Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Lucas 1.26-38
Leituras: 2 Samuel 7.1-11,16 e Romanos 16.25-27
Autor: Evandro Meurer
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 21/12/2014
Com certeza, o momento conjuntural brasileiro e o ministerial/pastoral que vivo enquanto escrevo este auxílio homilético (abril/maio de 2014) influenciou meu olhar sobre os três textos apontados como leitura e reflexão para o tempo de Advento (novembro/dezembro de 2014). Na busca por encontrar uma relação dos textos entre si, com vistas a uma amarração temática para a prédica e o culto, as eleições majoritárias no país e as manifestações populares contra os investimentos absurdamente grandes na Copa do Mundo devem ter me levado à pergunta pelo continuísmo e/ou continuidade dos poderes e sistemas. Mas também o fato de eu viver meus primeiros 100 dias de atividade ministerial numa área missionária na região ao sul da Bahia, sem presença contínua da fé luterana pela IECLB e, portanto, sem muitos “vícios” continuístas.
A doxologia final do livro de Romanos (cap. 16) evoca o Deus que “pode conservar” os cristãos de Roma na “mensagem de Jesus Cristo” anunciada por Paulo. Uma “verdade secreta, que nunca foi revelada no passado” (v. 25), foi revelada “agora” pela ação de Deus, “se tornou conhecida em todas as nações”, com o objetivo de que, no futuro, “todos creiam e obedeçam” (v. 26).
A mensagem de Deus a Davi, mediada por Natã (2Sm 7), reafirma a promessa de continuidade do culto (templo) e da descendência davídica (reinado) em um lugar onde o povo de Israel possa morar e viver em paz (v. 10). Um de seus filhos, seu sucessor, é que construirá a liberdade, o templo e uma descendência real que “nunca terminará” (v. 16).
A gravidez de uma mulher idosa (já em seu sexto mês de gestação – v. 26) e o anúncio do nascimento de Jesus por uma mulher virgem (Lc 1.26ss) são (re) afirmações de que “para Deus nada é impossível”, especialmente quando a questão é a continuidade do reinado de Davi (v. 32) e a perpetuidade da descendência de Jacó (v. 33)
A partir de tal olhar e “contágio” na (re)leitura dos textos, quero convidá-los a aproveitar este tempo natalino para rever nossas tradições, nossa prepotência e nossa arrogância exclusivista, seja ela pessoal, religiosa ou política; animá–los a buscar distinguir o que, disso tudo, é continuísmo e o que vem a ser desejo ardente de continuidade da fé, da esperança e do amor, o que precisa passar por rupturas e o que deverá seguir “de geração em geração” (Sl 90.1).
Lucas, em sua investigação cuidadosa dos fatos evangélicos (1.3), não deixa escapar detalhes da anunciação do nascimento de Jesus. Destaca que “a abençoada” (de nome Maria) será “uma virgem que tinha casamento contratado com um homem chamado José, descendente do rei Davi (!)” (v. 27).
Na primeira parte de seu escrito (capítulos 1 e 2), após as palavras de apresentação no prólogo (1.1-4), dá detalhes sobre a concepção tardia de João Batista através de um casal já idoso (Zacarias e Isabel), que se sentia desprezado por não poder colaborar na descendência do povo de Israel (1.5-25). Lucas, como historiador acurado, destaca então a genealogia adâmica, abraâmica e davídica de Jesus.
Além disso, o evangelista faz questão de dar pormenores:
– do anúncio a Maria (nosso texto em estudo e proposto para pregação); do encontro das duas parentas grávidas – colaboradoras em potencial para dar sequência à posteridade (1.39-45);
– do louvor e reconhecimento de Maria (1.47-56) e de Zacarias (1.57-80) pela continuidade da descendência de Abraão (1.55) e de Davi (1.69);
– e do nascimento e da infância de Jesus (cap. 2).
Lucas apresenta as informações sobre os antepassados de Jesus não após a narrativa do nascimento (como em Mateus 1), mas logo após o seu batismo e do detalhe sobre o início de seu ministério aos 30 anos de idade (3.23ss). Assim ele dá destaque à sua vocação e ascendência como ilho de Deus (1.32 e 3.38).
Nossa narrativa bíblica, já trabalhada sete vezes em auxílios homiléticos anteriores, contém detalhes que recebem agora menção especial com vistas ao enfoque que propomos.
V. 26 – As duas informações, a de que o envio do anjo Gabriel se dá no sexto mês de gravidez de Isabel e a de que sua missão se dará na cidade de Nazaré, têm propósitos semelhantes. A gravidez de Isabel está para Zacarias assim como o nascimento do Messias está para Nazaré. Duas realidades praticamente impossíveis de se concretizar. Seguindo a racionalidade lógica, Zacarias questiona: “Como é que eu vou saber que isso é verdade? Estou muito velho, e a minha mulher também” (1.18). Conforme o imaginário e o dito popular: “Será que pode sair alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1.46).
V. 27 – A informação de que José era um galho da árvore genealógica dos descendentes de Davi é um diferencial importante que deseja sublinhar a messianidade davídica e a origem da linhagem real de Jesus.
V. 28 – A exclamação do anjo a Maria – “Você é muito abençoada”, “favorecida”, “destacada”, faz alusão não só à sua escolha como “invólucro” do Filho de Deus, mas como serviçal da continuidade da descendência davídica. O fato de Deus estar com ela é motivo de alegria.
V. 29 – Contudo observamos na narração que a reação de Maria é de perturbação, dúvida, medo, perplexidade: uma, pela situação de, como mulher, estar recebendo aquela revelação e visita divinas; e outra, pela forma com que ela está sendo preparada por essa saudação, para receber uma mensagem e tarefa especial: continuar o legado davídico.
V. 30 – O anjo percebeu sua reação e a animou, informando que o motivo que o levava a estar ali era para uma boa causa, uma boa notícia, uma “graça”. Portanto não havia motivos para temor ou medo. Ser instrumento de Deus na continuidade de sua missão de amor para com o seu povo era um presente.
V. 31-33 – Os detalhes da tarefa são apresentados. Dela nascerá um rei – com nome e sobrenome. Ele será herdeiro do trono de Davi. “Seu reinado não terá fim”; “O Reino dele nunca se acabará.”
V. 34 – Surpreendentemente, Maria não se surpreende com a informação de que será portadora/gestante de um Rei, mas sim com o inusitado da gravidez (ginoskein). “Como será isso?”. Isso não é possível?
V. 35-37 – Os detalhes da narração testemunhal (passadas pela “caneta” de um historiador, médico, cristão gentílico) recebem força e significado ainda maiores: uma concepção santa para o nascimento de um ente santo, superando todos os impossíveis já vividos e testemunhados pelo povo de Israel em sua caminhada com esse Deus dos possíveis: desde as experiências no deserto, onde as “sombras” de Deus acompanhavam o povo, até a gravidez de um casal já idoso.
V. 38 – Uma serviçal! Esta é a postura de Maria: humilde, disposta e disponível para cumprir o que fora dito, anunciado, revelado e verbalizado (“E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” – Jo 1.14).
Conforme definição do dicionário, continuísmo significa: “1. Manutenção do poder político nas mãos das mesmas pessoas ou do mesmo grupo. 2. P. ext. manutenção, continuação ou continuidade de qualquer situação. 3. Ação, estratégia ou manobra para manter a situação política ou econômica” (http://aulete.uol. com.br/nossoaulete/continuismo).
Continuidade, por sua vez, é: “1. Qualidade ou condição do que é contínuo. 2. Prosseguimento ou persistência de um fato, acontecimento ou contexto (continuidade cultural). 3. Ligação não interrompida das partes de um todo” (http://aulete.uol.com.br/nossoaulete/continuidade).
Gostaria de motivá-los, colega pregador e pregadora, a primeiramente deixar o texto bíblico, com o enfoque que vislumbrei, perpassar nossas entranhas de servos, desse Deus perpétuo de graça e amor inesgotáveis. Permitamos nos questionar: nossa vocação ministerial está a serviço do quê? De um continuísmo nosso no campo ministerial por meses ou anos? De um continuísmo eclesiológico de nossa IECLB no Brasil, que já ultrapassou os 190 anos? De um continuísmo da tradição luterana, que já se aproxima dos 500 anos desde seu nascimento? Advento também é oportunidade de permitir que advenham a nós e à comunidade que nos ouve novos desafios. Desafios esses que ultrapassem o continuísmo e a perpetuação das estruturas históricas que nos cercam, desafios que nos conduzam a rupturas necessárias e urgentes.
De outra forma, quem sabe, na pregação, possamos abordar um dos enfoques abaixo.
Pessoal: A narrativa do advento de um anjo a Maria deve ter sido uma experiência pessoal com certeza muito marcante em sua vida. Ela também deve ter sentido por diversas vezes o Filho de Deus mexer-se dentro de sua barriga, como aconteceu com Isabel (1.44). Deve ter sido uma emoção. Sentir-se uma “abençoada” a fez cantar e render louvor a Deus com muita alegria (1.47-55). Isso poderia levá-la a uma atitude de soberba e orgulho por ser portadora de tão nobre missão. Contudo sua atitude foi posicionar-se como “humilde serva” (1.48). Ela poderia “ter se achada a tal” por dar sequência ao poder real da dinastia de Davi. Continuísmo da soberania de um povo, com uma história tão sofrida. Maria, porém, considerou um privilégio servir a Deus, mesmo em face de todo o sofrimento que enfrentaria. Sua disposição de serva sobressaiu. Sua atitude serviçal deu continuidade a um projeto mais amplo de amor de Deus pelo mundo (Jo 3.16).
“A visitação de Deus, com certeza, bagunçaria a vida de Maria, iria lançá-la em um mundo de muita dor e de muito sofrimento. Há alguma coisa estranha com o anúncio do anjo. É que a palavra alegria não combina com o futuro que já sabemos que Maria teria. … Alegre-se! Abençoada… (v. 28). Alegre-se! Seu casamento será perturbado e seu marido será obrigado a enfrentar o constrangimento de uma gravidez mal explicada. Alegre-se! Você ouvirá o choro das mães de Belém, lamentando a morte de seus filhos por uma perseguição que visava ao menino que você vai gerar. Alegre-se! Você será obrigada a viver no Egito, exilada dos que querem matar seu ilho. Alegre-se! Você verá o seu ilho sofrer e apanhar sob o chicote dos soldados romanos. Alegre-se! Você contemplará seu filho morrendo a mais terrível de todas as mortes” (LUZ, p. 1).
Eclesial: Em alguns anos, já teremos passado os festejos dos 500 anos da Reforma. É bom nos perguntar: O que realmente intencionamos com a comemoração dessa data? Por que comemorar? E, afinal, quem deveria comemorar a Reforma? Ou talvez nem se deveria comemorar a Reforma, pois ela na verdade denuncia a nossa imperfeição e incapacidade cristã de viver unidos sob a única e verdadeira palavra de Deus. Independente da resposta que mais se adéqua à nossa compreensão dos fatos, o mais importante é o resgate da redescoberta do evangelho que aconteceu naquele momento da história da igreja cristã: que a salvação é graça de Deus. Essa foi a ruptura necessária, diante de um continuísmo, a descoberta da grande verdade bíblica, a resposta para todas as perguntas angustiantes: Justificados pela fé, temos paz com Deus, por intermédio de Jesus Cristo (Rm 5.1). Essa (re)descoberta rompeu correntes e libertou todos da falsa notícia de que a salvação seria alcançada por obra($) humana($). Essa é a mensagem de Advento: Deus já realizou a grande obra da salvação através de seu Filho Jesus. Qualquer ideia de continuísmos confessionais que se sobreponham à continuidade da oferta salvadora de Deus em Cristo deve ser rompida, reformada, sempre. A grande e importante ruptura deve ser anunciada: O NASCIMENTO DO DEUS-MENINO SALVADOR.
O Deus onipotente a terra visitou:
Criancinha indigente e servo se tornou.
O pecador ansiado não há de perecer
Se, crente e confiado, a criança receber.
As trevas já se rendem. Eis o que aconteceu:
Os laços que vos prendem o próprio Deus rompeu!
De abismos insondáveis, de desespero e dor,
de angústias incontáveis remiu-vos o Senhor.
(Joh. Petzold, 1939 – HPD 3)
Atuo num projeto missionário ainda sem muitos “vícios” continuístas ou de continuidade da tradição e/ou vivência da fé cristã no formato teológico e litúrgico de confissão evangélico-luterana. O que existe é a consciência da necessidade de ruptura com os “esquemas mercantilistas e de prosperidade” das igrejas evangélicas “de esquina”, também existentes aqui em grande número. Há uma sincera busca “geracionista” do “somente Cristo, somente a Escritura, somente a graça e somente a fé”. Quem sabe, pregar/refletir sobre “Advento e Missão” seja uma novidade para você comunidade.
Gostaria de incentivar você mesmo ou em conjunto com um grupo de reflexão (equipe litúrgica?) a buscar exemplos do momento conjuntural brasileiro atual bem como do seu contexto local para exemplificar e distinguir o que vem a ser “continuísmo” e “continuidade”. Analisando os poderes políticos, religiosos e econômicos de seu tempo, você e seu grupo de reflexão encontrarão, “sem dar nomes aos bois”, ilustrações que distingam um do outro. A partir disso construa uma pregação sobre o Advento de Deus em Cristo sob a ótica da perpetuação do reino de amor que irrompeu na manjedoura. Um reino que veio quebrar com todos os poderes continuístas de injustiça, pecado e mal deste mundo.
Creio que o Salmo 90 mostra-se como “o” subsídio litúrgico que ratifica o abstract de nossa exegese e mensagem para este último domingo de Advento. Este é o “GERACIONISMO”, que creio ser a máxima da vivência cristã. Viver, testemunhar e cantar:
“Senhor, tu tens sido o nosso refúgio de geração em geração.
Antes que os montes nascessem e se formassem a terra e o mundo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”
(HPD 213)
Tirar um tempo para dar uma folhada nos hinários e fazer um estudo dos hinos de Advento que favoreçam a reflexão e conduzam à mensagem preparada. Isso sempre é uma boa prática. Fazendo isso em nossos HPDs, encontrei a seguinte oração:
“Deus, abre-nos a porta eterna do Reino de justiça e amor! Só onde a tua paz governa, cessam angústia, medo e dor” (HPD 6, estrofe 3)
E também o convite (desafio):
“Vós, fortes e orgulhosos, o Rei vinde aceitar, se desejais, ditosos, por seu caminho andar.
Segui os passos seus; se não, se o desprezardes e não vos humilhardes, rejeitareis a Deus” (HPD 7, estrofe 3)
Uma experiência muito saudável para as comunidades que têm Culto Infantil/Escola Dominical paralelamente ao culto comunitário é o/a pastor/pastora propor às/aos orientadoras/es o uso da mesma narração bíblica do culto comunitário no Culto Infantil/Escola Dominical (a narrativa da anunciação à Maria). No final do culto, abrir um espaço para que as crianças compartilhem suas descobertas com a comunidade.
KUNERT, Augusto Ernesto. Lucas 1.26-38. In: Proclamar Libertação XIX. Sinodal: São Leopoldo, 1992.
LUZ, João Ferreira Leite. Aprendendo virtudes com Maria mãe de Jesus. Lucas 1.26-38. Disponível em: . Acesso em: 20.04.2014.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).