Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: Mateus 6.1-6,16-21
Leituras: Joel 2.1-2, 12-17 ou Isaías 58.1-12 e 2 Coríntios 5.20b-6.10
Autor: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: Quarta-feira de Cinzas
Data da Pregação: 13/02/2013
Estamos entrando hoje num novo ciclo do ano eclesiástico. Depois da folia do carnaval (e tudo o que esse nome pressupõe aqui no Brasil), iniciamos o caminho da cruz que Cristo vai usar como trono. A Quarta-feira de Cinzas traz um desafio extra na cultura litúrgica da IECLB. Pois, mesmo que em muitos lugares do mundo pessoas que se confessam luteranas recebam a marca da cruz de cinzas nesse dia, na IECLB, geralmente, isso nem é possível pensar. O tabu do anticatólico ainda existe de forma tão grande, que o simples fato de ser celebrado o rito da colocação das cinzas rotineiramente na igreja católico-romana limita qualquer tentativa de celebrar com a ênfase necessária.
Os textos indicados pelo lecionário são fixos para todos os anos. Isso traz a problemática da variedade, mas, como o dia tem características próprias, isso não deveria ser difícil. Sendo o texto da prédica o evangelho, a temática está relacionada aos “atos de piedade”. Assim, pessoalmente escolheria como primeira leitura o texto de Isaías, que desenvolve o que seria um jejum correto diante dos olhos de Deus. Em comparação, Joel tem, nos primeiros versículos, um alerta e, nos outros versículos, chama à conversão e a uma postura humilde diante do Senhor. O texto de 2 Coríntios pode ser considerado uma aplicação prática à vida de cristãos e cristãs do ensino do texto evangélico. Paulo contrasta a apreciação humana da realidade com a apreciação das pessoas que vivem em Cristo.
Esse texto já foi trabalho no PL 34 e, com delimitação diferente, nos PLs 4, 8 e 14.
Dentro do Evangelho de Mateus, estamos no Sermão do Monte. O Pai-Nosso está no centro do Sermão do Monte, ao redor do qual estão outros temas. Imediatamente antes e depois, somos advertidos para não nos vangloriar com as obras de piedade realizadas. O lecionário teve o cuidado para deixar fora da leitura de hoje o Pai-Nosso, o que permite observar mais de perto três formas de piedade comuns na época de Jesus.
Ainda que muitos autores indiquem que se poderia parar a leitura dessa perícope no v. 18, a recompensa está relacionada com o tesouro dos v. 19-21, diferenciando os tesouros humanos do tesouro celestial. O final do texto traz-nos uma nova escala de valores que apontam para o Reino. Nesse sentido, o uso de nossas forças indicará onde está nosso coração. Onde colocamos o dinheiro mostra o que é importante para nós. O nosso coração seguirá nosso tesouro.
As diferenças entre as traduções de Almeida Revista e Atualizada (ARA) e da Bíblia na Linguagem de Hoje (NTLH) baseiam-se no estilo da segunda de interpretar, mais do que traduzir literalmente. Assim, por exemplo, “justiça” vira “praticar os seus deveres religiosos”, e “deres esmola” fica em “der alguma coisa a uma pessoa necessitada”. De forma geral, a NTLH interpreta tanto o texto, que o deixa “infantilizado”. Existem diversas passagens que poderiam ter ficado no estilo da ARA e nem por isso teriam perdido entendimento simples. Por isso, se for possível optar por uma versão, usem a ARA.
Esmolas (. 2-4) | Oração (v.5-6) | Jejum (v.16-18) | |
Introdução
ao tema |
Quando, pois, deres
esmola, |
E, quando orardes, | E, quando orardes, |
Exemplo
negativo dos hipócritas |
não toques trombeta
diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, |
não sereis como os
hipócritas; porque gostam de orar em pé nas sinagogas e nos cantos das praças, |
não vos mostreis
contristados como os hipócritas; porque desfiguram o rosto |
Motivação
negativa |
para serem
glorificados pelos homens. |
para serem vistos dos
homens. |
com o fim de parecer
aos homens que jejuam. |
Recompensa
presente |
Em verdade vos digo
que eles já receberam a recompensa. |
Em verdade vos digo
que eles já receberam a recompensa. |
Em verdade vos digo
que eles já receberam a recompensa. |
Instrução
positiva |
Tu, porém, ao dares a
esmola, ignore a tua mão esquerda o que faz a tua mão direita; |
Tu, porém, quando
orares, entra no teu quarto e, fechada a porta, |
Tu, porém, quando
jejuares, unge a cabeça e lava o rosto, |
Motivação
positiva |
para que a tua esmola
fique em secreto; |
orarás a teu Pai, que
está em secreto; |
com o fim de não
parecer aos homens que jejuas, e sim ao teu Pai, em secreto; |
Recompensa
futura |
e teu Pai, que vê
em secreto, te recompensará. |
e teu Pai, que vê
em secreto, te recompensará. |
e teu Pai, que vê
em secreto, te recompensará. |
O quadro anterior, adaptado de O. Wesley Allen Jr., mostra-nos que esmola, oração e jejum não são o centro da mensagem que Mateus quer passar. Jesus utiliza três aplicações da justiça farisaica, muito recomendadas no judaísmo de sua época e que depois continuaram sendo parte do repertório do cristianismo dos primeiros tempos. Vemos o v. 1 como escopo e as temáticas como lentes para reforçar que os atos realizados não são para promoção pessoal ou admiração das outras pessoas, mas estão relacionadas com Deus e seu Reino.
Um dos termos-chave para compreender o texto é “hipócrita”, uma palavra antiga para ator, aquele que personifica outro. O ator pretende, desenvolve, encena num palco. Na antiguidade, o ator usava uma máscara atrás da qual ocultava seu verdadeiro “eu”. Assim, literalmente escondia suas verdadeiras intenções sob uma falsa identidade. Inicialmente, a palavra não carregava conotação negativa, mas já na época de Jesus era relacionada com certas divindades. “Hipócrita” é a palavra mais forte que Jesus usa contra qualquer tipo de gente que mostra sua piedade como perfeita. Mateus geralmente chama de hipócritas a líderes judeus que faziam atos de piedade, mas com a motivação errada. No v. 16, em relação ao jejum, o ator hipócrita até desfigura sua face. Falsa prática unida à falsa identidade são temas frequentes em Mateus. Isso reflete como os membros daquela comunidade lutavam para tentar compreender quais eram os cristãos e quais estavam aproveitando a oportunidade. É marcante a diferenciação que Jesus faz entre “hipócrita” e “não hipócrita”. São duas formas de agir que se diferencia menormemente. A hipocrisia não é pelo fato efetuado, pois Jesus mesmo indica aos discípulos que façam. A motivação é a chave hermenêutica. Essa chave indicará os resultados, já ter recompensa ou receber a recompensa que o Pai dará.
A comunidade cristã vai ao encontro do Reino, que traz a vontade de Deus na terra como no céu. A recompensa de Deus é escatológica. As pessoas não fazem as coisas certas para poder obter a recompensa divina. Simplesmente se faz ocerto porque está certo. Sabine Meister, refletindo sobre a parábola do julgamento final, indica que “uma característica dos misericordiosos é sua reação… ficam surpresos… A seus olhos fizeram [apenas] o que precisava ser feito, não porque queriam comprar o reino dos céus com isso”. No Sermão do Monte, Jesus descreve essa “misericórdia inocente” em nossa perícope com as esmolas. Interessante lembrar que, em grego, a palavra “esmola” tem a mesma raiz que “misericórdia”.
A primeira abordagem da perícope deixou-me pensativo. As indicações de Jesus quase nunca são seguidas em nossas comunidades. Nossos cultos são públicos e geralmente têm muita gente; a diaconia que é feita ganha fotos publicadas; neste mundo de fartura, o jejum é feito por pessoas sem opção, é fome de miséria. Até como comunidades de fé não conseguimos esperar uma recompensa futura; a igreja tem que estar lotada hoje. Então como entender esse texto? Qual é o objetivo de Jesus ao trazer essas indicações aos discípulos?
Qual a recompensa pelos atos de fé? O texto está justificando a teologia da prosperidade? Se nós considerarmos somente alguns versículos ou uma parte deles, com certeza encontraremos uma boa justificativa para a teologia da prosperidade, pois tudo fala em recompensa. Mas, assim, estaríamos limitando o conceito mostrado por Jesus. Ele mostra outra realidade, em que as pessoas devem agir não porque podem receber uma recompensa (“eles já receberam a recompensa”). A perícope, uma e outra vez, assegura que Deus vê e abençoa nosso atuar, se for genuíno. Nosso agir deveria ser tal que atuássemos do mesmo jeito coerente com o Reino, ainda que ninguém estivesse olhando.
Por que é tão importante ser visto? É que não é simplesmente ser notado o que conta, mas poder ter valor e autoestima a partir das outras pessoas. Nosso ego precisa ser massageado, os cumprimentos têm que ser em público. Nisso, critica Jesus, Deus nos vê e nos dá valor. Em secreto, a aprovação de Deus é a única disponível. Deveríamos perguntar-nos para que são as boas obras. Para mostrar-nos? Qual a motivação por trás das ações realizadas?
Com os textos indicados e com a Quarta-feira de Cinzas temos a necessidade da exortação sobre observâncias cristãs deste tempo tão especial e ao mesmo tempo o alerta que o próprio Jesus aponta de que piedade feita para ganhar a atenção das pessoas não é realmente piedade. Dar esmola não é caridade se a motivação é ganhar influência. A oração está perdida se a motivação é chamar a atenção para a eloquência. O jejum deixa de ser humanitário e sinal de nossa dependência de Deus se o que se procura é que outros vejam nossa profunda devoção.
Jesus não indica às pessoas que devem dar esmola, orar ou jejuar. Ele sobre-entende que pessoas religiosas estarão motivadas a esses atos por questão de princípio. Isso faz com que a temática da Quarta-feira de Cinzas e da Quaresma como um todo seja, mais do que uma indicação, um alerta sobre os interesses de realizar certos atos (incluídos os três do texto em questão).
O Sermão do Monte enfoca a justiça, que é uma característica do Reino. Nele, justiça é vista mais m termos éticos. Mas não é uma simples lista de coisas a fazer. Deve existir um equilíbrio entre o fazer e o mostrar. Qual é a motivação última para realizar tal ato? Isso inclui também o que significa mostrar publicamente que temos na testa uma cruz de cinza por nossa participação na celebração em nossa comunidade. Essa cruz não é um diploma por ser bom cristão. As cinzas lembram nossa natureza mortal (do pó viemos e ao pó voltaremos) e também a nossa absoluta e total dependência da graça divina. Não querem ser marcas visíveis de nossa piedade. Mas, ao mesmo tempo, a simples rejeição desse ato de piedade pode também nos levar à vanglória criticada por Jesus.
Esse texto convida a igreja de hoje a repensar sua prática religiosa. Temos o alerta da religião-supermercado, da organização eclesiástica que funciona como buffet livre aonde as pessoas vão e consomem o que querem segundo seu gosto e trocam quando enjoam pela falta de variedade. Tudo isso regado com a mentalidade da sociedade atual do consumo e da troca de bens. Quantas de nossas atividades não são feitas porque queremos ter retorno principalmente econômico, mas também porque queremos ter uma igreja lotada ou sair bonito na foto da doação às pessoas marginalizadas. Deixamos de lado aquilo que Jesus pediu e optamos de forma aberta e até descarada pela lógica do mercado, porque é o que mais rende.
Logicamente, a primeira imagem a ser utilizada neste culto podem ser as cinzas, que nos lembram que somos seres finitos e totalmente dependentes de Deus. Como poderíamos ajudar a comunidade a entender isso? Quais são os sinais que mostram que somos limitados? Problemas de saúde, falta de emprego, depressão etc.
Por outro lado, podemos perguntar-nos: Quais são os toques de trombeta de hoje? Para que servem os testemunhos realizados nos cultos? Para gabar-se?Para algumas pessoas, é importante que todos vejam como ela “se entregou a Jesus” e não podemos esquecer aqueles que respondem à pergunta “quem oferta mais?”. Mas não devemos olhar somente ara outras confissões. Na própria IECLB, também se toca trombeta com placas de “doado por tal família” e a eterna lembrança de alguns membros “eu doei os tijolos”. Ao mesmo tempo, também fica o alerta para pastores e pastoras que querem “deixar sua marca” na paróquia por onde passam: tem que construir alguma coisa para que as próximas gerações vejam como eles trabalharam tão bem.
Quais atos devem ser feitos para mostrar a vontade de Deus hoje em nossa situação? Jesus utilizou ar esmola, orar e jejuar (práticas comuns de sua época). O que os cristãos e as cristãs em seu contexto deveriam fazer para ser sinais do Reino? Qual seria a ênfase diaconal em seu contexto? Qual prática a ser lembrada e refletida de acordo com o texto? O grupo de louvor está ali para louvar a Deus ou fazer um show musical? A OASE reúne-se para cumprir seus objetivos ou simplesmente é m grupo para partilhar fofocas?
O culto deste dia não segue a ordem regular de um culto dominical. O culto tem um início diferente, pois a ênfase recai na Confissão de Pecados e na Imposição das Cinzas. Assim, teríamos como Liturgia de Entrada: Saudação, Oração do Dia e Confissão.
Oração do dia:
Misericordioso Deus, acompanha nossa jornada através dos quarenta dias. Renova-nos em nosso Batismo, para que possamos ajudar os que são pobres. Suplicamos pelas pessoas que estão em necessidade. Afasta-nos da salvação que nós mesmos criamos, para que possamos encontrar nosso tesouro na vida de teu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, um só Deus, agora e sempre. Amém.
A Confissão, acompanhada do rito da Imposição das Cinzas, iniciaria com uma exortação, lembrando o início do novo tempo litúrgico. Depois teria uma confissão em que as pessoas também podem dizer uma resposta às preces como: “confessamos, Senhor” ou “tem misericórdia de nós, ó Deus”. Segue a imposição das cinzas, a certeza da absolvição. O culto continua com as leituras bíblicas. Para criar as cinzas, usam-se tradicionalmente as palmas do Domingo de Ramos anterior, mas também podem ser usadas outras folhas secas. Têm que ser queimadas em recipiente adequado para, depois de frias, ser peneiradas. Levando em conta que muitas peles ficam marcadas pelas cinzas, o ideal é misturá-las com um creme hidrante para o corpo, mas que não tenha aroma forte.
Para ajudar a comunidade a aproximar-se do rito das cinzas, seria bom possibilitar a colocação das cinzas na testa ou na face externa da mão. Quem faz o sinal da cruz diz: “Lembra-te que és pó e ao pó voltarás” (Gn 3.19).
ALLEN Jr., Wesley. Matthew 6:1-6, 16-21 Commentary on Gospel. Disponível em: . Acesso em: 05/06/2012.
MEISTER, Sabine. O sermão do monte e as bem-aventuranças. São Leopoldo: Sinodal, 2006.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).