|

Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 2 Samuel 7.1-11, 16
Leituras: Lucas 1.26-38 e Romanos 16.25-27
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação: 18/12/2011

 

1. Introdução

Os três textos bíblicos previstos para o 4º Domingo de Advento sugerem a seguinte temática: o Deus vivo do testemunho bíblico vem em direção ao ser humano sempre de uma forma inusitada e inesperada. Ele oculta seu poder, entrando em nossa realidade de uma forma aparentemente frágil e humilde. Esse jeito de Deus agir conosco, sua condescendência, é para nós um mistério (Rm 16.25), que só é entendido por meio da fé (Rm 16.26) e que opera em nós uma completa transformação de nossas mentes e vidas.

 

2. Exegese

2 Samuel 7 relata o ponto alto e central da história de Davi. O capítulo faz parte do bloco maior de 2 Samuel 5-8. Esse bloco narra os fatos que marcam a consolidação do reinado de Davi sobre Judá e Israel: a conquista de Jerusalém, vitórias militares, expansão do reino, a Arca da Aliança trazida para Jerusalém. O bloco é precedido pelos capítulos 2-4, que tratam da ascensão de Davi ao trono de Judá (após a morte do rei Saul). Nos capítulos 9-20, temos o relato da luta pela sucessão de Davi.

O tema central de 2 Samuel 7 é a promessa de Deus ao rei Davi de que sua dinastia ocupará o trono “para sempre” (v. 16). Ligado a esse tema está um segundo: a proibição a Davi de construir um templo em Jerusalém para a arca de Deus. O capítulo está dividido em duas partes: v. 1-17 (a promessa) e v. 18-29 (a oração de Davi). Os v. 12-15 – que não foram incluídos na perícope – tratam de Salomão, filho e sucessor de Davi, da legitimação de seu reinado, da relação especial de Deus com ele (Pai e filho) e do anúncio de que ele construirá uma “casa” (templo) ao nome de Deus. 2 Samuel 7 possui importância teológica central dentro do Antigo Testamento, pois é na promessa feita a Davi que se baseia a esperança messiânica do povo de Israel. O Novo Testamento vê em Jesus Cristo o cumprimento dessa promessa.

V. 1 – Indica para o início de uma nova temática. Davi finalmente habita em “sua (própria) casa” (palácio), construída em Jerusalém, a cidade-fortaleza que ele conquistou para ser a capital de seu reino – a “cidade de Davi” (2Sm 5.6-12). Após um tempo vivendo em cavernas e depois entre os filisteus, enquanto fugia do rei Saul, agora Davi possui sua própria fortaleza, de onde governa o povo de Deus. O fato de habitar na própria casa é visto como legitimação do reinado por Deus (5.11s). A isso se junta o fato de que o Senhor garante a superioridade militar de Davi sobre os povos vizinhos, iniciando um tempo de paz.

V. 2 – Davi vê uma contradição no fato de ele viver num palácio luxuoso (“de cedros”), que simboliza seu poder atual, enquanto a “arca de Deus” (representação da presença de Deus) encontra-se numa habitação provisória e frágil (uma tenda). Davi percebe que começou uma nova época em sua história pessoal e na história do povo de Deus, um tempo de estabilidade (“descanso”). Essa nova fase reflete-se também na arquitetura. Isso não deveria valer também para Deus? O povo não vive mais no deserto, peregrinando de um lugar para outro. O rei expõe a questão ao profeta da corte, talvez esperando ouvir por intermédio dele a palavra do próprio Deus.

V. 3 – Sem consultar Deus, o profeta Natã logo aprova a ideia do rei de construir um templo ao Deus de Israel. Natã acredita que os planos de Davi serão abençoados por Deus, pois “o Senhor é contigo”, ou seja, tudo o que Davi fez até agora “deu certo”. “Faze tudo quanto está no teu coração”: o coração era visto como a sede das decisões, dos planos e da vontade. O profeta presume que o “coração” de Davi está em perfeita sintonia com o “coração” de Deus. Mais tarde, Davi vai reconhecer que o coração de Deus tem planos muito diferentes dos dele (v. 18).

V. 4 – Mas parece que o profeta falou em seu próprio nome, pois “a palavra do Senhor veio a Natã” naquela mesma noite, revelando que os planos do Senhor são diferentes.

V. 5 – O dito de Deus começa com uma pergunta retórica que expressa o espanto em relação ao plano de Davi: Tu queres construir uma casa para mim? É como se Deus dissesse: Tu achas que podes fazer algo por mim? Quem és tu para decidir onde Eu vou morar? Tu queres saber o que é melhor e mais adequado para mim? Será que eu preciso de tua ajuda?

V. 6-7 – Na sequência, o rei é lembrado de que Deus nunca habitou em templo (“casa”), que nunca precisou de construções feitas de material nobre para demonstrar o seu poder e majestade. Ele libertou Israel das mãos da maior potência militar da época (o Egito) e andou com Israel tendo uma barraca como moradia. A arca de Deus era protegida apenas por cortinas, por uma habitação extremamente provisória. Davi também é lembrado de que Deus nunca deu uma ordem aos líderes do povo para que construíssem para ele “uma casa de cedro”, um templo luxuoso comparável ao palácio de um rei. Davi também não recebeu essa ordem. Deus deixa claro que não precisa de uma “habitação” para exercer ou representar externamente seu poder, nem mesmo precisa da tenda. A tenda tinha a função de um local de encontro entre Deus e seus mensageiros. Era lá que ele dava a conhecer sua vontade e instruções (Êx 33.7-11: a “Tenda da Reunião”). Mas ele não precisava da tenda; podia revelar sua vontade assim como fez com Natã e, mais tarde, com outros profetas. Com essas palavras Deus revela sua soberania e liberdade de agir onde e quando lhe convém. Essas palavras apontam para a tendência do ser humano de tentar limitar a ação de Deus ao culto no templo, para o perigo de querer controlar Deus (Jr 7.1-15; Is 66.1; Sl 50).

V. 8-11a – O dito seguinte enfatiza que a iniciativa sempre esteve nas mãos de Deus. Foi ele quem escolheu Davi e transformou o menino pastor de ovelhas no rei de Israel. Foi Deus quem eliminou os inimigos de Davi e deu a ele a fama e o poder dos grandes reis. Davi não tem mérito nenhum nessa história de sucesso. Além do mais, Deus fez tudo isso não por Davi, mas por seu povo, para que ele vivesse em segurança. O rei é apenas um instrumento de Deus para cuidar de seu povo.

V. 11b e 16 – Nosso trecho termina com uma promessa a Davi: Deus fará para o rei “uma casa”. Essa afirmação retoma e responde a pergunta do v. 5: Tu queres construir uma casa para mim? – Eu é que farei uma casa para ti! Davi queria construir um templo para a habitação de Deus. Mas Deus mostrou ao rei que não é ele quem precisa de uma “casa”, mas Davi. O fato de morar em seu próprio palácio deixou Davi seguro de si. Agora tudo está feito! O objetivo foi alcançado. Mas ele se engana. Tempos difíceis estão pela frente. Uma luta feroz pelo trono pode colocar tudo a perder. Assim como Davi só se tornou rei por causa da ação de Deus, assim ele só vai se manter no trono com a ajuda de Deus. O poder que Davi recebeu não é garantia de continuidade. Pelo contrário, será objeto de cobiça entre os filhos de Davi, que quase põem tudo a perder. O homem mais poderoso de Israel e de toda a região ainda é completamente dependente de Deus. A “casa” que Deus vai construir para Davi é a continuidade de sua dinastia no trono. Deus vai conceder firmeza e estabilidade ao governo de seu servo Davi e de seus descendentes. O reinado da família de Davi vai durar “para sempre”, quer dizer, Deus não vai retirar seu apoio e sua ajuda, assim como fez com Saul (v. 15).

 

3. Meditação

Davi passou por tempos difíceis antes de se tornar rei. Viveu como um foragido, escondendo-se em cavernas, enquanto fugia do rei Saul e suas tropas. Ganhou a vida como líder de bando (cangaceiro?), prestando serviços de segurança particular aos grandes fazendeiros (1Sm 25). Buscou asilo entre os arqui-inimigos de Israel, os filisteus. Lutou pelo trono de Israel. Lutou contra os jebuseus pela conquista de Jerusalém. Lutou e derrotou os filisteus.

Agora, ele finalmente chegou ao topo. Foi coroado rei de Judá e de Israel e derrotou os inimigos internos e externos. Conquistou para si uma cidade, de onde governa inconteste seu país e as regiões vizinhas. Como sinal de reconhecimento do poder de Davi na região, o rei de Tiro constrói para seu vizinho uma “casa”, o palácio real de Jerusalém. Essa “casa” é a representação visível do poder militar, da riqueza (“casa de cedros”) e da estabilidade (“descanso”). Em todas as épocas e lugares, governantes erguem palácios e outras grandes obras arquitetônicas para lembrar os seus súditos onde estão a autoridade e o poder.

Tendo chegado ao topo do poder, Davi sente que algo não está certo. Ele sabe muito bem que deve seu sucesso ao Senhor dos Exércitos. O Deus de Israel está muito acima dele. Como pode ser que o rei habite sua própria “casa”, e todos podem ver o seu poder, enquanto a arca de Deus continua sendo abrigada numa tenda? Se o Deus de Israel está acima de Davi, então isso precisa ficar visível por meio de uma “casa de cedros”, um templo que representa toda a grandeza desse Deus. A tenda não reflete a nova situação e, segundo a lógica do rei, não reflete condignamente a glória e a majestade de Deus. Na melhor das intenções, Davi pretende construir um templo digno da glória do Senhor.

Natã, o profeta da corte, é da mesma opinião. Prontamente dá seu aval ao projeto do rei de construir um templo para a arca de Deus. Ele presume que haja uma sintonia muito grande entre o rei e Deus. Deus tem aprovado tudo o que Davi faz. Prova disso é o sucesso do rei em todos os seus empreendimentos: “o Senhor é contigo” (v. 3). Os planos do rei (“tudo quanto está no teu coração”, v. 3) são também os planos de Deus, deduz o profeta.

Mas não é bem assim. “A palavra do Senhor veio a Natã” (v. 4) e corrigiu a opinião do rei e do profeta, que pensavam conhecer a Deus muito bem e saber que tipo de “habitação” seria mais condizente com a sua posição. As palavras de Deus, transmitidas por meio do profeta (v. 5-11,16), revelam os seguintes aspectos:

a) No relacionamento entre Deus e o ser humano, a iniciativa é sempre de Deus. Não é Davi quem constrói uma casa para Deus, mas é Deus quem constrói uma casa para Davi. Deus sempre revela sua vontade e passa as instruções por intermédio dos seus profetas. O rei tem a sua importância apenas como servo (instrumento) obediente. Ele não pode tomar decisões sem consultar a Deus. A iniciativa de construir um templo partiu do rei, com apoio do profeta, mas sem a ordem de Deus (v. 7). Por melhor que seja a intenção, é preciso perguntar pela vontade de Deus.

b) A importância do templo como habitação de Deus é relativizada. Essa ressalva em relação ao templo deixa transparecer uma crítica ao culto (= sacrifícios), como a vamos encontrar nos profetas e em outras partes do Antigo Testamento. O motivo da crítica é justamente a tendência humana de tentar restringir a liberdade e a ação de Deus. Em outras palavras, a tentativa humana de manipular Deus, nesse caso por meio de rituais. A partir do exílio, o judaísmo percebeu que não podia limitar a presença e a ação de Deus ao templo. 2 Samuel 7 afirma que a ligação Deus – “casa de Davi” é mais importante do que a ligação Deus – “casa de cedro” (templo). O Deus de Israel prefere agir e conduzir seu povo por intermédio de seus servos, sejam eles reis ou profetas.

c) A ação de Deus é sempre inusitada, inesperada, não corresponde ao que esperamos. Deus sempre nos surpreende, cria algo novo, totalmente inesperado (v. 18). O próprio Davi é um exemplo disso: o pequeno pastor de ovelhas é transformado em pastor do povo de Deus. Deus escolhe as coisas fracas e pequenas para manifestar o seu poder. Ele não quer nem precisa dos símbolos humanos de poder para demonstrar sua glória. Pelo contrário, Deus cria a partir do nada (Rm 4.17).

d) A condescendência de Deus: Deus revela-se como Deus ao fazer o contrário do que esperamos dele. Ao invés de se deixar apresentar na pompa de um templo, ele se rebaixa voluntariamente ao se comprometer com uma família humana. Nessa sua condescendência, o Senhor de todo o mundo realiza seu compromisso insolúvel com Israel e com a humanidade. Ele é um Deus que se curva à procura do ser humano. Ao invés da “casa” sólida de pedra (templo), ele escolhe a “casa” frágil e vã de “carne e osso” (a casa de Abraão, a casa de Israel, a casa de Davi). Deus age por intermédio de pessoas em favor das pessoas – especialmente por meio e em favor das mais fracas.

e) A promessa de Deus aponta para o futuro. Ao comprometer-se com a casa de Davi “para sempre”, Deus mostra que o caminho dele com o povo ainda não chegou ao fim. A estabilidade e a segurança no presente (v. 1) ainda não são o objetivo final. O caminho é longo.

Todos esses aspectos se concretizam e se realizam na encarnação de Deus em Jesus Cristo. Aqui Deus mostra sua fidelidade em relação ao povo no cumprimento da promessa (Lc 1.32s). Mas também mostra que ele permanece o mesmo desde os tempos mais remotos em que selou seu compromisso com o povo de Israel. Sua opção e seu jeito de agir continuam os mesmos, ainda que os tempos tenham mudado. A iniciativa é sempre de Deus, que envia o Salvador. Ele continua surpreendendo ao fazer com que sua Palavra (seu Verbo) assuma forma humana. Ele continua escolhendo as coisas fracas e sem aparência. Ele descarta a “casa de cedros” (templo) e prefere a casa de “carne”, por meio da qual ele arma sua tenda/habitação neste mundo (Jo 1.14). Enquanto nós procuramos demonstrar nosso poder, Deus faz o contrário: “Tornou-se em tudo meu irmão, e, pobre e desprezado, ele ocultou o seu poder e um simples homem veio a ser: Lutou por minha causa” (Lutero, HPD 155,6).

No tempo presente, continua sendo Deus quem constrói a “casa” – a sua comunidade. E ele continua usando instrumentos que não combinam com aquilo que esperamos dele: pessoas fracas para proclamar a sua palavra poderosa (pregação), água para demonstrar seu compromisso de amor (batismo), pecadores para anunciar o perdão em seu nome (confissão dos pecados em particular e absolvição), “um pedaço de pão e um pouco de vinho” para conceder “perdão dos pecados, vida e salvação” (Lutero).

 

4. Imagem para a prédica

O próprio texto fornece uma boa imagem para falar do jeito de agir de Deus: a casa. A casa como moradia serve para proteger seus habitantes do clima (calor, frio, chuvas). Ela nos protege das outras pessoas ao possibilitar privacidade. Serve para guardar os bens de uma família. Serve para dar algum conforto. Nas classes mais abastadas, serve para ostentar riqueza. No âmbito político, serve para ostentar poder.

Deus também usa “casas”, mas com finalidades bem diferentes. Se pensarmos nos prédios (templos), ele os usa não para se isolar das pessoas (privacidade), mas para se encontrar com elas. Mas essa nem é a casa principal de Deus. Deus habita em pessoas que guardam a sua palavra (Jo 14.23). Essas casas de “carne e osso” são bem frágeis e duram pouco. São como tendas, moradias provisórias. Numa dessas tendas, Deus veio de forma definitiva ao mundo e “habitou entre nós” (Jo 1.14). Jesus Cristo mora lá onde dois ou três se reúnem em seu nome. Essa casa frágil e sem uma bela aparência, a comunidade, é o meio pelo qual Jesus Cristo anda por esse mundo, é seu corpo. E as “ferramentas” (palavra e sacramentos – os meios da salvação) que edificam e reformam essa casa são igualmente de aparência frágil e mais ocultam do que revelam o poder de Deus. Com esse seu jeito de agir, Deus nos surpreende e não se deixa manipular, atuando “onde e quando lhe apraz” (CA 5).

 

5. Subsídios litúrgicos

Seguem algumas sugestões de hinos que reforçam e desdobram o tema da pregação: HPD 2; 3; 4; 14; 155. Como introito, poderia ser lido pela comunidade o “Cântico de Maria” (Lc 1.46-55), um hino de louvor ao jeito surpreendente de Deus agir em favor das pessoas.

 

Bibliografia

GUTBROD, Karl. Das Buch vom Reich. Das zweite Buch Samuel. Stuttgart: Calwer, 1958. (BAT 11,2).
STOLZ, Fritz. Das erste und zweite Buch Samuel. Zürich: Theologischer Verlag, 1981.

 

Ir para índice do PL 36

 

Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).