Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Lamentações de Jeremias 3.22-33
Leituras: Marcos 5.21-43 e 2 Coríntios 8.7-15
Autor: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 5º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/06/2015
O Livro de Lamentações de Jeremias é um texto anônimo. Não se sabe quem o escreveu, embora se presuma que tenha sido Jeremias. Em 2 Crônicas, afirma-se que “Jeremias compôs uma lamentação sobre Josias…” (35.25). Na Bíblia Hebraica, o livro não tem autor. O título é algo como “Ah! como!” É uma expressão de lamento e dor. Foi a Septuaginta que deu o título de “Lamentos”, e a Vulgata acrescentou: “São as Lamentações do profeta Jeremias”.
O texto é uma poesia melancólica que não era incomum no Oriente Próximo em tempos antigos. Os sumerianos, ao que parece, foram os primeiros a escrever esse tipo de obra sombria para lembrar a queda de algumas de suas cidades nas mãos de povos invasores. Um dos mais famosos lamentos é o que descreve a destruição de Ur, terra dos caldeus. Aqui nesse texto, o autor de Lamentações chora a destruição de Jerusalém e a desolação de Judá após 587 a.C. Os versos descrevem o sofrimento dos judeus durante e após o cerco de Jerusalém e uma confissão representativa do pecado da nação.
As Lamentações constituem-se de cinco lamentos, distribuídos nos cinco capítulos do texto. São respostas de um narrador autônomo para chorar a situação de catástrofe que se abateu sobre Jerusalém após o ano de 586 a.C., quando Nabucodonosor invadiu Jerusalém e levou grande parte de sua população cativa. Foi escrita em forma de acróstico, o que significa que são textos para leitura, mais destinada ao olho do que ao ouvido. Isso significa que não foram produzidos para ser empregados em liturgias. No entanto, estão presentes desde muito tempo nas celebrações tanto judaicas como cristãs.
Carecemos de indícios externos referentes à época do surgimento desse texto. Pode-se tentar situar cronologicamente esse cântico apenas no contexto da história da teologia pós-exílica. Os traumas de 586 a.C. jamais cicatrizaram completamente. A profecia bíblica do Antigo Testamento procura manter viva, por meio de seus profetas exílicos e pós-exílicos, a chama daqueles acontecimentos que, para a maioria dos historiadores modernos, não passa de uma nota de rodapé. Muitos outros acontecimentos têm precedência sobre o sofrimento daquele povo semita diante de um inimigo muitas vezes mais poderoso.
O relato não tem a ver com lamúria e autocomiseração. É antes um apelo agudo a Deus para que veja essa miséria que ele causa com sua ausência em sua criação, a miséria do santuário, a miséria dos poderosos e das elites espirituais. Apesar de se sentirem desprezados, abandonados e humilhados, porque Deus esqueceu-se de seu povo, o livro manifesta a presença de algo espantoso no meio dessa lamentação: a culpa é confessada. Sob a pressão do sofrimento e da dor, a lamentação solidifica-se. As sentenças não soam como sabedoria de vida retirada dos ensinamentos de algum sábio. Antes, elas formam-se como os diamantes que nascem pressionados por imensos pesos. Além do mais, o autor tenta fazer uma teodiceia: “Ele seja justo!”. Ao mesmo tempo, tenta-se compreender a ação de Deus: “Pois Javé não rejeitará para sempre; pois, ainda que entristeça a alguém, usará de compaixão segundo a grandeza das suas misericórdias” (31-32).
Ainda que o terceiro cântico (3.1-66) comece com uma enxurrada de acusações extremamente amargas contra aquele que permitiu tamanha calamidade, o autor volta-se para si próprio e anuncia declarações sapienciais de confiança. O autor celebra o auxílio e a misericórdia divina. O Senhor é bom por três vezes (v. 25-27), e as palavras de negação dão lugar ao “sim” de Deus para com o seu povo (31-33). Por isso ele faz uma convocação coletiva, uma convocação para o autoexame (40-42a). Contudo suas descobertas da ação de Deus não permitem que ele tenha controle sobre suas experiências. Ele só sabe que não se pode calar diante da calamidade. Seu alfabeto ainda não chegou ao fim. Por isso, após falar das misericórdias do Senhor, ele retorna ao lamento: “Tu não perdoaste” (42s). E por isso continua interpelando Javé.
As condições coletivas permanecem no primeiro plano até o v. 51, em que o olhar volta-se novamente para a situação de perseguição pessoal e em que, no estilo da lamentação individual, as afirmações de experiências de libertação, confiança, lamentos pelos inimigos e súplicas finalmente conduzem à certeza de que Deus retribuirá aos inimigos (64-66).
Em nossa perícope, o autor destaca a misericórdia e a compaixão que são traduzidas também por misericórdia. Aqui o autor quer destacar o cuidado de Deus, sua fidelidade (23), bondade (25) e, como resultado disso, a salvação (26). O autor sente como Jó, que “(…) me matará, já não tenho esperança; contudo, defenderei o meu procedimento” (Jó 13.15). Apresenta uma magnífica expressão de fé na misericórdia infalível de Deus e por isso olha para o futuro com novas esperanças. A misericórdia de Deus que se evidencia no relato é expressa na lealdade do Senhor à aliança firmada com seu povo. Por isso a constância imutável de Deus forma uma base firme para as tentativas de esperança no futuro. Essas misericórdias são a causa de não sermos consumidos. O texto massorético diz “não pereceremos” como resultado do amor de Deus a seu povo. Algumas outras versões, como a Imprensa Bíblica Brasileira, traduz como “a benignidade do Senhor jamais acaba”. A Bíblia de Jerusalém diz: “Os favores de Iahweh não terminaram”.
O Senhor é a porção de Judá. Portanto qualquer esperança de restauração tem de estar fundada firmemente nele (26). A referência a carregar o jugo (27) reflete o ensino de provérbios hebraicos que falam que as cargas podem ser carrega-das melhor na mocidade, quando ainda não falta o vigor e quando a personalidade tem de ser disciplinada mais do que nos anos de mais idade.
Pôr a boca no pó era uma expressão tipicamente oriental (29), como forma de demonstrar submissão completa a Deus. Aqui é onde o reconhecimento pela culpa assume sua forma mais explícita. O autor coloca-se ao lado do povo na súplica pelas misericórdias divinas. É ato de pura contrição, de reconhecimento do erro e das suas consequências no destino do povo. Ao se colocar na disposição de oferecer a face àquele que o fere (30), o cativo está se colocando na posição de entrega completa. Um fato concreto é que o governante do povo (Joaquim) tinha sido batido no rosto pelo conquistador, cumprindo a predição de Miqueias (5.1).
Jerusalém está submissa à vontade de Deus em face a seus sofrimentos (Is 50.6). Essa atitude foi exemplificada em sua forma mais elevada por Jesus Cristo antes de ser crucificado (Mt 26.76; Lc 22.64; Jo 18.22; 19.3), quando uma vítima inocente sofreu pelo pecado humano em obediência à vontade de Deus.
Por causa do caráter restaurativo da misericórdia de Deus (Sl 23.3), os sofrimentos pelos quais a nação passa chegarão a seu fim, porque os sofrimentos não são o propósito definitivo de Deus para nenhum de nós. Não é de bom grado (33) que o Pai permita a disciplina rigorosa a seus filhos. A disciplina faz parte do desenvolvimento espiritual (Hb 12.6).
Deus permite o sofrimento como consequência dos males causados por nós mesmos. Só se pode atribuir o sofrimento a Deus nesse sentido restaurativo e no sentido de que é a base de qualquer tipo de existência. Entretanto, a calamidade individual é fruto de uma série de causas que se encontram no próprio ser humano.
Lamentações, capítulo três, pertencem às cercanias dos poemas de personagens que desempenham um papel ou carregam um problema, como as chama- das confissões de Jeremias, o livro de Jó ou os textos do Servo Sofredor no livro dos Salmos.
O texto sugere que, pela grande misericórdia de Deus conosco, temos a certeza de não ser consumidos. As suas misericórdias não acabam. Antes, elas renovam-se a cada manhã. O autor afirma que qualquer esperança de restauração tem que estar assentada no Senhor, que é bom para aqueles que desejam conhecê–lo. Ele é bom para o simples, para aquele que tem uma fé singela. Ele é bom em exercício de paciência. A versão de Almeida Revista e Corrigida fala das coisas que devem ser consideradas boas (28): assentar-se solitário e ficar em silêncio. O teólogo peruano Gustavo Gutierrez afirma que quem pretende fazer um discurso sobre Deus precisa primeiro silenciar diante dele.
Não temos que ficar chorando pela tragédia passada por tempos sem fim. Cada tristeza tem seu tempo de desamparo e solidão. O povo hebreu viu a captura e destruição de sua cidade. Viu a desolação praticada pelos exércitos de Nabucodonosor. A cidade ficou como um monturo; seu rei Zedequias (Jeconias) viu o assassinato de seus filhos e de seus nobres. Depois teve seus olhos vazados (Jr 52.10-11) e foi levado cativo para a Babilônia, onde viveu seus dias restantes na prisão. Nunca mais conheceu a liberdade. O que restou do cerco era apenas desolação. Podia-se dizer como na época em que a arca foi levada pelos filisteus (1Sm 4.22). O grito de dor do povo oprimido sob o jugo dos caldeus só é comparável ao dia em que Israel fugiu diante dos filisteus e a arca da aliança foi roubada. Naquele dia, o velho profeta Eli morreu de tristeza. Sua nora, esposa de Fineias, deu à luz um menino, o qual se chamou Icabode, que significa “foi-se a glória de Israel”.
Naquele caso, como agora, a derrota aconteceu pelo mesmo erro: o pecado da nação. Na derrota diante dos filisteus, a arca estava sendo usada como um fetiche. Agora, a destruição vinha pela idolatria. A fé em Deus estava sendo colocada em segundo plano. A derrota foi tão grande, que Jeremias a menciona em seu livro (Jr 7.23): “Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo. Andai em todo o caminho que eu vos ordeno, para que vos vá bem”.
Desde os dias do Egito, Deus enviou profetas, mensageiros da esperança, para orientação do povo, mas esse não lhe deu ouvidos. A surdez da nação era tão notória, que dentre os povos se dizia: “Esta é a nação que não atende à voz do Senhor, seu Deus…” (Jr 7.28)
Quando o pecado da desobediência domina, não há perdão. É preciso extirpar o mal para que a ferida sare. Um membro gangrenado precisa ser retirado para sarar o corpo. Mas Israel preferiu ficar com sua gangrena. E Deus fala ao profeta para que não interceda pelo povo nem levante a sua oração, porque ele não ouvirá (Jr 7.16).
No entanto, a nação não perdeu a esperança na ação misericordiosa de Javé. Jeremias ficou em Jerusalém entre o povo pobre da terra, ali deixado por sua inutilidade para os caldeus. Esses levaram os principais elementos da corte, os melhores profissionais de cada ofício. A elite judaica foi deportada. Nabucodonosor precisava de operários qualificados e saudáveis para construir os seus palácios.
O povo iludiu-se com falsos discursos. Primeiro, julgou que a proximidade do templo era sinal de segurança para ele. Ele pensava que nada poderia acontecer ao templo porque Deus havia prometido a Davi que sua dinastia seria eterna (2Sm 7.12s) e tinha escolhido Sião para sua habitação (Sl 132.13). Portanto nada poderia acontecer ao templo por ser morada de Deus. Depois iludiram-se com o discurso de profetas que tentavam animar o povo com falsas profecias. Um deles era Hananias (Jr 28). Esse pregava um colapso rápido do poderio babilônico. Jeremias sente que precisa denunciar a falsidade dessa mensagem e escreve uma carta belíssima, que está no capítulo 29 de seu livro. A carta é de 594 a.C. O recado era simples: levem uma vida simples e normal e não se deixem levar pelo discurso dos que pregam fantasias. Façam planos para viver muitos anos.
No final, a palavra de Jeremias cumpriu-se, e aquele povo, exilado, voltaria como nação, mas em sua descendência. Os que foram levados não voltariam, talvez com alguma exceção.
Esperar na vontade de Deus era tão importante na antiga aliança (Sl 37.9; Os 12.6; Sf 3.8) quanto é na nova (Rm 8.25; Gl 5.5). O cristão tem uma esperança viva porque confia em um Deus vivo, cujas promessas são tão verdadeiras quanto seus juízos.
O texto ensina que as misericórdias do Senhor estão presentes em cada instante de nossas vidas. A cada novo dia, uma chama de esperança acende, porque servimos a um Deus que se faz presente no cotidiano de seu povo. Por isso não podemos desanimar. Somos o seu povo e como tal estamos debaixo da sua eterna proteção.
Várias imagens podem ser preparadas para este momento. Primeiro a imagem da seca, da terra desolada, do infortúnio, do desespero humano. Pode-se usar as imagens desenvolvidas pelos textos de Graciliano Ramos, Vidas Secas, e de Raquel de Queiroz, O Quinze. Essas obras tratam da vida desgraçada de retirantes do Nordeste, gente que se torna nômade por causa da seca que assola o sertão. Famílias pobres, como a de Fabiano e Sinhá Vitória, que, junto com seus dois filhos, a cachorra Baleia e um papagaio, caminha em busca de água e de comida, um lugar para ficar. O livro de Raquel de Queiroz retrata a seca de 1915 no Ceará. A terra estava desolada, com riachos secos, roçados sem milho e feijão, onde o que restava para dar de comer a meninos e meninas era o mingau de milho, a farinha de mandioca, o cuscuz. Só quem passou por tamanha agonia é que sabe o que significa essa desolação.
Israel sentiu-se assim depois da destruição causada pelos exércitos da Babilônia. A terra ficou desolada. Os que ficaram passaram a viver sob o impacto da ruína e dos sofrimentos em decorrência da invasão. Segundo Milton Schwantes (Sofrimento e Esperança no Exílio), após 587 a. C., celebrava-se em Jerusalém, junto às ruínas, um rito de luto e arrependimento. Essas cerimônias iniciaram logo depois da destruição. Não podia haver alegria diante da tragédia.
Quanto aos exilados, o clima era o mesmo. Tristeza, amargura e desespero longe da terra. Por isso o Salmo 137 é um canto de lamento. Os exilados assentaram-se às margens dos rios da Babilônia e ali choraram. As harpas foram penduradas, e o sorriso e o canto desapareceram dos lábios dos cativos.
Mas agora outra imagem apresenta-se à luz de Lamentações de Jeremias, capítulo três: Deus não esquece seu povo. Então, a sequidão deve ser substituída pelo verde. Se quiser usar imagens, podem entrar na sala, no espaço da celebração, imagens da cor verde, representando o retorno à vida, a esperança, o cuidado do Deus amoroso que nos preserva e guarda.
As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim. (Lm 3.22)
Enganaram-se certa vez os salmistas de Israel quando se negaram a entoar a canção do Senhor em terra estranha (Sl 137). Perderam a oportunidade de falar daquele que é o Senhor de toda a terra, absoluto, único, eterno. Reconhecemos que também nós, muitas vezes, nos negamos a testemunhar esse Deus maravilhoso que está presente em nossas vidas, todos os dias, mesmo naqueles que achamos ruins. Reconhecemos que erramos, que falhamos, que nos omitimos. Perdoa os nossos pecados e por meio do Espírito Santo ensina-nos a reconhecer a tua bondade e misericórdia.
Senhor da vida, dá-nos a capacidade de crer e experimentar a ressurreição no cotidiano de nossas vidas. Dá-nos a alegria do salmista, que em sua conversão a Javé expressa toda a sua alegria por esse dom maravilhoso de uma nova vida. Dá-nos que creiamos com plena confiança na ressurreição de Jesus Cristo, que é a garantia da nossa própria ressurreição. Tu tens o poder sobre todas as coisas, inclusive o poder sobre a morte. Que a nossa confissão de fé expresse essa certeza e nos dê a confiança para acreditar em um mundo cheio da tua graça e de todo o teu amor! Amém!
HARRISON, R. K. Jeremias e Lamentações; introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1984.
ZENGER, Erich et al. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).