Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 7.1-8, 14-15, 21-23
Leituras: Deuteronômio 4.1-2, 6-9 e Tiago 1.17-27
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/08/2015
Há alguns anos, depois dos surtos da gripe H1N1, a recomendação de lavar as mãos – e não só com água e sabão, mas com soluções de álcool gel – saiu dos hospitais e popularizou-se como prática antisséptica nos espaços públicos e repartições. O bom propósito por trás dessa prática é evitar que a gripe se dissemine e evolua para uma epidemia. Mas por que Jesus reage logo com um arrazoado teológico em cima de uma simples pergunta pela higiene cotidiana dos seus discípulos?
Jesus conhecia a tática de seus contendores. Em muitas controvérsias, eles “miravam na igreja, mas queriam mesmo era acertar o padre”. Atrás dessa perguntinha aparentemente inocente esconde-se todo um sistema de opressão dos pobres, o sistema de pureza e impureza que impunha rituais e também rendia algum dinheiro para o templo. E, nesse caso, cabia entrar com uma reflexão teológica sobre o que é fundamental e o que é secundário.
A leitura de Deuteronômio lembra que é a palavra de Deus que faz viver e não aquilo que ao redor dela é acrescentado ou diminuído por sistemas humanos. Honrar os mandamentos de Deus e cumpri-los é a sabedoria de um povo, e isso será visto e admirado como inteligência por outros povos. A leitura de Tiago enfatiza que toda boa dádiva e palavra da verdade vêm do alto, do Pai das luzes. Recomenda que estejamos prontos para ouvir e acolher a palavra poderosa que Deus implanta em nós e tardios para falar, refrear a língua e irar-se. Ao ouvir segue o praticar da Palavra, sem o que a religião é vã e a fé é morta.
Jesus e seus discípulos estão em Genesaré na Galileia. Fariseus e escribas vieram de Jerusalém, a pelo menos 100 km de distância. Não se poriam na estrada por uma mera questiúncula sobre higiene. Marcos traz esse texto no contexto de várias curas, da ressurreição da ilha de Jairo, de rejeições a Jesus pelos gerasenos e nazarenos e da morte de João Batista. Além disso, Jesus ainda anda sobre as águas e faz o milagre da multiplicação dos pães. Para os poderes constituídos na política e na religião, tudo isso está fugindo ao controle. Parece que tudo o que até ali era sólido para os guardiões da política e da religião está se desmanchando no ar. O clima político-religioso está em polvorosa.
O verbo que representa o perguntar dos fariseus e escribas é eperōtōsin. Significa interpelar, cercar com perguntas, contra-argumentar. Esse verbo informa que de fato não foi uma perguntinha à toa pela higiene cotidiana, mas uma controvérsia mais ampla.
Os verbos utilizados para lavar, limpar, purificar indicam que Jesus desnuda a sublimação religiosa de um bom costume higiênico doméstico. Parece que os fariseus lavam as mãos por causa do ritual religioso dentro do sistema de pureza e impureza e nem mais tanto por razões higiênicas. Para cumprir o rito de modo correto, havia a necessidade de certa infraestrutura, que nem sempre estava disponível para itinerantes e para a maioria do povo na Galileia. Pela observação de Jesus, a lavagem das mãos não consegue evitar a impureza fundamental que vem de dentro e não de fora.
Para falar do ventre, o texto usa o termo koilia, que significa genericamente cavidade abdominal, mas refere-se primordialmente ao aparelho digestivo. Jesus argumenta de modo plástico. Tudo o que entra nele passa pelo corpo e sai do corpo, sem contaminá-lo, pois não entra no coração. O aparelho digestivo é um sistema fechado, não há ligação entre o ventre e o coração. No coração é que se processam pensamentos, tomam-se decisões, articulam-se ações que prejudicam a saúde comunitária. Os rituais de pureza e impureza não impedem a contaminação que verdadeiramente conta. Não dá para saber se Jesus também sugeria uma analogia entre o que sai do coração e o que sai do ventre: os impropérios que saem do coração são como fezes e urina. Essas, sim, são capazes de contaminar outras pessoas e todo o ambiente; por isso vão para lugar escuso, uma fossa.
Em relação à saúde corporal, o argumento de Jesus não é sustentável, pelo menos dentro do paradigma da medicina convencional. Doenças são transmitidas através dos orifícios do nosso corpo: através de ingestão, respiração e contato contraímos intoxicações, hepatite, gripes, doenças venéreas… Comer maionese estragada com salmonelas dá uma intoxicação danada! Consequências semelhantes pode-se ter comendo com mãos contaminadas. Os indígenas Kulina têm alguma dificuldade em aceitar que a diarreia de suas crianças vem de beber a água contaminada do rio, pois têm outro paradigma cultural de interpretação para saúde e doença.
O saber científico atual afirma existir, sim, comunicação do trato intestinal com o restante do corpo, tanto para absorver e disponibilizar elementos de nutrição como também para excretar toxinas e impurezas acumuladas no restante do corpo (função especialmente ativada em tempos de jejum). A contaminação que conta para Jesus, entretanto, não é essa da saúde corporal, mas sim a social. A centralidade do coração na afirmação de Jesus não é física ou biológica, mas é culturalmente o lugar vital. A identidade cultural do povo judeu deve estar marcada pelo cuidado com o que sai do coração e não com o que entra no corpo. Lavar as mãos, higienizar os alimentos, lavar as canecas e os pratos não vai fazer nenhuma diferença. Importa focar a vivência, a práxis das pessoas que resulta de reflexões e decisões que vêm do coração e não dos intestinos.
Dessa disputa não se pode concluir que Jesus é avesso à higiene. Jesus veio para cumprir a palavra de Deus, sem alterar nenhum til, mas não para cumprir preceitos humanos. Não se precisa ler isso em oposição excludente, como faz a hermenêutica de substituição, muito comum entre cristãos que enxergam Jesus substituindo Moisés, o Novo Testamento substituindo o Antigo, o evangelho substituindo a lei… Jesus certamente não foi contra procedimentos higiênicos, mas contra a sua sublimação religiosa excludente e discriminadora dos marginalizados. A tradição é boa, mas, quando superacentua o que não é essencial, acaba virando tradicionalismo.
A lista de maldades apresenta doze vícios, o que sinaliza sua abrangência. Referem-se aos mandamentos não roubar, não matar, não adulterar, não cobiçar, não dizer falso testemunho, não usar o nome de Deus em vão… (7.21-22).
Tomar banho regularmente, lavar as mãos, lavar a louça, canecas e vasilhas está na lógica do paradigma da medicina convencional predominante, segundo a qual as doenças provêm de minúsculos agentes externos, bactérias, bacilos e vírus, que, através das mãos, da respiração (dos fluidos) e de alimentos impuros ou estragados, penetram no corpo e o contaminam. Outras culturas desenvolveram outros paradigmas medicinais. Mas, pelo visto, não é essa a área para a qual Jesus empurra a discussão.
Rituais criam segurança, geram um sentido de pertença e acolhimento ao grupo. Não os seguir gera insegurança. Jesus e seus discípulos ainda se movem dentro da segurança étnico cultural judaica? Ou com seu relaxamento desses rituais estão se colocando fora não apenas da tradição, mas também do povo judeu e de sua tarefa especial de ser luz para os povos? Ao se transformarem em regras com finalidade em si mesmas, que servem para excluir quem não as cumpre, bons costumes perdem sua razão de ser. Não servem mais para criar e fortalecer laços de comunhão e convívio, mas para separar.
Vivemos em outro tempo. As culturas não se distinguem mais com tanta clareza. A informática dá acesso ao conhecimento de um mundo inimaginável de novidades e diferenças. Nas grandes cidades, há oferta de tudo que é tipo de comida. A mobilidade neste mundo globalizado intensificou-se, possibilitando conhecer o estranho e o diferente, olhar para dentro de outras culturas e religiões, até mesmo adotá-las por inteiro ou aos fragmentos, indo morar nesses países ou trazendo-as para dentro de casa através do matrimônio intercultural.
Hoje se tem acesso a diferentes conceitos de medicina e saúde: a medicina tradicional chinesa, a ciência de cura naturalista alemã, o sistema de saúde ayurveda da Índia, o xamanismo de povos indígenas… A psicossomática parte do princípio de que toda doença origina-se de um mau pensamento, respectivamente, de um conflito não trabalhado. Será que Jesus pensava em termos psicossomáticos? Parece que vamos pegando um pedaço daqui e outro dali e costurando uma colcha de retalhos para organizar nossa vida. Não temos mais a segurança ritual dentro de uma cultura. Vivemos, de certa forma, a insegurança de estar sempre construindo algo novo.
Os rasantes avanços na tecnologia de comunicação aceleram ainda mais essa colcha de retalhos. Dificilmente se encontrarão grupos culturais fechados em cima de seus rituais simbólicos. Até mesmo os mais fechados (quakers, amish) têm de se render às buscas das novas gerações. Prevalece o liberalismo. Tudo é permitido, tudo é legal. “Cada um, cada um”, como se diz por aí. Por outro lado, será que alguns grupos pentecostais com seus costumes corporais, de vestuário e de conduta moral, de recusa aos meios de comunicação não reeditam o que de- fendiam escribas e fariseus? No aspecto da alimentação, também há grupos que tornam exclusivos a macrobiótica ou o vegetarianismo e condenam os seguidores onívoros. É difícil encontrar quem segue uma tradição dos anciãos que pudesse merecer a crítica de se colocar na contramão da palavra de Deus.
A crítica de Jesus é uma crítica a partir de dentro da cultura e não de fora. Isso lhe confere muito mais autoridade para fazê-la. Ela está concentrada nos v. 6b e 7 e tem o seu auge no v. 13: invalidar a palavra de Deus para a vida através da tradição de preceitos de homens. Cuidando dessas picuinhas cotidianas, os fariseus erram no essencial. Coam mosquitos e engolem camelos. Isso está na mesma lógica das radicalizações do sermão da montanha. Se o nosso conceito de pecado restringe-se a algumas normas morais ou rituais, acaba-se achando que Deus é tão pequeno, que se pode manipulá-lo. As pessoas podem ter um discurso religioso e até piegas, cumprir todos os rituais culturais e religiosos, mas cometer as maiores barbaridades sociais (corbã). Jesus lembra Isaías 29.13: Esse povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Ensinam doutrinas que são preceitos de homens.
Jesus enfatiza o âmbito da convivência e das relações na comunidade. Isso é essencial – e não ritos que nos vêm do passado. Não tem de jogar a tradição fora. A boa tradição é passar adiante brasas vivas e não cinzas. Quando brasas vivas se tornam cinzas, a tradição vira tradicionalismo. O que sai da boca podem ser palavras de desgraça ou de construção do novo dentro da comunidade. Refletir, conversar sobre as coisas essenciais do relacionamento certamente garante uma vivência comunitária mais adequada neste mundo de rápidas transformações do que o seguimento de algumas tradições que granjearam vida própria e ninguém mais sabe ao certo por que ainda as seguem.
Há usos e costumes que nos identificam como cristãos de confissão luterana? Na Amazônia, tornamo-nos conhecidos como crentes que bebem e fazem festa. Há costumes locais tão fortes, que quem não os segue está se colocando fora da comunidade. Tem alguém em nossa igreja defendendo que determinadas pessoas estão se desviando dos costumes culturais/religiosos sagrados? E o que aconteceria se alguém fosse acometido de câncer e se recusasse a entregar-se aos paradigmas da medicina convencional?
O que é essencial na fé e na vida comunitária? O que exclui alguém da comunidade hoje? Apenas o não pagamento da anuidade? É esse realmente o mal maior que afeta as nossas comunidades e impede-as de ser luz e sal no mundo? Mosquitos e camelos!
Não matei, não roubei! O senso comum em nossas comunidades reduz os Dez Mandamentos a esses dois. Talvez seja hora de acentuar com Tiago o estrago que fazem línguas desenfreadas na vida comunitária. Além disso, enfatizar a prática do ouvir e da visitação aos marginalizados sociais de hoje (Tg 1.26s). Ali onde está o teu coração, está o teu Deus. Rituais não são suficientes para cumprir a vontade de Deus. A ética comunitária é essencial para a vivência de fé. Ali onde existe amor, ali está Deus. A palavra de Deus (trata-se de ouvi-la, guardá-la e praticá-la) tem a função de pôr ordem no caos social. Sua finalidade é proteger a vida.
Confissão de pecados:
Sugiro elaborar uma oração com três ou quatro daqueles vícios listados em Mc 7.21s, que em sua atividade pastoral e de visitação mais lhe parecem procedentes. Enuncie a maldade e convide as pessoas a revisar sua conduta.
Oração de coleta:
Deus Todo-Amoroso, que conduziste o teu povo da escravidão à liberdade e implantaste em seu coração mandamentos e orientações para organizar sua convivência em justiça, paz e liberdade, olha também para a nossa vivência comunitária e auxilia-nos a distinguir o essencial do que é secundário, para que possamos participar dignamente do teu projeto aqui em (nome do lugar), para tua maior honra e glória. Isso te pedimos em nome de Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade.
Intercessão:
Deus Todo-Amoroso, reforça o nosso ouvir. Dispõe-nos para encontrar os mais fracos de nossa comunidade com paciência e solidariedade. Concede-nos tua reconciliação em meio às nossas confrontações, dá-nos conhecimento e aprendizagem mútua, que as diferenças possam nos enriquecer, que o estranho nos dê novas perspectivas. Concede-nos palavras boas na construção de um mundo de paz e justiça, que possamos – aqui em (nome do lugar) – contribuir para a reconciliação, a paz e o amor entre as pessoas e com a criação. Amém.
REIMER, Ivoni Richter. Compaixão, Cruz e Esperança – Teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 2012.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).