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Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica:
Levítico 19.1-2, 9-18
Leituras: Mateus 5.38-48 e 1 Coríntios 3.10-11, 16-23
Autor: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: 7º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 23/02/2014

 

1. Introdução

O livro de Levítico certamente não é um dos mais populares das Escrituras. Muito pelo contrário, é pouco lido e pouco conhecido. Para muitos, parece ser um livro ultrapassado, relacionado ao culto nos tempos do Antigo Testamento, às normas a serem observadas pelos sacerdotes nos atos litúrgicos e às leis a respeito dos sacrifícios, da pureza e da impureza.

No entanto, quando nos deparamos com o Sermão do Monte, registrado em Mateus 5-7, descobrimos que o texto de Levítico foi intensamente utilizado por Jesus em seu ensino quando, por diversas vezes, empregou as expressões: “Ouvistes o que foi dito aos antigos… Eu, porém, vos digo…”. É claro que Jesus não veio para revogar a lei, como ele mesmo afirmou no próprio Sermão do Monte, ao dizer: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (Mt 5.17). Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que o texto de Mateus 5.38-48 apresenta não a revogação do ensino de Levítico 19, mas, ao contrário, a sua interpretação pela ótica de Jesus Cristo. Não são, pois, textos contraditórios, mas paralelos, nos quais vemos o ensino do Antigo Testamento sob a luz do Evangelho.

Não é diferente o que ocorre com o texto de 1 Coríntios 3. Paulo redigiu o texto a uma comunidade de fé que passava por grandes dificuldades. Uma delas, talvez a maior, era uma equivocada compreensão a respeito da santidade. A igreja de Corinto, em seu interesse por santidade, acabou desenvolvendo uma disputa interna a respeito do significado dos dons do Espírito Santo. Chegou à conclusão de que o dom mais importante era falar em línguas estranhas. Pessoas que afirmavam ter esse dom consideravam-se mais santas e superiores em relação aos membros da comunidade que tinham outros dons.

O resultado foi trágico. A igreja, que se caracterizava pelo interesse pela santidade, acabou sendo uma igreja dividida, com grupos internos que se opunham uns aos outros e que dilaceravam o corpo de Cristo. Era uma igreja que se considerava santa, mas ainda precisava aprender que o dom maior do Espírito Santo é o amor (1Co 13).

É exatamente desse assunto que trata o texto de 1 Coríntios 3. Paulo, o fundador da igreja de Corinto, não se considerava superior a ninguém. Afirmava que o único fundamento da igreja é Jesus Cristo (1Co 10-11). Ensinava que ninguém deveria gloriar-se em si mesmo, considerando-se mais santo do que seus semelhantes. Ao contrário, somente Deus é santo, e tão somente por sua graça somos santificados pela presença do Espírito Santo que habita em nós (1Co 3.16). Essa é a temática que une os três textos. São textos a respeito da santidade. E é nessa perspectiva que serão utilizados.

 

2. Exegese

O “terceiro livro de Moisés” entre os judeus é conhecido pela expressão que aparece em seu início (“Chamou”). Essa palavra serve para indicar a procedência divina dos ensinos de Moisés. A partir da Septuaginta foi denominado “Levítico”, sugerindo que seu conteúdo se refere ao ritual cúltico do Antigo Testamento, levando em consideração o fato de que os levitas cuidavam do culto e de seu grupo procediam os sacerdotes. No entanto, supor que o texto de Levítico contém somente instruções a respeito dos sacrifícios e da pureza ritual é um grande equívoco. Como observa Budd, “torna-se muito claro, particularmente nos capítulos 18-26, que os princípios que regulam a vida da comunidade cúltica são exatamente aqueles que determinam relacionamentos apropriados pessoais e sociais” (p. 3).

É nesse contexto que está inserido o texto da prédica (Lv 19.1-2,9-18). Dessa passagem destacamos os pontos a seguir.

2.1 – Objetivo dos mandamentos (Lv 19.1-2)

O texto começa com a informação de que o ensino mosaico procede de Javé. Não representa, pois, mero ensino de um líder político e religioso, mas orientação divina. Essa abertura apresenta uma determinação formulada no plural (“santos sereis”). No entanto, ao longo do texto, ocorre alternância de formas, com mandamentos tanto no plural como no singular. Segundo Gerstenberger, “quando se examinam mais atentamente as proibições mantidas no plural, descobrimos as concepções e motivações dos redatores sacerdotais, que estavam extremamente interessados na correção ritual dos membros da congregação” (p. 262). Por outro lado, as proibições formuladas no singular visavam à promoção de uma vida comunitária salutar.

Em outras palavras, quer colocados no singular, quer postos no plural, o objetivo dos mandamentos é regular a vida do povo de Israel tanto no culto como na vida secular, tanto no templo como fora dele, promovendo a santificação. Os mandamentos, pois, dirigem-se a todos e a cada um estabelecendo a exigência da santificação, porque Javé é santo.

Mas poderíamos perguntar: o que significa, concretamente, santificação? Qual é o comportamento de pessoas santificadas? A tais perguntas que o texto responde.

2.2 – Santificação no trabalho agrícola (Lv 19.9-10)

A determinação divina estabelecia que as espigas de trigo e os cachos de uva não deveriam ser colhidos totalmente nas plantações. Espigas e cachos que caíam durante o trabalho da colheita não poderiam ser apanhados, mas deixados no chão. Temos um exemplo da observância concreta dessa determinação na história de Rute, que “foi ao campo e andava atrás dos trabalhadores, catando as espigas que caíam” (Rt 2.3).

Os proprietários agrícolas deveriam, pois, observar uma certa “displicência” na colheita. Graças a isso, os pobres não ficariam sem provisões, mas teriam recursos para se manter. Gerstenberger destaca: “O ethos do Antigo Testamento é formado por dois componentes: obrigações para com Deus e responsabilidade social entre os seres humanos. No Israel antigo, esses dois componentes eram uma unidade indissolúvel…” (p. 267).

2.3 – Santificação nas relações sociais (Lv 19.11-12,16)

A santificação envolvia procedimentos transparentes nos relacionamentos com as demais pessoas do grupo. Ao não roubar, não mentir, não enganar, não difamar e não jurar falsamente em nome de Deus, certamente cada indivíduo estaria dando a sua contribuição para que “os irmãos vivessem em união” não somente durantes as celebrações litúrgicas, mas também na vida em sociedade (Sl 133.1).

2.4 – Santificação nas relações econômicas (Lv 19.13)

O texto pressupõe uma realidade econômica diversificada, com ricos e pobres, patrões e empregados. Nesse contexto, santificação quer dizer recusa à exploração e ao roubo bem como pagamento diário do salário. Em outras palavras, tinha que haver justiça nas relações econômicas.

2.5 – Santificação no relacionamento com pessoas com necessidades especiais (Lv 19.14)

Levítico destaca procedimentos a serem adotados em relação aos surdos e aos cegos. É claro que essas não são as únicas pessoas com necessidades especiais. No entanto, o texto deve ser interpretado de forma ampla. Respeitar pessoas com necessidades especiais equivale, de fato, a respeitar o Senhor.

2.6 – Santificação na aplicação da justiça (Lv 19.15)

A santificação não se limita aos relacionamentos pessoais ou às atividades econômicas. Ao contrário, envolve também a aplicação da justiça pelas autoridades responsáveis. Ela não deve ser parcial, inclinando-se em favor dos poderosos.

2.7 – Santificação na solidariedade (Lv 19.17-18)

Finalmente, o texto selecionado para a prédica conclui que a santificação envolve abandono do ódio, correção com franqueza e amor. Trata-se de uma espécie de conclusão a tudo o que foi ordenado anteriormente. A respeito do mandamento do amor, Gerstenberger comenta: “A palavra ‘amor’ não deve, certamente, ser mal interpretada de uma maneira romântica ou caritativa. No antigo Oriente Próximo, era um termo referente à comunidade como um todo e, por isso mesmo, também ‘político’, e não individualista. No contexto da solidariedade familiar, referia-se ao compartilhamento e à responsabilidade mútua de seres humanos que viviam numa comunidade de fé” (p. 272).

 

3. Meditação

3.1 – A religiosidade de nossos dias

Estamos tendo uma grande surpresa nos dias atuais: a explosão da religiosidade. Referimo-nos a uma grande surpresa porque, há pouco tempo, circulou teologia da secularização ou teologia da morte de Deus. Dizia-se que o ser humano, graças aos avanços e conquistas da ciência e da tecnologia, estava se tornando adulto. Com isso passava a ser senhor de sua história, sem depender de Deus. A consequência seria o declínio da religião e o esvaziamento das igrejas. Tais profecias não se cumpriram. O que vemos nos dias atuais é que as pessoas continuam sendo profundamente religiosas.

Infelizmente, porém, desenvolveu-se uma religiosidade de “mercado”, marcada pelo espírito capitalista de compra das bênçãos divinas. E, para atender a isso, começaram a surgir igrejas dispostas a vender, acima de tudo, a prosperidade e a saúde. Tal religiosidade está em alta. Ela é alimentada pelo desejo de poder, pela ganância e pela soberba. Trata-se de uma religiosidade individualista, que visa oferecer prosperidade pessoal em troca de contribuições financeiras. É uma religiosidade que não envolve transformações na vida em sociedade nem implicações ou compromissos éticos.

Os templos que exploram essa religiosidade estão repletos. Seus proprietários estão ricos e conquistaram poder político. Tem ocorrido um crescimento explosivo do segmento evangélico da população brasileira, mas, ao mesmo tempo, não se manifesta nenhum impacto transformador do poder do evangelho em nosso meio.

3.2 – Jesus e a religiosidade de seu tempo

Nos tempos de Jesus, acontecia algo semelhante. A religiosidade era intensa. Ela se manifestava nas celebrações cúlticas do templo de Jerusalém e nas reuniões aos sábados nas sinagogas. As autoridades políticas procuravam tirar vantagens pessoais da exploração dessa religiosidade. Herodes, o Grande, que reinou de 37 a 4 a.C., começou uma fantástica obra no templo de Jerusalém, que encantou os discípulos de Jesus (“Quando Jesus estava saindo do pátio do templo, um discípulo disse: Mestre, veja que pedras e edifícios impressionantes!” – Mc 13.1). No próprio Sermão do Monte, Jesus fez referência a essa religiosidade que visava à promoção pessoal (“Tenham o cuidado de não praticar os seus deveres religiosos em público a fi m de ser vistos pelos outros… Quando vocês orarem, não sejam como os hipócritas. Eles gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para ser vistos pelos outros” – Mt 6.1,5). Toda essa religiosidade só se manifestava nos atos religiosos de relacionamento com Deus (cultos, orações etc.). Jesus contrapôs-se a isso, chamando a atenção para a santificação na vida em sociedade, pregando contra a vingança e em favor do amor até aos inimigos.

3.3 – Paulo e a religiosidade da igreja de Corinto

Também na igreja de Corinto houve manifestações de intensa religiosidade. O caso do dom de línguas era uma dessas manifestações. No entanto, ao mesmo tempo, era uma igreja com sérios problemas internos. Havia divisões e brigas na igreja (1Co 1.11). Havia o partido de Paulo, o partido de Apolo e o partido de Pedro. Alguns, julgando-se superiores aos outros, afirmavam-se como membros do partido de Cristo (1Co 1.12). Paulo contrapôs-se a essa religiosidade repleta de egoísmo, individualismo e vaidade. Ensinou que a igreja é edifício de Deus, e os cristãos são simples companheiros de Deus na construção desse edifício (1Co 3.9). Ninguém deveria considerar-se superior aos outros (1Co 3.18) nem se orgulhar de suas próprias obras (1Co 3.21).

3.4 – Santidade ou religiosidade?

Como nos tempos de Jesus e como na igreja de Corinto, vivemos tempos de intensa religiosidade. No entanto, o que está faltando em nossa época é a busca por uma santificação biblicamente orientada. Quando falamos de santidade, é por demais importante a mensagem do texto de Levítico. Deus é santo e exige santidade. Essa santidade extrapola os limites dos templos e dos atos religiosos. Trata–se de uma santidade que se manifesta em todas as esferas da vida em sociedade, na promoção do reino de Deus.

Não é mera religiosidade que não produz impacto no mundo, mas é modificação dos relacionamentos na vida secular, gerando a solidariedade. Não é simples busca de ajuda divina para a prosperidade pessoal, mas é luta diária em favor da paz e da justiça. Essa é a santidade que Deus exige de seu povo.

 

4 Imagens para a prédica

4.1 – Uma vida de santificação

Martin Luther King pregou, dois meses antes de morrer, em sua igreja em Atlanta (EUA) dizendo: “Se alguém aqui estiver presente quando chegar a minha hora, não quero um enterro prolongado. Se alguém fizer o ofício fúnebre, digam-lhe que não fale demais. Quero que alguém fale do dia em que tentei ser justo. Quero que falem do dia em que tentei dar de comer aos que tinham fome. Quero que possam falar do dia de minha vida em que tentei vestir os que estavam nus. Quero que falem do dia de minha vida em que tentei visitar os que estavam na prisão. E quero que digam que procurei amar e servir à humanidade. Sim, se quiserem, digam que fui um mensageiro. Digam que fui um mensageiro da justiça. Digam que fui um mensageiro da paz. Digam que fui um mensageiro da retidão. Não terei dinheiro para deixar. Não terei as coisas boas e luxuosas da vida para deixar. Quero deixar apenas uma vida de serviço. Se pude ajudar alguém a meu lado, se pude alegrar alguém com uma palavra ou canção, se pude mostrar o caminho a alguém que está andando errado, não terei vivido em vão. Se pude cumprir meu dever de cristão, se pude levar a salvação ao mundo arrasado, se pude difundir a mensagem como o Mestre a ensinou, então minha vida não terá sido em vão”.

4.2 – A sinagoga repleta

Uma parábola recolhida por Martin Buber descreve uma religiosidade sem santificação: “Certa vez, Baal Schem parou à porta de uma sinagoga e negou-se a entrar. ‘Não posso entrar’, disse, ‘pois está repleta, de uma parede a outra e do chão ao teto, de orações e de ensinamentos. Como ainda haveria um lugar para mim?’ Ao ver que as pessoas à sua volta fitavam-no de olhos arregalados, sem entender, pois havia muitos lugares vazios na sinagoga, acrescentou: ‘As palavras que passam pelos lábios dos que oram e ensinam, e não procedem de um coração voltado para o céu, não sobem às alturas, mas atulham a casa de uma parede à outra e do chão ao teto’”.

 

5. Subsídios litúrgico:

Há uma canção de um compositor chamado Zé Geraldo cuja letra merece
a nossa reflexão. Ela diz assim:

Tá vendo aquele edifício, moço?/ Ajudei a levantar./ Foi um tempo de aflição,
era quatro condução,/Duas pra ir, duas pra voltar./ Hoje, depois dele pronto,/
olho pra cima e fico tonto…/ Mas me chega um cidadão e me diz desconfiado:/
Tu tá aí admirado ou tá querendo roubar?/ Meu domingo tá perdido. Vou pra casa
entristecido./ Dá vontade de beber. E, pra aumentar meu tédio,/ Eu nem posso
olhar pro prédio que ajudei a levantar.

Tá vendo aquele colégio, moço? Eu também trabalhei lá./ Lá eu quase me
arrebento, fiz a massa, pus cimento,/ Ajudei a rebocar./ Minha filha inocente diz
pra mim toda contente:/ – Pai, vou me matricular!/ Mas me fala um cidadão: –
Criança de pé no chão/ Aqui não pode estudar./ Essa dor doeu mais forte. Por que
eu deixei o norte? Eu me pus a me dizer./ Lá a seca castigava, mas o pouco que
plantava/ Tinha o direito de comer.

Tá vendo aquela igreja, moço, onde o padre diz amém?/ Pus o sino e o
badalo, enchi minha mão de calo./ Lá eu trabalhei também. Lá, sim, valeu a
pena./ Tem quermesse, tem novena, e o padre me deixa entrar./ Foi lá que Cristo
me disse: Rapaz, deixe de tolice,/ Não se deixe atormentar./ Fui eu quem criou a
terra,/ Enchi o rio, fiz a serra, não deixei nada faltar./ Mas o homem criou asas,/ E
na maioria das casas eu também não posso entrar!

A sugestão é que alguém faça a leitura do poema acima no momento da confissão, denunciando a religiosidade sem santificação de nossos dias.

 

Bibliografia

BUDD, Phillip J. Leviticus. Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1988.
GERSTENBERGER, Erhard S. Leviticus – a commentary. Louisville: Westminster John Knox Press, 1996.
NOTH, M. Leviticus – a commentary. Philadelphia: The Westminster Press, 1977.

 

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Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).