|

Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Romanos 9.1-5
Leituras: Isaías 55.1-5 e Mateus 14.13-21
Autor: Daniel Kreidlow
Data Litúrgica: 8º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/08/2014

1. Introdução

Por estar inseridas em um ambiente social cada vez mais individualista, creio que nossas comunidades terão dificuldades para envolver-se com o tema deste “domingo de Israel”. De modo geral, solidarizar-se e preocupar-se com o povo escolhido de Deus, que se exclui da salvação em Cristo, não é nada natural. O apóstolo Paulo estava olhando com amor seu próprio povo. Mas e nós, o que temos com esse povo que foi escolhido por Deus desde a antiguidade?

Acredito, mesmo assim, que esse trecho da Carta aos Romanos possa ter um significado importante para nós comunidades da IECLB no momento em que olharmos ao nosso redor para todos aqueles que se colocam fora da graça e da fé em Cristo Jesus, ou seja, que desprezam a graça e a fé em Cristo Jesus. Além do que, se nos deixarmos espelhar pelo texto, talvez nos descubramos um pouco como os israelitas, sempre tão zelosos, mas sem querer depender exclusivamente da graça divina.

Não podemos ser indiferentes àqueles que se perdem. Não podemos fechar nossos olhos tão rapidamente ao povo de Israel, povo que Deus escolheu para manifestar-se e no meio do qual Jesus nasceu como Salvador. Da mesma forma, não podemos nos esquecer do nosso povo evangélico luterano, que com muito amor tenta manter seus costumes e tradições, mas perigosamente pode esquecer o central: Jesus Cristo salva e aceita por pura graça e fé.

O texto da Carta de Paulo aos Romanos conversa claramente com o texto do Antigo Testamento, quando em Isaías 55.1-5 ouvimos do convite de Deus àquelas pessoas sedentas entre nós para achegar-se a Ele, pois o que Ele tem a nos oferecer é entregue gratuitamente por amor. Já o texto de Mateus 14.13-21 relata-nos a clássica e tão conhecida história da multiplicação dos pães. Após Jesus se ter retirado e visto que o povo mesmo assim não o havia deixado, pois tinha fome e sede de cuidado e amor, ele pede a seus discípulos para que alimentem gratuitamente a multidão e não dispensem as pessoas para que elas possam comprar seu alimento. Também aqui o tema do cuidado e da graça é claro e nos ajudará a refletir sobre o que Romanos nos propõe. Pois são latentes o cuidado e o amor de Jesus para com aqueles que se sentiam perdidos e sem rumo, povo que corria atrás dele em busca de sentido de vida. E isso com certeza nos ajudará a refletir sobre o nosso olhar para aqueles que vivem ao nosso redor e se sentem sedentos e famintos.

 

2. Considerações sobre o texto

Para quem vem lendo a Carta de Romanos de forma contínua desde o seu início, certamente os capítulos 9-11 vão soar um pouco estranhos. Desde o começo da carta, Paulo fala o que significa “o justo viverá pela fé”, tentando esmiuçar a tríade “justiça, fé e vida”. Assim, depois de extensas exposições, poder-se-ia imaginar que o apóstolo terminaria sua carta com as costumeiras exortações. Mas somos surpreendidos como que com um parêntese, que vai dos capítulos 9 a 11. Em lugar do término da carta introduz-se um novo e importante tema: a reprovação de Israel. Esse bloco de três capítulos era suspeito, por vezes, de ser um acréscimo posterior e até de ter sido um escrito à parte dessa carta. No entanto, hoje se acredita fortemente que esse bloco é parte fundamental e indispensável da mensagem total da carta paulina, tendo uma função bem definida na reflexão da justiça, fé e vida, realizada na totalidade desse escrito.

V. 1-2 – Parece-nos que o problema do qual o apóstolo se dispõe a tratar é extremamente íntimo e intensamente pessoal. Para Paulo, a ideia de uma reprovação de seu próprio povo tornou-se insuportável. Essa questão ele, como um judeu-cristão, não poderia deixar de enfrentar. Mesmo se gloriando de seu ministério entre os gentios e alegrando-se com sua salvação, não conseguia esquecer e ser indiferente à sua família e à sua nação como um todo, pois, em sua maioria, eles não aceitavam a mensagem da salvação anunciada no evangelho. Uma estreita solidariedade com o povo de Israel o movia, pois a reprovação de seu povo tornara-se uma fonte de profunda tristeza e de uma angústia sem fim.

V. 3 – A solidariedade do apóstolo é parecida àquela que Moisés sentiu pelas pessoas de sua época, quando rogou pelo povo de Israel ameaçado pela reprovação de Deus (Êx 32.32). Paulo vê-se ligado a seu povo segundo a carne e sente um grande carinho e preocupação por ele, chegando a chamar essas pessoas de irmãos. De forma geral, essa designação era usada pelo apóstolo somente para indicar a unidade entre os cristãos, não para referir-se aos judeus, como vemos aqui neste texto.

Ante a ameaça da exclusão da salvação em Cristo, Paulo adianta-se e pede a Deus para sofrer por seu povo vicariamente. Assim ele assumiria a maldição da separação de Cristo. Esse pedido, além de torná-lo semelhante a Moisés, assemelha-o ao próprio Cristo. Assim como Jesus tomou sobre si o pecado do mundo, Paulo deseja, ele mesmo, entregando-se como anátema, salvar seus irmãos perdidos pela incredulidade. Porém ele sabe que seu pedido não pode ser atendido.

Interessante é notar que, mesmo que Paulo esteja pensando nos judeus, ele evita constantemente nos capítulos 9-11 o termo ioudaioi. Ao invés disso, como mencionado, chama-os de irmãos, incluindo esses que são “segundo a carne” como ele na irmandade dos cristãos.

V. 4 – Na continuação, Paulo enumera o fundamento dessa relação do povo com Deus, uma relação baseada na herança que o povo de Israel recebe daquele que os chama. É por causa da adoção, da glória, da aliança, da legislação, do culto, dos patriarcas e da promessa que permanecem o direito e o dever de Israel.

Além disso, o próprio Cristo descende deles segundo a carne, em quem todas as promessas de Deus a Israel atingem a sua consumação.

V. 5 – Com respeito a este último versículo, existem muitas opiniões diferentes. A partir do ponto de vista linguístico, é muito natural que se considerem essas palavras como uma referência a Cristo, de quem Paulo está falando no momento. Outros acreditam que a frase deve ser tomada como uma atribuição independente de louvor a Deus, já que Paulo, com rara exceção, aplica diretamente a Cristo o nome de Deus. Dependendo da solução que se adote, atrás do “segundo a carne” se colocam uma vírgula ou um ponto. A favor do referir-se a Cristo está o fato de que, nas outras passagens paulinas, as doxologias não independentes sempre se referem ao sujeito precedido. A favor do referir-se a Deus fala o fato de que em suas doxologias Paulo sempre glorifica a Deus mesmo, não a Cristo. Além disso, pode-se argumentar que temos aqui uma doxologia teológica, porque todos os sinais de Israel que foram mencionados são instituições salvíficas de Deus. Por fim, poderíamos dizer que as razões para considerar a segunda opção são um pouco melhor fundamentadas. Por fim, ainda nos cabe lembrar que o bloco dos capítulos 9-11 propõe-se a demonstrar, de certa forma, que a justiça pela fé e as promessas de Deus não são contraditórias.

 

3. Meditação

O cristianismo esqueceu rapidamente e até parece querer manter no esquecimento através dos séculos toda a problemática da relação entre o cristianismo e o judaísmo. Pouco se tem refletido sobre isso, e diferentemente de Paulo, pouco se tem dado importância a isso. Como podemos nós não nos sentir afetados pelo problema? Como podemos, como cristianismo e igreja evangélica, considerar de forma tão simples e fria o judaísmo como maldito por Deus, por ter-se mantido preso à lei, opondo-se assim ao evangelho da graça? Aqui nos cabe perguntar: seria essa a atitude de Jesus?

Talvez por algum tempo, o genocídio realizado nos campos de concentração e extermínio pela Europa nos tenha ensinado a olhar com mais amor para esse povo eleito por Deus. Mas anos já passaram desde a cruel guerra, e novamente parece que a questão judaica voltou a não nos envolver e comiserar.

Dificilmente para as nossas comunidades, o destino do povo judeu é e passará a ser alguma coisa existencial. Quando muito, algumas pessoas tentam resolver o problema com a visão da conversão de indivíduos específicos e pontuais, sem gastar esforços refletindo sobre o destino do povo eleito e escolhido por Deus. Paulo sim teve um olhar mais amplo, fazendo com que os romanos participassem de sua profunda tristeza e dor, pois acreditava que o enigma da rejeição de Cristo pelo povo que tanto o aguardava deve ser motivo de amor e reflexão.

De certa maneira, o tema de nosso texto leva-nos a refletir sobre a situação dos que se assemelham a essas pessoas, daqueles que fundamentam suas vidas na comunidade em coisas que não são necessariamente uma fé consciente e sólida. Será que alguns de nossos membros podem ser compreendidos de forma semelhante ao povo pelo qual o apóstolo Paulo sentia dor e tristeza no coração?

Nós também somos escolhidos e separados por Deus desde o nosso Batismo, quando nos soou aos ouvidos a promessa: “Quem crer e for batizado será salvo, mas quem não crer será condenado” (Mc 16.16). Assim como o povo de Israel, fomos eleitos por Deus em seu amor, que não se restringe a gênero, raça ou nacionalidade. Fomos feitos seus filhos e filhas queridos, e com isso a nós também pertence a herança que Cristo conquistou com sua morte e ressurreição. Mas, além disso, também não somos parecidos com Israel pelo fato de que, depois de eleitos, temos nos acomodado a leis e tradições que, muitas vezes, carregamos conosco somente porque fazem parte de nossa cultura e de nosso jeito de ser igreja e cristãos, sem refletir sobre nossa fé e apegar-nos conscientemente à fé e à graça de Deus?

Os israelitas, de forma geral, possuíam um enorme zelo por sua tradição e fé em Deus. Mas é o sufi ciente, é o necessário? Nós também podemos ter muito amor, carinho e zelo pelas coisas da igreja. Mas é o sufi ciente, é o necessário? Nós não somos convidados a apresentar nada a Deus, não devemos zelo, pois para nossa salvação tudo já nos foi dado e realizado em Cristo Jesus. Assim, da mesma maneira como Israel, quando teimosamente nos apegamos ao cumprimento e à realização de nossos costumes e tradições, estamos negando Cristo como fonte de nossa salvação.

justificação por graça e fé, um tema tão caro a nós de tradição evangélica luterana, sempre será como que uma pedra de tropeço para os modismos e costumes hodiernos de nossa sociedade. Falar de graça sempre será um tema subversivo, pois minará toda e qualquer estrutura erguida sobre a competição e o mérito. Essa graça será sempre dinâmica, porque valoriza quem sabe que não merece nada e ao mesmo tempo questiona quem pensa merecer muito. Por isso é inevitável o conflito no tempo em que vivemos. Pois a graça continuará lutando por espaços para a vida, enquanto a competição acirrada de nosso mundo continuará diminuindo esses lugares de inclusão e aceitação.

Nesse sentido, a graça imerecida pela fé que Israel negou e rejeitou deve sempre ser a motivação para que nós celebremos em gratidão, sentindo fortalecida a vontade de ver nosso semelhante experimentando-a da mesma forma como nós a experimentamos. Os sinais da graça, não do zelo sem Cristo, automaticamente vão surgir em nossas vidas e inspirar outras pessoas a viver e sentir-se leves por ser amadas pela pura e simples bondade divina. Sem o intuito de valorizar-nos diante de Deus, podemos e poderemos sempre viver como uma grata resposta à valorização recebida pela graça de Deus.

Em um mundo apegado às realizações e que fomenta o sucesso pessoal, corremos o risco de sempre acreditar mais em nós mesmos e em nossa força do que no Deus da graça: Cristo Jesus. Estamos sempre teimosamente querendo apresentar nossos méritos, nosso potencial, nossas conquistas, nossa “ficha limpa”, que no meio político é comumente indispensável para poder candidatar-se. O texto bíblico coloca-nos diante de um espelho em que percebemos fortemente o “israelita” que existe em cada um de nós.

Por outro lado, o texto também nos convida a um olhar repleto de carinho e amor em relação àqueles que se perdem da graça de Cristo. Inseridos nessa sociedade cada vez mais individualista, corremos o risco de cada vez menos conseguir ser empáticos com as outras pessoas. É cada vez mais comum, como seres humanos, conseguirmos ver pessoas perdidas ao nosso lado sem sentir dor nem solidariedade por elas. Dessa forma, basta que eu esteja bem, basta que eu tenha saúde, que eu esteja em condições melhores de vida, que eu seja salvo. Os israelitas, o vizinho, o que não tem emprego ou pão, que esse se preocupe consigo mesmo.

Nós sabemos que Deus estabeleceu uma aliança conosco, baseada em graça e amor. Temos nos contentado com isso ou temos buscado outros meios de salvação? Cristo tem sido o alicerce de nossa fé, ou as tradições e os costumes? Temos tido um olhar amoroso para quem caminha conosco e perde-se no caminho?

 

4. Subsídios litúrgicos

Sugestão de Salmo:

“Em quem confiar?”
Em meio aos meus dias de dor
pus-me a meditar:
em quem porei a minha confiança?
Encontrei no livro um canto que dizia:
“Somente em Deus, ó minha alma,
espera silenciosa;
dele vem a minha salvação.
Só dele, a minha esperança”.
Arrisquei o que pude
e confiei no Deus da vida.
Um tempo e mais um tempo
e então compreendi:
“De Deus dependem a minha salvação
e a minha glória”.
Querem derrubar o homem justo
e não cansam de lisonjeá-lo
com promessas, louvores e prestígio.
Mas o seu coração não aderiu.
Na sua solidão
confiou Naquele que vem
e não se deixou abater.
Feliz é o ser humano que confia
na Rocha, no Deus Libertador.
Esse não será confundido
na hora cristalina.

(ZWETSCH, Roberto E. Vigília. Salmos para Tempos de Incerteza. São
Leopoldo: Sinodal, 1994)

 

Ir para índice do PL 38

 

Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).