Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 21.1-11
Leituras: Salmo 118.1-2, 19-29 e Filipenses 2.5-11
Autoria: Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 02/04/2023
Excelentes estudos sobre o texto de Mateus 21.1-11 encontram-se nas edições de Proclamar Libertação v. III (p. 310-328), v. 38 (p. 140-145) e v. 44 (p. 133-138).
Na estrutura do Evangelho de Mateus, o capítulo 21 marca o início do relato da Paixão. Isso equivale a dizer que, para o evangelista, o evento da entrada em Jerusalém está diretamente ligado às causas da paixão e morte de Jesus. O relato de Mateus está carregado de forte tensão quando afirma ter Jesus entrado na cidade-sede dos poderes político, econômico e religioso montado num jumento. A narrativa, corajosamente, denuncia a existência de um contraste de realidades e coloca um contraponto a uma realidade dada. Isso podemos verificar em fatos como os que seguem.
1. O monte das Oliveiras, mencionado como local de chegada de Jesus, é uma referência à expectativa de que justamente nesse local se daria o advento do Messias. Sendo Jesus identificado e aclamado pelo povo como o Messias, ele passa a representar ameaça aos poderes centralizados em Jerusalém.
2. A aclamação de Jesus é feita não pelos habitantes do centro de Jerusalém, comprometidos com esses poderes, mas pelos peregrinos que acompanhavam Jesus desde a Galileia (uma região periférica do Estado) e pelo povo das periferias de Jerusalém. Essa gente conhecia Jesus muito bem a partir do que ele ensinava e realizava.
3. O jumento emprestado, animal de carga utilizado nesse evento, é um flagrante contraste aos cavalos de batalha do Império Romano e de seus representantes em Jerusalém.
4. Jesus está indo a Jerusalém para participar da festa da Páscoa, assim como muitos outros romeiros. A cidade estava se enchendo de gente. Os chefes militares também se dirigiam para lá, com todo o seu aparato (soldados, cavalos, armaduras, espadas) para garantir a paz romana durante os festejos. Enquanto Jesus entrava na cidade pelo lado das aldeias pobres, da periferia, montado num jumento mendigado, do outro entravam os militares, montados em cavalos de guerra.
5. As pessoas envolvidas no episódio dividem-se em dois grupos: o grupo dos que aclamam Jesus como o bendito que vem em nome de Deus e o grupo dos que saúdam o cortejo militar.
A tensão contida na narrativa se deve ao fato de ela estampar a possibilidade de uma alternativa radical ao sistema político, econômico e religioso vigente. Em jogo estão dois projetos opostos: um identificado com o Império Romano e o outro com o Reino de Deus.
Mateus consegue montar sua narrativa e formulá-la de tal modo a deixar claro que não se trata de uma briga entre duas tendências partidárias, mas da irrupção de uma realidade extraordinariamente grandiosa para dentro deste mundo.
Para expressá-lo, o evangelista se vale dos seguintes recursos:
1. A narrativa está estrategicamente colocada no início da história da Paixão para anunciar que o episódio da entrada em Jerusalém faz parte da obra salvífica de Deus através da paixão e morte de seu Filho. Portanto não se trata de um fato comum, mas de um testemunho referente à intervenção de Deus na história da humanidade.
2. A aclamação das pessoas que acompanham Jesus é expressão da alegria pela chegada do rei prometido pelos profetas e que se caracteriza pela humildade e mansidão (Zc 9.9). Ele não é um rei como os outros reis; é esperado como aquele que vem para ajudar. Este é o sentido original do termo hosana: “queira ajudar”. O povo simples, humilde e pobre jubila porque assiste à chegada do enviado de Deus, que vem para providenciar socorro.
3. A entrada de Jesus em Jerusalém causou, segundo Mateus, um grande alvoroço em toda a cidade. Segundo Grundmann, o verbo empregado em grego para alvoroçar é o mesmo que Mateus utiliza na narrativa da crucificação: tremeu a terra (27.51). Ou seja, o que está acontecendo não é algo comum: cria alvoroço, faz tremer a terra. Cabe ressaltar a expressão toda a cidade, pois Jerusalém representa o Israel inteiro. A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém é um evento que mexe com todo o povo de Deus.
4. A pronta disposição dos discípulos para atender ao pedido de buscar o animal e a pronta disposição do dono do animal para emprestá-lo sem questionamentos remetem à ideia de que a chegada do Messias é algo tão extraordinário, que mobiliza toda gente para contribuir de alguma forma na causa e dispensa perguntas e dúvidas.
5. A natureza participa do evento: na narrativa há a participação de animais, dos ramos de palmeiras, do monte das Oliveiras, e há a insinuação de um tremor de terra. São indicações de que se trata de um evento cósmico, assim como também está narrado no evento da crucificação. Trata-se de um acontecimento que afeta o mundo todo.
O contraste de realidades está em toda parte. Centros e periferias. Poder e fraqueza. Riqueza e pobreza. Jerusalém e Galileia. Por que o sistema gerador dessa realidade entra em alvoroço quando Jesus entra em Jerusalém montado num jumento? A pergunta central do texto é: Quem é este? (v. 10). Para Mateus está claro: este é o mesmo da cruz. A utilização de um animal de carga como montaria para uma entrada triunfal na cidade que centraliza o poder é um escândalo. Escândalo é também a manjedoura, um cocho de madeira que servia para alimentar os animais e que serviu de berço para a encarnação de Deus. Escândalo definitivo é a cruz, que serviu de instrumento para eliminar o Filho de Deus. Vítor Westhelle lembra que se trata do Deus nudus – Deus nu, exposto aos olhos de todos para a radicalização do escândalo; e lembra que esse cenário de um Deus nu causa horror vacui, ou seja, medo do vazio (Westhelle, 2008, p. 114). É desse escândalo que o apóstolo Paulo fala em 1 Coríntios 1.23-29, assim como também no Salmo de Cristo – Filipenses 2.5-11 –, previsto como leitura para o Domingo de Ramos.
Embora esse Deus gere o medo do vazio, é justamente ele que causa alvoroço e faz tremer a terra. Esse é o Deus que, quando se manifesta, mexe com o universo inteiro, porque inverte a lógica das coisas; pois quem poderia se deixar servir, serve; quem era grande será servo; quem era o último será o primeiro (Mc 10.43-45). Essa é a causa da tensão no texto. Se o império for chamado a aderir a essa ideia, haverá alvoroço. O império não suporta o medo do vazio. Na lógica do império, o vazio precisa ser preenchido com poder, domínio, vitórias e glórias.
A pregação do Domingo de Ramos, naturalmente, não antecipa a prédica da Paixão. Entretanto, a entrada de Jesus em Jerusalém, assim como Mateus a apresenta, já nos coloca na atmosfera dos acontecimentos que virão. Não há como fugir de temas como:
1. A entrada de Jesus em Jerusalém montado num animal de carga emprestado já nos revela quem é o Deus de Jesus: é o mesmo que estava deitado no cocho do curral e pendurado nu na cruz de Gólgota.
2. Testemunhar esse Deus gera tensão. É um escândalo. O motivo da tensão é que esse Deus, quando se manifesta, mexe com a cidade inteira, porque inverte a lógica das coisas. O império não suporta o medo do vazio.
3. Seguir a esse Jesus na sua entrada em Jerusalém montado em jumento é também uma experiência de extraordinária alegria e satisfação. Quem o fez manifestou essa alegria de forma muito concreta, cantando, aclamando, bendizendo, colocando ramos de palmeira na rua, o que equivale a bater palmas. O motivo dessa grande alegria é a clara percepção de que o Reino de Deus está chegando; Deus está intervindo na história da humanidade. Agora há esperança porque esse que vem em nome do Senhor é aquele que ajuda, que socorre (hosana).
4. O evento da entrada de Jesus em Jerusalém traz consigo também, de forma irresistível, a disposição para servir. Na certeza de que aqui e agora Deus está agindo em favor da humanidade, discípulos colocam-se a serviço, o dono dos animais se dispõe a colaborar do seu jeito e o povo preparou a rua estendendo suas vestes e ramos de palmeira para que o profeta Jesus de Nazaré da Galileia pudesse se apresentar à cidade e ao mundo. A diaconia faz parte da realidade do reino de Deus.
A. Quem é este? Aquele que está montado num jumento emprestado é o mesmo da manjedoura e da cruz. É o Deus que se esvazia de si mesmo (Fp 2.7 –
kénosis). Não é o Deus que ama o poder, mas é o poder do amor.
B. Testemunhar esse Deus gera tensão, porque esse testemunho mexe com a cidade toda, cria alvoroço. Há quem não suporta o medo do vazio.
C. Participar do testemunho, por outro lado, gera uma alegria extraordinária, porque o testemunho trata daquele que vem para ajudar (hosana).
D. A fé nesse Deus gera disposição para o serviço, dispensando qualquer questionamento. Todos e todas querem colaborar do seu jeito. Mobiliza toda gente. A diaconia é parte natural da vivência do Reino de Deus.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Matthäus. 6. Aufl. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1986.
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. 2. Aufl. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976.
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso: o uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008. p. 114
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).