos é pequeno aos olhos de Deus. Nós valorizamos a aparência; Deus valoriza a essência. Para nós, se não estiver postado no facebook, é como se não existisse; mas Deus entra neste mundo pela porta dos fundos. Se não reconhecemos a presença de Deus na criança da manjedoura, então só resta a palha. Essa realidade não pode ser percebida com os olhos naturais, apenas com o olhar da fé. Lutero designava isso como a clareza interna das Escrituras – aquela mediada pelo Espírito Santo e que nos permite ver além, ver o mundo com o olhar de compaixão do Pai.
O Senhor e criador do mundo inverte a lógica humana. Ele envia a este mundo o seu Filho Jesus Cristo. Jesus vem a este mundo como servo. Seu estilo e seu jeito de cumprir a missão que lhe foi designada não é a avenida, não são os holofotes, não é o caminho da fama, da eloquência, do marketing. O profeta Isaías explica-nos por que Deus inverte a lógica humana: somente quem se movimenta silenciosamente, quem anda com cuidado ainda tem a possibilidade de considerar as pessoas que estão a seu lado. Somente assim somos capazes de perceber as pessoas cujo pavio está apenas fumegando e cuja vara quase já se quebrou. Uma sociedade que está em constante agitação, onde tudo gira freneticamente, onde a música em seu volume alto não cessa, não percebe mais aqueles que estão sucumbindo. Pessoas quebram e apagam – e ninguém percebe. Nem mesmo quando decidem dar cabo da própria vida em um ato de terror.
Estamos rodeados de “ilhas”, pessoas que perderam o chão firme debaixo de seus pés. São pessoas que se encontram no limiar da existência. São como uma vara rachada, um pavio que fumega.
Mais ainda: só aquele que se movimenta silenciosamente, que anda com cuidado, que não grita constantemente procurando convencer o outro leva o outro a sério e permite que o outro seja livre para decidir. Quando uma pessoa fala com um alto-falante, ele se impõe. Ele grita e alcança todos, quer queiramos ouvir ou não. Por isso quem quer se fazer ouvir faz uso de mídias que potencializam sua voz. (Ex.: pessoas que fazem protestos, que fazem um discurso etc.) Mas Deus não se impõe como quem usa um alto-falante. Por isso ele não envia seu servo para nascer em Roma, capital do Império Romano, nem em Jerusalém, capital da Judeia. O nascimento de Jesus em Belém não é noticiado por um porta-voz numa coletiva de imprensa. Pelo contrário, o nascimento do servo de Javé não chama a atenção do mundo. Também em seu ministério público, Jesus, quando ensinava, curava e fazia milagres, frequentemente o fazia sem “pompa e circunstância”. Quem quiser reconhecer em Jesus o servo de Javé necessita aquietar-se.
A prédica está prevista para o primeiro domingo após Epifania. A leitura do evangelho remete para o batismo de Jesus. A leitura do evangelho conecta com o texto de Isaías e ajuda-nos na interpretação cristológica do texto, sem esquecer a realidade histórica para a qual originalmente o profeta Isaías proferiu as suas palavras. O tempo de Epifania também lembra a igreja cristã de sua responsabilidade missionária. Toda a terra, todas as nações devem ouvir o evangelho: Jesus – a luz do mundo (v. 6-7). Eu gostaria de propor que a prédica tivesse esse acento na missio Dei.
A prédica poderia ser introduzida com a linha de raciocínio que se encontra na introdução desse texto. Diante do clamor em nosso país por justiça, paz, equidade, qual a resposta cristã? Como respondemos?
O desenvolvimento da prédica poderia apontar para a lei e para o evangelho que se encontram no texto de Isaías: Deus envia seu servo. Ele vem para estabelecer o direito sobre a terra. Ele julga. Se pessoas escapam da justiça dos homens, não escapam da justiça divina. No entanto, o juízo de Deus também atinge a minha existência. Não sou melhor! Também em meu coração habita a iniquidade. Também eu não tenho como prevalecer diante do juízo de Deus. No entanto, inesperadamente é introduzido um ato de graça e de compaixão em meio ao processo penal. Antes que se anuncie a sentença derradeira, antes que a vara se parta de vez e a centelha se apague, o servo de Deus anuncia oportunidade de reconciliação. O que está quebrado pode ser restaurado.
Isso vale, em primeiro lugar, para o nosso relacionamento com Deus. Ele está interrompido por causa dos nossos pecados, que fazem separação entre nós e Deus. Mas o anúncio do evangelho consiste em proclamar o desejo de Deus de reconciliar-se conosco, seu desejo em viver uma relação de amizade conosco. Por causa do evangelho, porque nossos olhos se abriram, porque fomos libertos de nós mesmos, porque agora não vivemos mais para nós mesmos, mas para Cristo, porque fomos arrancados de trevas e escuridão e transportados para a luz: por isso somos testemunhas desse agir de Deus em nossa vida e na vida de nossa comunidade.
A missão da comunidade concretiza-se em palavras e ações. Somos testemunhas do agir de Deus em nossa vida. Mas penso que, como comunidade, somos chamados a dar um testemunho prático e concreto da realidade do reino de Deus entre nós. E não precisamos dar o nosso testemunho de forma espalhafatosa. Mas damos o nosso testemunho na medida em que, como comunidade, vivemos de forma alternativa, como uma comunidade de contraste. Somos uma comunidade em que, em meio às muitas falas que querem nossa atenção, aprendemos a distinguir a voz de Cristo. Ouvimos o seu evangelho, somos encorajados e fortalecidos em nossa fé. Em meio às provações e dificuldades em que vivemos, não desanimamos nem resignamos, mas somos agentes da esperança. A lógica de Deus inverte a lógica deste mundo. Há algo mais poderoso do que o anúncio do evangelho? Há testemunho mais contundente do que aquele que expressamos concretamente à medida que, em atos concretos, percebemos as pessoas que se encontram ao nosso lado, percebemos aqueles que estão prestes a sucumbir e amamos as pessoas – especialmente aquelas que não merecem nosso amor?
Um pai com seus 70 anos de idade visita o filho e repara sobre a mesa um buquê de flores. Como é o mês de maio, o pai imagina que o filho presenteou a esposa pelo dia das mães. Mas o filho responde que as flores são um presente para a esposa por causa do aniversário de casamento. Diante desse fato, o pai responde: Meu filho, você nem postou no face o seu aniversário de casamento! (Moral da história: o que não é compartilhado no face não existe. Valores invertidos: o virtual é mais real do que a vida real.)
Exemplos concretos de cuidado na comunidade, motivados pelo evangelho, poderiam ilustrar concretamente situações limítrofes e o alcance do evangelho.
Deus,
Antes mesmo de te procurarmos, tu te revelaste a nós.
Antes de invocarmos o teu nome, tu nos chamaste pelo nosso nome. Antes mesmo de nos achegarmos a ti, tu nos envolves com a tua luz.
Concede-nos
olhos abertos que reconhecem a tua glória,
ouvidos abertos que escutam e acolhem a tua palavra, corações abertos que confiam e esperam em ti.
Amém.
KIWITZ, René. A floresta e seus leões. In: Revista Ultimato. Viçosa: Ultimato, ano XLIX, nº 360, 2016.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).