Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 2.13-23
Leituras: Isaías 63.7-9 e Hebreus 2.10-18
Autora: Marcia Blasi
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 29/12/2013
A criança nasceu! Vivemos este tempo mágico, belo, cheio de alegria, que nos lembra que Deus nos ama e importa-se conosco de forma concreta: tornou-se uma de nós, tornou-se um de nós. Mas, no meio da festa, em meio à alegria e à celebração, fazemos uma parada para lembrar um massacre, relatado no evangelho deste domingo. Um líder invejoso e com medo de perder o poder tentou acabar com a vida do pequeno Jesus. Memória trágica que não pode e nem deve ser esquecida. Mesmo que a vida de Jesus tenha sido poupada, outras crianças foram mortas. Em calendários litúrgicos de algumas tradições cristãs, o dia 28 de dezembro é lembrado como o dia dos “santos inocentes ou pequenos mártires”.
Os textos do profeta Isaías e da Carta aos Hebreus falam da bondade de Deus e como Deus salva seu povo. Salvou o povo de Israel e salva o povo que segue Jesus, que são seus irmãos e suas irmãs.
V. 13 – Depois que os visitantes foram embora, um anjo do Senhor apareceu num sonho a José e disse: – Levante-se, pegue a criança e a sua mãe e fuja para o Egito. Fiquem lá até eu avisar, pois Herodes está procurando a criança para matá-la.
As pessoas visitantes, as sábias, haviam sido instruídas por Herodes para delatar o local onde a criança estava. Mas elas desobedeceram à ordem. Voltaram para casa por outro caminho. O anjo aparece e diz a José: “Pegue a criança e a sua mãe e fuja para o Egito”. Como é típico numa sociedade patriarcal, a criança e a mãe não têm nome. “Pegue”, “carregue”… “fuja” (não é fujam; José é o único sujeito, a criança e a mãe são objetos) para o Egito.
V. 14 – Então José se levantou no meio da noite, pegou a criança e a sua mãe e fugiu para o Egito.
“José” fez o que havia sido ordenado/sugerido. Foi a pé? Qual a distância? Como viajaram?
V. 15 – E eles ficaram lá até a morte de Herodes. Isso aconteceu para se cumprir o que o Senhor tinha dito por meio do profeta: “Eu chamei o meu filho, que estava na terra do Egito”.
Mateus chama as palavras de Oseias (cf. Os 11.1) para comparar Jesus a Moisés. Em Êxodo 4.22, Deus fala a Moisés para informar ao faraó que Israel é seu primogênito. Herodes morreu dentro de dois anos. O caminho está livre para voltar.
V. 16 – Quando Herodes viu que os visitantes do Oriente o haviam enganado, ficou com muita raiva e mandou matar, em Belém e nas suas vizinhanças, todos os meninos de menos de dois anos. Ele fez isso de acordo com a informação que havia recebido sobre o tempo em que a estrela havia aparecido.
Os visitantes do Oriente eram conhecedores das estrelas e dos astros. Os astrônomos eram os cientistas do tempo de Jesus. Possivelmente eram da Pérsia, Síria ou Arábia.
A ordem de Herodes lembra a ordem do Faraó do Egito no tempo de Moisés. Belém era uma pequena cidade e não deveria ter muitos meninos com menos de dois anos, mas, se entendermos as vizinhanças como incluindo Jerusalém, que ficava a alguns quilômetros de distância, então é possível afirmar que muitos meninos correram perigo.
V. 17-18 – Assim se cumpriu o que o projeta Jeremias tinha dito: “Ouviu-se num som em Ramá, o som de um choro amargo. Era Raquel chorando pelos seus filhos; ela não quis ser consolada, pois todos estavam mortos”.
Ramá ficava em torno de 9 km ao norte de Jerusalém. É a cidade citada em Jeremias 31.15 e 40.1. Raquel, a mulher de Jacó, está enterrada perto de Belém. O texto recordado lembra o choro de Raquel por seus filhos. Ela representa aqui todas as mulheres israelitas que choram a perda de seus filhos.
V. 19-20 – Depois que Herodes morreu, um anjo do Senhor apareceu num sonho a José no Egito e disse: – Levante-se, pegue a criança e a sua mãe e volte para a terra de Israel, pois as pessoas que queriam matar o menino já morreram.
Um anjo aparece novamente. O tirano morreu. José recebe nova ordem para voltar.
V. 21-23 – Então José se levantou, pegou a criança e a sua mãe e voltou para a terra de Israel. Mas, quando ficou sabendo que Arquelau, filho do rei Herodes, estava governando a Judeia no lugar de seu pai, teve medo de ir morar lá. Depois de receber num sonho mais instruções, José foi para a região da Galileia e ficou morando numa cidade chamada Nazaré. Isso aconteceu para se cumprir o que os profetas tinham dito: “O Messias será chamado de Nazareno”.
Um tirano havia morrido, mas havia outro em seu lugar. Através de sonhos José vai recebendo mensagens e vai morar com sua família em Nazaré.
Após as comemorações, a alegria em torno do pinheirinho, a troca de presentes, os votos de boas festas, o texto bíblico traz-nos de volta para a realidade de morte e sofrimento que nos cerca. Nós vivemos em um mundo onde crianças morrem e mães e pais choram não apenas ocasionalmente, mas todos os dias. Vivemos em um mundo onde as pessoas oprimidas sofrem e onde as opressoras conseguem escapar na impunidade.
Talvez nos lembremos de ter ouvido essa história durante a nossa infância, imaginando na época que a viagem de Maria e José com seu bebê foi um passeio heroico, de cinema. A narrativa, na verdade, conta uma história bem diferente: de sofrimento, de perigo e de refúgio em outro país. A família foge do terror, mas se torna uma família de refugiados.
Talvez também pensemos que esse texto deveria fazer parte das leituras bíblicas apropriadas para o tempo de Quaresma e Semana Santa. Mas o texto está aqui no meio dos textos de júbilo da época natalina, justamente para nos lembrar que o nascimento de Jesus não erradicou milagrosamente a maldade do mundo, assim como também nossos desejos e nossas canções de paz não acabam com as guerras e morte de crianças inocentes.
O texto é difícil. A realidade de morte e sofrimento é algo que procuramos não lembrar neste tempo. Nosso filho perguntou um dia por que Deus salvou Jesus e não salvou outros meninos mortos que a TV anunciava. Tanto não há resposta para essa pergunta como não há resposta para explicar por que tantas crianças inocentes morrem a cada ano por causa da tirania de alguns.
O evangelho deste domingo traz sérios questionamentos a cada uma e cada um de nós. Tentar responder as palavras, fugir das tensões do texto pode ser uma saída, mas não é a melhor opção. Somos convidadas e convidados a perceber que, no meio de tanta euforia, de tanta festa, há muita dor enterrada, há muitas perguntas sem resposta. Podemos admitir essa tensão e fazer deste dia um dia para lembrar as nossas próprias dores e as nossas próprias dúvidas, não como algo que mostra a fraqueza na fé, mas que mostra o quanto buscamos entender os desígnios de Deus e quanto nos escandalizamos com a crueldade humana.
Algumas pesquisas colocam em dúvida a historicidade dessa narrativa. Essa incerteza, se de fato ela aconteceu e quantas foram as crianças mortas, não deveria jamais nos fazer ver esse relato como meramente figurativo. Se, digamos, apenas uma criança foi morta, isso já é motivo para que ela seja lembrada. E com isso nos lembramos também de tantas outras crianças que são mortas por questões religiosas, étnicas e de gênero ainda hoje.
Este domingo traz-nos uma grande oportunidade para silenciar, para ouvir o clamor de tantas pessoas que choram a perda de seus filhos e filhas, ouvir o clamor de meninas que são abandonadas ao nascer, pois a sociedade, a cultura e a religião patriarcal valorizam mais os meninos do que as meninas.
Procurando uma imagem para oferecer, lembrei do trabalho que a Federação Luterana Mundial, através do Serviço Mundial, realiza com povos refugiados. Procurei então por dados atuais do número de pessoas refugiadas no mundo em julho de 2013. Encontrei na página da Agência de Pessoas Refugiadas da ONU (www.unhcr.org/51e9a3496.html) a história do pequeno Andrea.
Andrea nasceu no dia 15 de julho de 2013, sendo o primeiro nascimento no centro de triagem de Bubukwanga, Uganda, a 25 km da fronteira com a República Democrática do Congo. Mônica, sua mãe, vivia com a família em Kamango, uma cidade da República Democrática do Congo. Mônica teve que abandonar tudo e fugir quando um grupo rebelde invadiu o lugarejo e matou o líder da comunidade. Ela já estava tão avançada na sua gravidez, que teve dificuldades para caminhar; precisou ser carregada por vizinhos e outras pessoas rumo à fronteira com Uganda em busca de refúgio. Na fuga, ela foi separada do marido e do filho. O nascimento do pequeno Andrea, com a ajuda humanitária prestada no Centro de Triagem, trouxe novas esperanças para a mãe e o sonho de uma vida melhor.
Histórias como essas não são únicas. Elas repetem-se diariamente. No final de 2011, havia 10,4 milhões de pessoas refugiadas sob a responsabilidade da ONU. Conectar a história de Jesus com a vida das famílias refugiadas hoje deve levar-nos a agir ali onde estamos e a apoiar agências que trabalham e que vão onde nós não podemos ir.
Oração do dia:
Lembramos hoje, ó Deus, do massacre das crianças inocentes por ordem do rei Herodes. Oramos para que recebas em teus braços, ó misericordioso Deus, todas as vítimas inocentes da tirania de poderosos sem escrúpulos, aquelas vítimas do passado e as vítimas de hoje. Acaba com os planos de maldade, estabelecendo assim teu reino de justiça, paz e amor, por Jesus Cristo. Amém.
Versículo de aclamação: Mateus 5.10
Oração de intercessão:
Com o coração alegre pelo nascimento de Jesus e triste pela morte de tantas vidas inocentes, oremos a Deus, que nos oferece paz e esperança.
[Breve silêncio]
Oramos por todas as pessoas que choram a perda de seus filhos e filhas, por aquelas pessoas que têm seus pequenos e pequenas arrancados de si por causa da violência e da ganância humana. Oramos por aquelas pessoas que são perseguidas por causa da fé em Cristo. Faze com que estejamos ao lado dessas pessoas em sua dor e em sua luta por justiça. Deus de consolo,
– Ouve nossa oração.
Oramos pelas nações do mundo, especialmente aquelas dominadas por conflitos e maus governantes. Dá que o sangue de crianças inocentes não alimente as máquinas de guerra nem a fúria dos poderosos. Deus de esperança,
– Ouve nossa oração.
Oramos por todas as crianças sacrificadas pela má distribuição das riquezas do mundo e aquelas que são usadas para produzir produtos baratos que vão alimentar a economia de países ricos. Oramos especialmente pelas meninas que ainda hoje correm um risco maior de ser abandonadas ao nascer, de ser vitimadas pela violência sexual, de ser traficadas para alimentar grandes comércios de pessoas, que são rejeitadas pela sociedade que ainda considera o nascimento de meninos uma bênção maior. Deus de justiça,
– Ouve nossa oração.
Oramos por todas as pessoas que sofrem e por aquelas que estão em busca de cura. Dá que recebam força e coragem na certeza de que Jesus Cristo está conosco e faze com que sejam amparadas pelas mãos e braços de teus filhos e filhas. Deus de amor,
– Ouve nossa oração.
Oramos por tua igreja no mundo, para que seja sempre mensageira de boas notícias e de esperança. Oramos por esta comunidade, para que seja um lugar seguro e acolhedor para todas as pessoas, especialmente as mais pequeninas. Deus de misericórdia,
– Ouve nossa oração.
Recebe nossa oração e ouve o clamor de teus filhos e filhas que clamam em nome de Jesus, teu Filho, que se tornou ser humano e morou entre nós. Amém.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).